Novo texto de Eugénio Lisboa:
O morto tem o pavor
de já não servir.
Há que dizer-lhe que
não, que é útil e prová-lo.
J.P. Grabato Dias
O génio, em definitivo, não
é mais do que a faculdade
de perceber as coisas de
forma pouco habitual.
William James
Vai para trinta anos que morreu uma das mais extraordinárias, completas e complexas figuras de que a nossa cultura pode orgulhar-se: um verdadeiro homem da Renascença, como já foi observado por António Cabrita, um dos ensaístas que, ultimamente, mais se tem esforçado por que se não deixe cair num esquecimento obsceno este personagem singularíssimo: poeta, pintor, escultor, apicultor, arquitecto, agricultor, ensaiador de teatro, cenógrafo, guionista de cinema, maquetista de jornais, artista gráfico, construtor de barcos, professor de qualidade invulgar, tudo foi este homem e foi-o com uma profundidade e empenho quase demoníacos, desdobrando-se em heterónimos como António Quadros (ortónimo), João Pedro Grabato Dias (poeta), Frey Ioannes Garabatus (poeta anti-épico), Mutimati Barnabé João (poeta militante).
Em vida, lidei pessoalmente com vária gente invulgar, mas conheci apenas três pessoas obviamente feridas de genialidade: José Régio, José Tiago Oliveira (matemático) e João Pedro Grabato Dias. (Considero Herberto Hélder um poeta genial, mas nunca lidei com ele pessoalmente e, por isso, não o incluo nesta pequena lista).
Sabemos muito bem quando estamos na presença de um verdadeiro génio: pela forma muito singular como consegue projectar uma luz muito nova em problemas muito antigos, encontrando, para eles, soluções inesperadas, que completamente nos desarrumam.
A epígrafe do filósofo americano, William James, irmão do grande romancista Henry James, que pus à cabeça deste texto, diz isto mesmo que acabo de escrever, mas por outras palavras:
“O génio, em definitivo, não é mais do que a faculdade de perceber as coisas de forma pouco habitual.”
Foi isto mesmo, em longas, frequentes e continuadas conversas – e, é claro, na leitura porfiada das suas obras – que encontrei, de modo particularmente vincado, nestas três grandes figuras da nossa cultura: uma fulgurante capacidade de ver e fazer ver tudo de outra maneira.
É precisamente por me ter cruzado e profundamente convivido com gente deste invulgar calibre – e também com outra também notável, mas não atingindo talvez o patamar da genialidade – que me faz mau sangue ver hoje, por aí, entronizados, de maneira comicamente obscena, tantos falsos ídolos sem o mínimo asseio intelectual e criativo. Esta promoção escandalosa, ao lado do esquecimento de figuras como Grabato Dias, é pecado sem perdão. Esquecer o grande poeta de
40 E TAL SONETOS DE AMOR E CIRCUNSTÂNCIA E DUMA CANÇÃO DESESPERADA (1970), O MORTO (1971), A ARCA – ODE DIDÀCTICA NA PRIMEIRA PESSOA (1971), UMA MEDITAÇÃO – 21 LAURENTINAS E DOIS FABULÍRIOS FALHADOS (1971), PRESSAGA (1974), EU, O POVO (1975), FACTO-FADO (1986), O POVO É NÓS (1991), QUYBYRYCAS (1972), SAGAPRESS (1992),
poeta que está várias oitavas acima de tantos aclamados e vastamente premiados poetas – é um caso de cegueira ou de temer quem lhes faz sombra. Por isso, transcrevo aqui, com gosto, uma passagem de um belo e longo ensaio de António Cabrita:
“Tem sido um destino. De cinco em cinco anos vejo-me obrigado a reeditar este texto, pelo mesmíssimo motivo: a insuportável obscuridade que caiu sobre um dos mais interessantes e completos espíritos da literatura e da arte portuguesa do século XX: António Quadros/Grabato Dias (1933/1994), (…); um homem da Renascença como antes dele só houve em Almada Negreiros. Vivendo no limbo, entre Moçambique e Portugal, ninguém o reivindica porque a todos faz sombra e a sua obra está toda por reeditar.”
