quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

PERFIL DE CARLOS FIOLHAIS POR ALEXANDRE PEREIRA

Porque  sempre gostei de ajudar os estudantes dei no ano passado uma entrevista ao Alexandre Pereira que pretendia realizar um trabalho académico, para o Mestrado Comunicação de Ciência da NOVA FC da disciplina “Jornalismo de Ciência". O tema dele era o meu «perfil». Ouviu outras pessoas para o seu trabalho. Recebi agora o seu trabalho, que já teve avaliação académica. Na minha avaliação, estando bem pesquisado e escrito, achei que havia alguns exageros, mas percebo que venham das fontes que ele ouviu. Ninguém é isento a seu respeito, pelo que não comento o conteúdo e limito-me a agradecer a alguns amigos e conhecidos as palavras amáveis que transmitiram ao Alexandre Pereira.

 Pedi autorização ao autor para publicar aqui no blogue e ele amavelmente anuiu, uma vez que o trabalho não era para publicar em lado nenhum, tendo apenas um propósito formativo.  Agradeço-lhe o interesse pela minha pessoa. Há decerto pessoas mais interessantes para «perfilar», mas ele decidiu «perfilar-me» e eu  só tenho que ficar «perfilado»: 


PERFIL: O verdadeiro sábio de muitos saberes 


Professor, autor, bibliotecário, comunicador, empreendedor. Há várias formas de olhar para Carlos Fiolhais, professor de Física da Universidade de Coimbra jubilado em 2021. Mas uma palavra também pode chegar: cientista. 

 Por Alexandre Pereira 

 É porventura o melhor – seguramente o mais popular – comunicador de ciência português. É também, salta rapidamente à vista, bem humorado: “Não tenho um comunicómetro, mas obrigado por achar isso”, solta no início de uma conversa informal, sentado num cadeirão do Centro Rómulo de Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que fundou em 2008 e ainda dirige, apesar de em maio passado se ter despedido das aulas que deu na instituição à qual está ligado desde 1973 – primeiro aluno, depois professor. 

 Antes desta conversa passou uma hora a apresentar o Rómulo, explicando como foi acumulando livros relacionados com ciência, como estão organizadas as coleções da biblioteca, mostrando mais tarde as reservas nas quais se orgulha de juntar obras antigas e raras. Para a tarde Carlos Fiolhais tem agendada a gravação de um podcast na rádio Observador. Será sobre vulcões, por causa da erupção nas Canárias, e falta-lhe reunir alguma informação. Sabe, porém, onde encontrar no Centro alguns livros sobre o assunto e em pouco tempo resolve o problema. “Quando vou falar a algum lado levo um powerpoint, que é uma boa bengala. Quando não levo as coisas acabam por sair melhor, mais espontâneas, uma pessoa faz mais gestos, tenta ter mais impacto. Mas o que eu gosto mesmo, sempre, é de ter um ou outro livro. Uma pessoa abre-o e faz logo ali uma performance, qualquer que seja a página. Ou então utilizo uns truques, levo já uma dobra nas páginas que interessam e faço um grande número.” 

 Carlos Fiolhais, 65 anos, deixa esta pequena confissão e solta uma gargalhada que lhe é muito frequente. O sentido de humor é qualidade que se lhe reconhece facilmente. José Urbano, professor, orientador de dissertação de licenciatura e mais tarde colega de Fiolhais no Departamento de Física da Universidade de Coimbra (UC), não resiste a contar um episódio antigo: “Passou-se durante uma longa viagem de automóvel entre Coimbra e Jülich, onde eu estava instalado e a minha mulher e os meus três filhos iam ter comigo. No automóvel seguia o professor Carlos Fiolhais, que tendo também de se dirigir à Alemanha aceitou a boleia que lhe foi oferecida. A certa altura, a minha mulher sentiu sono. Perante o perigo, o professor Carlos Fiolhais começou a cantar ópera, para a manter acordada. O que conseguiu, tal era a desafinação que imprimia ao seu canto!” 

 “Se estiver perante uma plateia cheia galvaniza-se. Diz piadas de 15 em 15 segundos, embora algumas só se percebam 45 segundos depois. É muito inteligente”, declara Manuel Coelho e Silva, professor da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade de Coimbra (UC), que em tempos partilhou assento com Fiolhais no Conselho Científico do Instituto de Investigação Interdisciplinar da UC. 

 O comunicador 

 Nasceu em Lisboa. O pai era de Sedielos, Peso da Régua, e a mãe de Selhariz, Vidago. “O meu pai estava a comprar no mercado da Ribeira, a minha mãe estava a vender e eu sou a mais valia da transação. Eu e os meus irmãos, claro.” 

 Carlos Fiolhais tem dois irmãos mais novos – Manuel, também professor de Física em Coimbra, e Rui, que lidera atualmente o Instituto de Segurança Social. O humor sempre presente: “É natural que ouça falar em Rui Fiolhais, ele é mais famoso que eu. Ou pelo menos tem muito mais dinheiro para gerir”, atira. Casado em segundas núpcias, tem um filho a tirar doutoramento em engenharia eletrotécnica no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Passada a primeira infância, Carlos Fiolhais saiu de Lisboa para Coimbra antes de entrar para a então segunda classe do ensino primário. A mudança foi forçada pela carreira do pai, militar da Guarda Nacional Republicana. 

