Artigo de opinião do David Marçal e meu que saiu há uma semana no Público:
Imagine
alguém que vende torradeiras que não funcionam. E imagine ainda que essa pessoa
vai frequentemente à televisão, onde os apresentadores se desfazem em sorrisos
cúmplices. Que são postas a circular histórias de clientes satisfeitos. O
vendedor dizia que a torradeira tinha um circuito eléctrico e que, portanto, havia
um fundamento científico. Há muito que se sabia que essas torradeiras não
funcionavam, uma vez que, dada a sua popularidade, se tinham feitos milhares de
ensaios. Nestes, colocavam-se algumas fatias de pão nas tais torradeiras e um
número igual de outras fatias iguais dentro de uma torradeira que funcionava.
No final, comensais que não sabiam como tinham sido preparadas as fatias diziam
se elas estavam torradas ou não. E as torradas nunca vinham das torradeiras que não
funcionam.
Houve vozes
dissonantes sobre as torradeiras que não funcionam. O vendedor, que tinha uma
perna na política, teve então a brilhante ideia de convencer os seus aliados na
política a aprovar legislação que regulamentava as torradeiras que não
funcionam: apenas certas pessoas, a quem era passada uma certidão profissional
é que as podiam vender. Estas tinham de ser licenciadas em torradeiras que não
funcionam, cursos cujos conteúdos programáticos eram também definidos pelos
políticos. Obviamente que assim seria mais difícil duvidar da eficácia do
referido electrodoméstico.
Mas várias pessoas
continuavam a insistir na falta de provas de que as torradeiras funcionavam. Uma
deles em particular, na Internet, meio onde a cortesia não abunda, a dada
altura presenteou o tal vendedor com epítetos como «charlatão» e «vigarista». O
vendedor, escudado pela legislação aprovada, avançou para a justiça com queixa
por difamação. Disse que sofreu danos, alegando mesmo ter perdido o apetite. E
o tribunal, apesar de todas as provas de que aquelas torradeiras não funcionam,
resolveu dar razão ao queixoso, condenando o tal individuo a pagar-lhe uma
avultada indemnização.
A história,
torradeiras à parte, é infelizmente verdadeira e aconteceu com o médico João
Cerqueira, condenado a pagar uma
indemnização de 15 mil euros
ao praticante de acupunctura Pedro Choy.
A acupunctura
é, de facto, uma torradeira avariada. Foram já feitos milhares de ensaios clínicos e
centenas de revisões sistemáticas da literatura médica para avaliar tratamentos de
acupunctura e as conclusões são uma de duas possibilidades: ou a acupunctura
não mostrou eficácia terapêutica no tratamento de determinada doença; ou,
nalguns casos, há indicações muito ligeiras da eficácia da acupunctura no
tratamento de certa doença, mas os métodos são inadequados e as amostras
demasiado pequenas. Isto inclui o tratamento da dor e o seu uso como método de anestesia
(que não é possível, ao contrário do que Choy alegou no programa Prós e Contras de 1 de Abril de 2019). Aliás, se a acupunctura
conseguisse apresentar provas das suas eficácia e segurança não necessitaria do
favor da legislação especial: os seus tratamentos seriam aprovados como
quaisquer outros. Mas o facto é que para nenhum tratamento de nenhuma terapia
alternativa é exigida qualquer prova de eficácia para estar no mercado. E tudo
isto tem consequências. Sabemos, por exemplo, que os doentes com cancros
curáveis que também recorrem as terapias alternativas têm uma taxa de letalidade ao fim
de sete anos muito superior
aqueles que apenas recorrem a tratamentos convencionais.
O que é que
podemos chamar a um «charlatão» quando não lhe podemos chamar «charlatão»?
«Praticante de charlatanice»? «Adepto da charlatanice»? Segundo o Dicionário
da Academia «charlatão» é um «indivíduo que vende drogas e mezinhas,
atribuindo-lhes qualidades curativas que elas não possuem (...) Pessoa que
proclama méritos ou qualidades que realmente não possui». «Charlatanice» é,
segundo o mesmo dicionário, a «arte de explorar a credulidade das pessoas
através de falsas doutrinas, teorias, promessas vãs...». O que é que se pode e
deve chamar a um indivíduo que defende a teoria da terra plana, a homeopatia ou
a acupunctura para «curar» a homossexualidade (sim, foi também isso que Choi fez)?
Porque,
apesar de tudo, queremos acreditar na justiça, esperamos que este caso seja
revisto na instância seguinte. Seria muito mau para a imagem da nossa justiça
se a sentença proferida transitasse em julgado.
PS) Fomos
testemunhas de defesa do médico João Cerqueira na única vez que, até hoje, cada
um de nós foi chamado a um tribunal.
3 comentários:
Que vergonha de artigo Mister Fiolhais, que pobreza de metáfora esta das torradeiras, um verdadeiro caos literário.
Caros David Marçal e Carlos Fiolhais, não invejo o vosso papel na defesa da Ciência, sobretudo com a crescente e avassaladora onda de "anónimos" deste mundo. Sei que, no entanto, não tem qualquer peso na vossa luta. Cumprimento-vos, contudo, com o meu testemunho, sabendo de antemão que a maior parte da gente "educada" e culta, compartilha convosco os mesmos valores. Bem hajam. Luiz Carvalho
O encontro entre culturas e seus saberes pode criar um espaço de acréscimo mútuo, em que os ganhos não comprometam as identidades. A hibridização entre o saber médico chinês e a medicina ocidental, é um desses exemplos, mais significativo na China com o partido comunista desde Mao, mas também cada vez mais na Europa com a importação da acupunctura. É a partir de 1949 que a medicina clássica chinesa sofre uma grande desvalorização com a adoção em grande escala da medicina baseada na ciência do paradigma ocidental, imbatível quer no diagnóstico, quer no tratamento. Mas o crescimento exponencial da medicina ocidental na China deveu-se à imposição por parte do poder político. E a sua tácita imposição como um dado adquirido de forma artificial gerou um grande mal-estar nos médicos chineses formados na tradição de uma civilização milenar contínua, sem interrupções durante cinco milénios, fundamentada num arcaboiço epistemológico alheio à ciência que floresceu no Ocidente com o dealbar da modernidade. Incentivada e financiada por países ocidentais, a biomedicina estabeleceu-se na China conjugando-se com a medicina chinesa de forma híbrida.
Ora, como de facto a acupunctura só funciona em contexto, numa sociedade impregnada numa civilização cujo paradigma epistemológico não tem nada a ver com o paradigma epistemológico da sociedade ocidental, obviamente quando praticada incompetentemente e descontextualizada, só pode dar asneira. Mas, por outro lado, os estudos científicos realizados de forma inapropriada com a aplicação de agulhas em pontos específicos no corpo sem a compreensão dos mecanismos de ação da acupunctura, não poderiam ser fiáveis nas suas conclusões. Esse quadro tem levado ao questionamento sobre se os métodos adotados para comprovar a eficácia da acupuntura são os mais indicados, especialmente por partir de um paradigma com fundamentação epistemológica deslocada. Essa forma de proceder subverte o modo clássico singularizado de um método que não se pode acomodar a um escrutínio baseado numa epistemologia diferente. Contudo, vale assinalar que há trabalhos científicos com resultados diferentes, uma vez que o desenho dos ensaios clínicos levou em linha de conta as especificidades da acupunctura que caem fora do paradigma analítico da ciência ocidental.
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