Não foi inocentemente que pus também em epígrafe uma passagem desse extraordinário livro: O MORTO. Como ali se diz, o morto “tem pavor de já não servir”. Parecia premonitório: Grabato Dias, desaparecido em 1994, estará agora metaforicamente apavorado por já não servir. Todo o seu génio multifacetado não foi suficiente para o tornar “útil”. Mas a resposta a isto foi também prevista por ele e encontra-se no segundo verso da epígrafe: “Há que dizer-lhe que não, que é útil e prová-lo”.
Prová-lo, como? É muito simples: reedita-lo. A responsabilidade cabe ao herdeiro, pois sei que não faltarão editores interessados.
Voltarei a isto muito em breve.
Eugénio Lisboa
2 comentários:
Que estranha forma esta de EL usada para criar um génio!
José Tiago Oliveira (matemático);"Em 1971-1972 teve um ano sabático e colaborou com o Ministro da Educação Veiga Simão na reforma do ensino.
Nesta época tornou-se pública uma polémica entre Tiago de Oliveira de um lado e António da Silveira (1904–1985) e Sebastião e Silva, pelo outro, a propósito do papel a desempenhar pela Universidade na investigação. Silveira e Sebastião e Silva defendiam a criação de um Instituto de Física e Matemática como alternativa à Universidade, enquanto Tiago de Oliveira defendia que a investigação devia ser desenvolvida no âmbito da Universidade."[instituto - Camões, por Fernando Reis]
"Além do aumento brutal do número de disciplinas no bacharelato de Matemática, foi o alheamento, deveras inconsciente, que a Reforma de 1971 se permitiu manifestar no que toca àquela dupla preocupação de Sebastião e Silva, - a necessidade de uma formação segura em História do Pensamento Matemático e de um ensino de Física a nível só possível quando assente em prévio domínio de suficiente bagagem matemática, - foi esse alheamento que levou Sebastião e Silva,... a declarar-me, que em sua opinião, a Reforma de 71 representava, no que ao sector da Matemática respeita, um lamentável retrocesso em relação ao plano de estudos previsto na anterior Reforma de 1964.
Tais são as consequências de se enviarem para o Diário do Governo arrapazados improvisos que o País bem lucraria cedessem o lugar às ponderadas opções de homens superiores e amadurecidos como era Sebastião e Silva quando não foi ouvido acerca da Reforma das Faculdades de Ciências decretada em 1971" [vida e obra do professor José Sebastião e Silva - por António Andrade Guimarães, professor Catedrático da Faculdade de Ciências do Porto]
(continua)
(continuação)
"Mas não vale a pena enumerar exaustivamente os atropelos a que a Reforma de 1971 se permitiu dar foros de progressivos melhoramentos do esquema de bacharelato em Matemática. Para sentenciar sem apelo em meia dúzia de palavras esse atentado contra os mais sérios interesses dos nossos estudantes de Matemática, - bastará dizer que, sendo Sebastião e Silva o português de projecção universal como criador é como pedagogo de Matemática, ele não foi nunca ouvido acerca da elaboração desta Reforma do Ensino das Faculdades de Ciências decretada em 1971. Tal facto ficará na história da Universidade portuguesa como um padrão de inolvidável vergonha; este foi o modo por que o nosso País - em 1971, em plena trombeteada era de abertura! - aproveitou o ensejo geográfico de ter sido berço de um homem cuja voz era escutada com respeito, nos Congressos internacionais de Investigação ou de Pedagogia das Matemáticas, pelos maiores matemáticos e pedagogos sm todo o mundo." [vida é obra de Sebastião e Silva - António Andrade Guimarães, professor Catedrático da Faculdade de Ciências do Porto]
São estas as minhas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias, ao post de EL.
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