Post de Eugénio Lisboa:
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Hoje mais uma edição da minha rubrica na Rádio Observador:
https://observador.pt/programas/ciencia-pop/fissao-nuclear-vs-fusao-nuclear/
POEMA DE EUGÉNIO LISBOA:
1
Mas que merda de
poetas,
de liras enferrujadas,
pouco vigor nas canetas
e de iras mal mijadas!
2
Mas que vergonha de
gente,
tão indigna de Camões,
de tesão deficiente
e falta de palavrões!
3
Que gente tão sem
tomates
(mais são castanhas
piladas!)
maricas, tatibitates,
com as tusas
congeladas!
4
Onde está a vossa Musa,
bem canora e eloquente,
que ao bandido que
abusa
faz frente
intransigente?
5
A vossa Musa morreu?
Coragem já não existe?
A honra esmoreceu?
A lira já não resiste?
6
Gente indigna de
Bocage,
cuja lira abissal
envigora o ultraje,
tal louco Gomes Leal!
7
À guerra que tudo
esmaga,
oponde a lira imortal,
que ao invasor embarga
o seu avanço letal!
8
Acordai a vossa lira,
apodrecida no sono
e instigai-lhe a ira,
que não fique ao
abandono!
Eugénio Lisboa
"Meses depois morria o velho mestre-escola da aldeia. Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquele lugar, que já há muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por que ele o obtivesse. O conselheiro quis tirar-lhe da ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o não ter ambições era indício de uma profunda doença moral; que a posição a que ele aspirava equivalia a uma sepultura estreita a que se acolhesse vivo.
Augusto persistiu, porém, no intento, e o conselheiro empenhou-se por ele em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois mal completara dezanove anos, e Augusto foi, por conseguinte, admitido a concurso para tão pouco disputado lugar e provido nele por três anos. O conselheiro, a quem não fora impossível obter-lhe despacho vitalício, quis ver assim se, no fim dos três anos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada carreira, e, de propósito, o fez despachar temporariamente (...).
Mas, ao fim de três anos, Augusto, apesar de por experiência conhecer já os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter novo despacho (...). Desta vez tivera um competidor, homem muito protegido por influências da localidade, as quais ainda não tinham podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto."
P. António Vieira (1668)
Soneto de Eugénio Lisboa:
Os ditadores usam a cartilha
normalmente usada por quem oprime.
O opressor percebe bem que trilha
inocentes - e que nada o redime.
A razão do opressor é a força,
já que outra razão não tem.
Porém a força a razão reforça
e a razão faz da força seu refém.
A sabedoria dos opressores
é o contrário de saber viver:
o uso constante dos seus terrores
é sementeira que fará colher
os tais destemidos frutos da ira,
que atira os restos da força à pira!
Eugénio
Lisboa
Nota do autor: quem não tem cão caça com gato; quem não tem
espingarda dispara soneto mal amanhado.
A imposição, rápida e certeira, de uma sedutora "narrativa" da educação escolar da qual decorre um modelo "pedagógico" não menos sedutor, tem consequências evidentes a diversos níveis: na reformulação do currículo, na organização do ensino, no direccionamento da aprendizagem, na reflexão a que os professores podem e devem submeter a sua acção profissional.
No respeitante a este último aspecto, tais narrativa e modelo imprimem um só sentido à reflexão, aquele que é estabelecido pelas entidades que os conceberam e impõem. Restringem-se as possibilidades de ponderação da acção e, em consequência, de tratamento do erro.
Sobre o assunto, escrevi um texto para o Portal dos Jesuítas (ver aqui).
Existe no Reino Unido uma longa tradição não só de criação de ciência, mas
também de comunicação de ciência. No século XIX Michael Faraday, que dirigiu a
Royal Institution de Londres, para além dos livros populares que escreveu sobre
física e química, como A História Química de Uma Vela, criou uma série
de palestras públicas de ciência, as Christmas Lectures, que chegaram
aos dias de hoje. Em grande contraste com o que se passa em Portugal, a BBC,
rádio e televisão pública britânica, dá uma forte atenção à ciência, investindo
em documentários, entrevistas e debates sobre temas científicos.
Um dos comunicadores de ciência mais conhecidos actualmente é o físico
teórico Jim Al-Khalili, autor do livro O Mundo Segundo a Física, que
acaba de sair entre nós na Temas e Debates e Círculo de Leitores, sempre atenta
aos novos ensaios de ciências. O nome do autor soa a árabe, porque é mesmo
árabe. Apesar de ser cidadão britânico, Al-Khalili, que hoje tem 59 anos – veio
para o Reino Unido aos 16 – nasceu em Bagdade, no Iraque, de pai iraquiano (engenheiro
da Força Aérea daquele país) e mãe inglesa (bibliotecária). O seu nome completo
é Jameel Sadik Al-Khalili, mas podem-lhe chamar Jim. Fez o doutoramento em Física Nuclear Teórica
em 1989 na Universidade de Surrey, depois de se ter licenciado nessa universidade,
num condado do sudeste inglês que confina com a região metropolitana de
Londres. O bom filho à casa torna: depois de ter feito um pós-doutoramento no
University College de Londres, Al-Khalili voltou para a sua alma-mater,
onde hoje é professor de Física e também de Comunicação de Ciência.
O seu primeiro livro, sobre buracos negros e buracos de minhoca, é de 1999,
e desde então a sua pena não tem parado: O Mundo Segundo a Física (Temas e Debates e Círculo de Leitores) é o
seu 13.º livro e para Abril próximo já está anunciado o 14.º, The Joy of Science,
tal como o último saído originalmente do prelo da Princeton University Press. A
obra agora saída em português é a segunda do autor publicada no nosso país, sendo
a primeira um volume colectivo, ricamente ilustrado, sob o título O Núcleo: Uma
Viagem ao Coração da Matéria, com a participação da física portuguesa
Teresa Peña, que a Porto Editora publicou em 2004.
O novo livro, de 350 páginas, apresenta um excelente resumo da física
contemporânea dirigido em especial aos leigos sobre o estado actual da física
moderna. O livro usa letra que se vê e tem um útil índice remissivo (só é pena
que a bibliografia não indique os títulos que já estão disponíveis na nossa
língua). Logo a abrir, o autor declara que se propõe fazer nada mais nada menos
do que «uma ode à física». E explica a razão: «Apaixonei-me pela física quando
ainda era adolescente.» Os capítulos 2 e 3 expõem o essencial das teorias da relatividade
de Einstein, restrita e geral, enquanto os capítulos 4 e 5 expõem o essencial
da teoria quântica de Bohr, Heisenberg, Schrödinger e outros, o ramo da Física
no qual o autor se especializou: começou por trabalhar nas propriedades de
núcleos atómicos exóticos e hoje trabalha em biologia quântica, isto é, tenta
explicar os fenómenos da vida com base na física fundamental. O capítulo 6
trata de um «velho» problema da Física: «Por que razão o futuro se distingue do
passado?» E o seguinte conta as tentativas – até agora incompletas – de fazer
uma «teoria de tudo», conciliando a teoria da relatividade geral com a teoria
quântica. Os três últimos capítulos, 8 a 10, tratam do futuro da física (que
enfrenta grande enigmas como a energia escura e a matéria escura), a utilidade
da física (onde aborda o campo emergente da computação quântica, que pode vir mudar
o mundo) e o modo de pensamento de um físico (há, de facto, uma maneira de
pensar o mundo segundo a física). Termina, em grande, com um merecido elogio (sei
que sou suspeito!) à física: «A condição humana é ilimitadamente frutuosa. Inventámos
a arte a poesia; criámos sistemas religiosos e políticos; construímos
sociedades, culturas e impérios tão ricos e complexos que é impossível condensá-los
em qualquer formula matemática. Mas, se quisermos saber de onde viemos, onde foram
formados os átomos dos nossos corpos — o «porquê» e o «como» do mundo e do
universo que habitamos, então a física é a via para uma verdadeira compreensão
da realidade. E, com essa compreensão, podemos moldar o nosso mundo e o nosso
destino.»
Al-Khalili não se fica pela palavra escrita, pois também é ágil com a
palavra falada e sabe que uma imagem pode valer mais do que mil palavras. Tem
feito inúmeros programas de rádio, alguns dos quais entrevistas aos seus pares
como Richard Dawkins, Martin Rees, Brian Cox e os veteranos Sir David
Attenborough (95 anos) e James Lovelock (o autor da «Hipótese de Gaia», que tem
uns incríveis 102 anos). Além disso, desde 2004, tem dirigido ou participado em
documentários televisivos, começando em 2004 com O Enigma do Cérebro de
Einstein. Tem também escrito com frequência para a imprensa. Escreveu, tal
como de resto eu próprio durante um rol de anos, uma crónica regular para a Gazeta
de Física, o órgão da Sociedade Portuguesa de Física.
Os seus trabalhos têm conhecido um enorme sucesso. O novo livro, tal como
os outros anteriores, está escrito de forma bastante acessível. Comunica, tal
como os seus programas de rádio e televisão, a paixão pela ciência. Não admira,
por isso, que tenha sido premiado várias vezes: ganhou o prémio Faraday da Royal
Society, a medalha Kelvin do Instituto de Física e a medalha Stephen Hawking de
Comunicação de Ciência, para além de vários títulos honoris causa em universidades
britânicas. Recebeu a Ordem do Império Britânico, pelos seus serviços à
ciência, e foi eleito sócio da Royal Society. Presidiu à associação Humanists
UK, que tem um cunho ateísta. Conforme o próprio Al-Khalali afirmou, apesar
de ter um pai muçulmano e uma mãe cristã praticante, nasceu «sem qualquer osso religioso».
Recomendo O Mundo Segundo a Física a todos os que querem saber como
vai a física. Vai bem e recomenda-se! Tem um grande passado atrás de si e os
problemas que enfrenta actualmente apenas querem dizer que tem um grande futuro
à sua frente. Talvez o melhor ainda esteja para vir.
Eugénio Lisboa
A noite expira e o pai está em alvoroço. Conta as notas e sobe ao meu quarto. Depois, descemos a ladeira, no fim de agosto. Vamos sob o aroma das uvas silentes; vamos com as gotas do nevoeiro caindo dos olhos dos cardos; vamos com os caminhos de baba dos caracóis arrastando-se nas parras; vamos com o relógio suspenso nas sete e meia da manhã, a hora do silvo do comboio que passa por entre uvas, a este, e por entre pinhais e campos de milho, a oeste; vamos com as revoadas das andorinhas no alto dos postes de tensão. Acordam, de fronte para nós e no interior dos carros, homens que passam para as praias deste domingo para desfrutarem as últimas vagas de sol. A estrada sinuosa está imobilizada ao fundo da cidade. Os postes de iluminação iluminaram, durante a noite, a rua erma. O eucalipto e as heras verdes, na margem da estação, ameaçam o céu inexpugnável. Burilamos a brita e entramos na sala do guiché da estação, onde o pai diz a um adido sorumbático e tresandando a óleo queimado: – Bom dia, senhor. Um bilhete e meio para a Pampilhosa do Botão. O homem esbugalha os olhos pretos e as pestanas brancas, mira-me de alto-a-baixo e, após um breve instante de silêncio, diz: – Não tem consigo o bilhete de identidade do seu neto? – Olhe que nem me passou tal coisa pela lembrança! Sabe como é, as pressas, viemos a pé da Póvoa! – Ó amigo, desta vez passa, mas para a próxima veja lá se traz o bilhete consigo! As moedas giram e os bilhetes giram, o pai arrecada-os na carteira, desculpando-se de que nunca mais voltará a acontecer tal coisa, e, depois, sentamo-nos sob os ponteiros negros de um relógio de parede redondinho e gigante como uma lua. O comboio de oeste estaca fragorosamente na linha e um casal de idosos cheio de cautelas, pé ante pé, desce os degraus metálicos, lamuriando-se de que a idade é um fardo, que era assim a vida, que a cabeça bem quer, mas as pernas já não aguentam. Uma bandeira vermelha enrola-se no braço de um ferroviário, na travessia, e, no lado oposto, um outro fato azul manobra a agulha para o comboio que chegará daqui a nada de Coimbra. Subimos, cautelosamente, para o comboio, absorvendo o ar da manhã, e acomodamo-nos nos bancos surrados. Entretanto o comboio de este chega e detém-se ao lado do nosso. Arrancamos, por fim, preguiçosamente, aos soluços, das caieiras de silvas, nos fornos de cal, e seguimos o silêncio das uvas rumo à estação da Pampilhosa do Botão.
«Sous le charm du Portugal. Visages et Paysages» (Plon, Paris, 1931) é um livro que comprei num alfarrabista da autoria de Lily Jean-Javal (1882-1958; na figura), uma judia francesa viúva de Jean Laval, capitão francês que morreu na Primeira Guerra Mundial. Visitou Portugal com uma amiga finlandesa deixando este livro de viagem com fotografias. Transcrevo aqui a sua visita à Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra (minha tradução), guiada pelo seu director, o Prof. Joaquim de Carvalho. A capa da Bíblia de Abravanel que aqui se fala (pormenor em cima) serviu para ilustrar a capa de outro livro, com um texto de M. Jean-Laval, sobre o Cap. Artur de Barros Basto, um famoso judeu português, que reavivou a memória dos marranos do norte de Portugal («La renaissance du judaisme au Portugal au XXe siàcle. Artur de Barros Basto, Abraham Issrael Ben-Rosh")
«Entramos no santuário dos livros, um tesouro de que M. de Carvalho é o guardião. Deslumbramento: três salas de uma decoração faustosa, toda uma chinoiserie do séc. XVIII, representando pássaros, pagodes feéricos. As galerias, ornadas de encadernações semelhantes a jóias do Renascimento, são sustentadas por pilares com forma piramidal e marcadas por escadas douradas e pintadas. Tudo desemboca apoteoticamente no retrato de D. João V, o Luís XIV português, que reinou de 1706 a 1750. O seu filho D. José I teve como ministro o ilustre marquês de Pombal, que deu `estatutos à Universidade. Admiramos uma mesa em madeira do Brasil. "Gostaria, diz M. de Carvalho, que vissem esta biblioteca com o reflexo do sol poente. É particularmente fascinante."
Passamos diante de uma espécie de nicho, uma cela monástica que convida ao trabalho e à meditação, Pela janela estreita, apercebemo-nos de uma cruz recortada numa montanha. Os livros mais raros estão expostos numa outra sala; uma Bíblia dos sécs. XII ou XIII é a principal glória. É uma obra prima de paciência saída das mãos de alguns semitas, que viveram sem dúvida no norte de África. Com que amor e com que arte foram traçados esses caracteres hebraicos! Este livro pertenceu no séc. XV a um judeu ilustre, Isaac Abrabanel, exegeta e filósofo bíblico, amigo e conselheiro do rei D. Afonso V e da nobreza. Constituiu um traço de união entre o judaísmo e o Estado, numa época que marca o apogeu da civilização semita em Portugal e onde se afirma a repercussão da civilização ocidental no judaismo. Partidário de D. Fernando, duque de Bragança, e e da sua família, viu-se comprometido numa conspiração contra D. João II, sucessor de D. Afonso V, e por isso obrigado a refugiar-se em Castela e depois condenado por contumácia à forca. Ministro dos reis católicos ainda serviu, durante oito anos, de "escudo e baluarte ao judaísmo ameaçado", beneficiando dos favores de que gozava na corte, mas depois teve de fugir na época da expulsão total dos judeus na Península Ibérica. Chegou a Itália com o seu filho Leão Juda Abravanel, também chamado Leão Hebreu Filósofo. Este tinha nascido em Lisboa e tinha feito estudos científicos e literários brilhantes, acumulando numa só pessoa as aptidões de um médico e de um escritor. Tinha acompanhado o seu pai em Espanha, deixando o seu filho com um ano em Lisboa, onde o julgava em segurança. O rei D. Manuel I, apoderando-se da situação, fê-lo baptizar á força. Este acto de violência inspirou a Leão Hebreu uma obra patética onde exala a sua dor e onde conta as infelicidades que caíram sobre ele desde a sua juventude, assim como as suas peregrinações pelo mundo. O poema intitula-se Elegia sobre as Vicissitudes dos Tempos. É também autor de Diálogos do Amor (Dialoghi di Amore), uma obra filosófica impressa pela primeira vez em Roma em 1535, que foi traduzida em latim, espanhol e hebreu. Existem duas traduções francesas, uma de Ponthius de Thiard, historiógrafo do rei Henrique II, e outra de Denys Sauvage dedicada a Catarina de Médicis (Lyon, 1558). O sucesso de Leão Hebreu é devido em parte ao seu estilo bajulador e penetrante. Os leitores cristãos eram edificados por estes piedosos diálogos, não podendo imaginar que Leão tinha permanecido judeu, embora ele o indicasse formalmente nesse mesmo livro. Leão Hebreu parece que também escreveu uma obra intitulada Coeli Armonia.
M. de Carvalho consagrou páginas inéditas aos Abravanel pai e filho. Além da sua tese na Sorbonne que tem por titulo Leão Hebreu filósofo; publicou recentemente uma carta inédita de Isaac Abravanel. "Essa carta, diz o comentador, testemunha um profundo sentimento do eterno, de uma resignação magnífica à vontade suprema, e também uma rara cultura literária, Isaac Abravanel lia Azurara, o cronista do Infante D. Henrique, conhecia Sócrates através de Platão, Aristóteles, Séneca e tinha assimilado as ideias contemporâneas."
Esta digressão talvez nos tenha levado para lá da preciosa Bíblia, mas não para lá do mundo dos livros...
Mostrou-nos em seguida um primeiro incunábulo português, e uma série de mapas ilustrados com caravelas, e paisagens que nos transportam para lá dos mares, mapas quase todos eles executados a instância de D. João de Castro, vice-rei da Índia no séc. XVI. Missais principescos, ainda uma outra Bíblia famosa, o Livro do Mundo, publicado em Mainz em 1462, decorado de virgens que parecem ter sido esculpidas em relevo.»
A cultura do futebol actualmente em vigor infecta as mentalidades e os lugares públicos, fanatiza e estupidifica as pessoas e acobarda aflitivamente os políticos. Quase nenhum político, intelectual ou artista em evidência se atreve a dizer que não gosta de futebol ou, mais simplesmente, que lhe repugna toda esta horrorosa atmosfera e cultura futebolísticas que nos submergem e nos sufocam, onde quer que nos encontremos. Ressalvo um político português que, um dia, interrogado sobre por quem torcia, num qualquer desafio de futebol, que se ia disputar, teve a coragem de responder, com corajoso e saboroso acinte, que o assunto não lhe interessava minimamente. Refiro-me a Manuel Maria Carrilho.
Hoje, como
no tempo cinzento do salazarismo pelintra e acomodatício, “ser do futebol”,
“interessar-se” pelo futebol – é estar do lado seguro, é ser “da malta”, é ser de confiança, é…merecer o voto das
maiorias. Quanto mais boçal, quanto mais futeboleiro, quanto mais primário, em
termos de se “aquecer” fanaticamente por um clube qualquer, tanto mais
simpático e “porreiro”, tanto mais merecedor de uma carreira política
ascendente e bem recheada.
O futebol
infecta os lugares públicos (por altura do mundial, não se conseguia entrar num
café, restaurante ou pastelaria, para fins de um cavaco pacífico e apetecido,
sem se ter os ouvidos trespassados pelos orgasmos histéricos de um relator de
futebol), devora fracções pantagruélicas de jornais, revistas e noticiários de
televisão, promove a megaconstrução de estádios obscenamente desnecessários à
realização de um Euro 2004, estádios, repito, de que nem o país nem a
competição precisam e que são pagos, injustificadamente, com o dinheiro do
contribuinte. O futebol faz tudo isto e muito mais: polui ruas, estradas,
praias, aldeias e cidades, devora orçamentos, gera o fanatismo, a competição
mais doentia e até o ódio e a violência. Dizia Orwell, que dominou como um
mestre a arte da objectividade fria, que “o desporto à séria nada tem que ver
com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a
gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador
da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.”
Apetecer-me-ia corrigir: menos o tiroteio, mas com acréscimo de uma ou outra
facada e de um ou outro murro violento a comporem o quadro. Não o desporto sério, mas o desporto à séria (o contrário de sério),
perpetrado pelos que, ao profissionalizá-lo, o corromperam nas próprias raízes.
O futebol profissional arrasa tudo, corrompe tudo: praticantes e espectadores:
“O futebol é como a guerra nuclear”, dizia Frank Guifford, “ – não há
vencedores, há apenas sobreviventes.”
No tempo de
Salazar e parafraseando uma proclamação célebre dos marxistas, dizia-se que o
futebol era o ópio das massas. Salazar não passava afinal de um dinky toy, de
um inepto aprendiz de feiticeiro, ao lado dos promotores do opiário de hoje. Dizia Leibniz, um filósofo que provavelmente
não gostava de desporto violento, que a educação pode tudo – até faz dançar os
ursos. O futebol, tal como hoje existe e é promovido e venerado (do mais baixo
trabalhador ou funcionário ao mais alto dirigente) não faz dançar os ursos mas
transforma seguramente os homens em ursos. O verdadeiro desporto não deve ser
convertido em “espectáculo” porque não foi concebido como tal: não é para se ver, é para se praticar. Lembrava Sílvio Lima que as épocas de ouro do desporto
foram aquelas em que o espectador foi banido do estádio – ou só lá ia, em
raríssimas ocasiões, para ser encorajado a praticar sempre o que vira uma vez.
O futebol profissional é a corrupção deste verdadeiro espírito do desporto.
O futebol é
hoje uma das mais eficazes e mais sinistras fábricas de fanáticos. E observava
Huxley que, “definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que
sobrecompensa conscientemente as suas dúvidas secretas.” O futebol é pois essa
fábrica de fanáticos que, aquecidos à mais elevada temperatura e gritando em
excesso, duvidam, no fundo e secretamente, de si, do seu clube, da sua selecção
nacional e do seu país. Por isso se compensam, se sobrecompensam, obscenamente,
afirmando, até à caricatura (e ao ódio), a excelência de tudo em que, afinal,
não sabem bem se acreditam. Quem se lhes opõe ou duvida de tais certezas é
inimigo – porque lhes abala o edifício de (in)certezas.
A
proeminência histérica e obsessiva deste “desporto-rei” imposta aos jovens
desde a mais tenra idade infecta-os no que há de mais delicado e sensível: a
sua capacidade de definirem valores. O que o futebol – a cultura futebolística
em vigor – promove é a maior inversão de valores que a toda uma juventude se
pode infligir. A competição violenta e parcial, a inveja, o ódio, a gabarolice
vácua e projectada em intoleráveis decibéis, a grosseria triunfalista não são
valores que uma sociedade civilizada apadrinhe e promova. Mas é ver o ar de
babadice cúmplice e carinhosa que os políticos adoptam e os pivots televisivos
promovem (com um sorriso doce, anunciando que o noticiário chega, por fim, ao futebol…) O tempo televisivo, sempre tão precioso e tão
caro, dizem eles, passa a ficar infinitamente disponível, quando se trata de
futebol. Nem a Grande Informação (mais a Judite de Sousa) acharam que fosse demais consagrar uma edição inteira aos
altos e baixos da equipa portuguesa na Coreia do Sul – com minúcias, com
requintes de análise quase proustiana, quase bizantina, quase rendilhada, sobre
o nascimento, vida e morte de jogadores, treinadores e árbitros. Quando achará
a Grande Informação ser importante projectar, num momento nobre do seu canal,
nomes grandes da arte, da literatura, da ciência, da música, da filosofia…(que
os temos!), assim enriquecendo o leque de preocupações de um programa que se
não deve confinar nem à política do futebol nem ao futebol da política?
Julgo que,
se o futebol tudo tem infectado e corrompido, de poucos espaços se tem
abusivamente apoderado tanto como do espaço televisivo. Chegou-se ao ponto
grotesco, por altura do mundial, de se montar, televisivamente, todo um
dispositivo que referendasse o espectador quanto às alterações a fazer na
equipa do mundial… A esta estranha concepção de democracia (em que se pede aos
ignaros atrevidos decisões sobre assuntos de especialidade) chamou o inesquecível Ortega y Gasset “democracia
morbosa”. É contra este morbo sinistro do futebol, corruptor, em acelerado, das
mentalidades e do futuro da democracia, que importa insurgirmo-nos todos – os
que insistem em pensar com autonomia e cabeça fria. Sim, é importante conservar
o segundo canal da televisão pública, mas como plataforma onde se respire um ar
não demasiado poluído pelos ruídos extremistas, invasores e intolerantes desta
histérica cultura do futebol – e não como canal em que se gaste quase metade do
noticiário (ou mesmo mais do que metade) a falar do Mundial e a entrevistar
gente palradora e debitadora de minúcias sobre o ex-Mundial… Um Mundial que se
saldou por uma catadupa de revelações vergonhosas, todas elas a confirmarem o
enterro definitivo (e não só entre nós) do verdadeiro “espírito desportivo” (um
treinador a quem se pagava 3500 contos por mês, a pedir mais, em véspera de
jogo, jogadores opiparamente pagos a pedirem isenção de impostos sobre os
prémios, em tempo de austeridade fiscal, um Secretário de Estado a tomar, para
si, as dores de um jogador que se drogava e a quem se ofereceu, “para
conforto”, uma placa, etc., até à náusea). São estes exemplos que se doam a uma
juventude que, de dia para dia, se afunda mais num pântano ou num vazio de
valores, onde se não vê sombra nem de cultura nem de ética nem de gosto: num
país onde o afundamento ético é tal que uma maioria parlamentar acha modo de
violentar afrontosamente a Constituição, congeminando uma vergonhosa “lei de
excepção”, para Barrancos, passando por cima do facto de que está aqui em jogo
o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei…e
permitindo assim aos que violam a lei há mais de 50 anos o que se não permite
aos que a tenham violado apenas há poucos meses! Por outras palavras, o crime
longamente repetido compensa, por se ter tornado tradição!
Observava
esse grande clerc que dava pelo nome de Romain Rolland, que ”por toda a sua educação,
por tudo o que vê e ouve à sua volta, a criança absorve uma tal soma de
mentiras e de parvoíces, misturadas com verdades essenciais, que o primeiro
dever do adolescente que vise ser um homem são é vomitar tudo isso.” O nosso
dever – o dos educadores – é, pois, propiciar à juventude – e aos outros… -
esse vomitório fundamental, que os purgue de toda essa infame cultura
futebolística. Este meu texto pretendeu ser isso mesmo: um saudável vomitório. Nem
no tempo de Salazar a loucura futebolística foi tão longe, digo-o com grande
tristeza.
NOTA EM
FEVEREIRO DE 2022: Ressuscito dos meus arquivos este texto que é hoje mais
actual do que nunca. A corrupção que ele denunciava como sendo inerente ao
desporto profissional está hoje aí à mostra em toda a sua sumptuária
obscenidade: negócios sujos, fuga aos impostos, compra de árbitros, vendas de
jogadores como se fossem gado, porcarias de toda a espécie. Não gostaria de
confusões: gosto do futebol, como desporto bonito e às vezes surpreendente e
até o pratiquei na minha juventude. Mas o futebol, como todo o desporto é
fundamentalmente para ser praticado e não para ser VISTO e explorado
comercialmente, da forma mais nauseante. A este respeito, recomendo mais uma
vez aos nossos políticos e às pessoas, em geral, a leitura do que sobre isto
escreveu esse grande ensaísta e admirável escritor, que foi Sílvio Lima, antigo
Professor da Universidade de Coimbra. As suas obras foram publicadas em dois
belos volumes, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Nelas se inclui o notabilíssimo
texto intitulado ENSAIO SOBRE A ESSÊNCIA
DO ENSAIO, que é um verdadeiro modelo do que deve ser o espírito
ensaístico. Nenhum professor ou Professor deveria ignorar este belo ensaio,
muitíssimo bem pensado e documentado e melhor escrito. Como ensaísta, em
Portugal, Sílvio Lima não fica abaixo de ninguém.
Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...