 A entrada no mundo da comunicação fez-se pela leitura ávida de jornais, primeiro, e pela participação em projetos jornalísticos desde tenra idade. No liceu Dom João III, hoje José Falcão, perto do qual morava, foi chefe de redação do jornal O Estudante. Aos 15 anos, um professor de Moral, padre, reconheceu-lhe qualidades e ofereceu-lhe duas páginas nas edições do Correio de Coimbra, o jornal da diocese. “O padre não nos censurava nada, era até progressista, mas a Censura oficial existia e aconteceu cortarem-nos coisas. Depois tinha de se andar ali a jogar com o grafismo”, recorda. Foi também ilustrador, porque “tinha jeito para desenhar, era artista” e chegou a ganhar prémios escolares de artes plásticas. 

 Na faculdade escreveu no jornal O Mocho e mais tarde dirigiu a Gazeta de Física, da Sociedade Portuguesa de Física. Depois de voltar de Frankfurt, na Alemanha, onde fez doutoramento após a licenciatura e um ano como professor assistente em Coimbra, começou a colaborar “em jornais nacionais”. Fê-lo a partir da relação que entretanto iniciou com a editora Gradiva, onde hoje dirige a coleção Ciência Aberta, em cujo catálogo constam vários dos seus 70 livros (cerca de metade são manuais escolares de Física e Química). Carlos Fiolhais fala numa carta escrita a Guilherme Valente, o editor da Gradiva. Guilherme Valente recorda um telefonema que ocorreu depois. A verdade é que o então recém-doutorado físico detetou erros em alguns livros da editora e queria chamar a atenção do editor para eles. “Uma pessoa tem 20 e tal anos e arma-se aos cucos, acha que sabe mais que os outros”, condescende Fiolhais. Seja como for, Guilherme Valente recorda um almoço e o início de uma forte amizade: “Combinámos um encontro em Leiria, onde moro. Ele acabou por almoçar lá em casa, com a minha família, e foi uma empatia imediata, nasceu uma amizade para sempre.”

O professor passou então a traduzir livros para a Gradiva e a publicar recensões na revista do Expresso. Quando ajudaram a fundar o Público, os jornalistas Vicente Jorge Silva e José Vítor Malheiros levaram-no para o novo diário: “Levaram quase a equipa inteira, colaboradores e tudo. Eu escrevia sobre livros, sobre ciência, escrevia que nunca mais acabava e eles pagavam, havia dinheiro, o Belmiro [de Azevedo, presidente da Sonae, entretanto falecido] pagava.”

 O primeiro livro de autor, Física Divertida, publicou-o em 1991 na Gradiva e foi o culminar de várias palestras realizadas em escolas ao longo dos anos. 

 O alvo de elogios 

Quando lançou o primeiro título em parceria com Carlos Fiolhais – Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência, em 2011 – o bioquímico David Marçal, também ex-jornalista e humorista (escreveu no Inimigo Público), detetou desde logo no físico “a grande capacidade de concretizar”, outra característica fácil de escutar quando se fala com pessoas que o conhecem e se cruzaram com ele. 

 Vítor Torres, um dos quatro colegas do curso de Física de Carlos Fiolhais, também fala em “capacidade de trabalho” e junta-se ao coro de elogios “à inteligência, à criatividade e à honestidade”. Guilherme Valente destaca “a qualidade de se emocionar” e o professor José Urbano lembra-se de um aluno “curioso, com extraordinária facilidade de comunicar e de levar a ciência às pessoas”. 

 David Marçal já colaborou com Carlos Fiolhais em mais três livros da coleção Ciência Aberta e numa série de podcast de divulgação de ciência. Chama-se Assim Fala a Ciência e foi uma produção para a plataforma de podcast do Público financiada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde Fiolhais foi coordenador da área do conhecimento. O bioquímico classifica “o amigo mais velho” de forma similar à generalidade das pessoas e acrescenta, com ênfase: “É extremamente culto, conhecedor das várias áreas humanas, da Bíblia ao futebol.” 

 De futebol, curiosamente, ouve-se Carlos Fiolhais falar pouco. É adepto da Académica, mas muito distante, afirmando mesmo que só foi uma vez ver um jogo ao antigo estádio do Calhabé para que o filho, então pequeno, “se inteirasse de toda a linguagem que os adultos usam”. Conta a história entre gargalhadas, confessando ainda: “A minha mulher diz que eu gosto de ver os jogos do Benfica. Temos Sport TV por causa dos filhos dela. Eu não posso ser do Sporting porque o meu pai era e tem de haver conflito geracional. Não posso ser do Porto porque o meu filho é e, além disso, não gosto do Pinto da Costa. Se calhar entre os grandes prefiro o Benfica, mas se fosse mesmo adepto assumia. Só que apenas assumo a Académica.” 

 Quem diz futebol diz política. Carlos Fiolhais classifica-se como apartidário e “muito feliz” por nunca o terem “puxado para a política”. Até hoje apenas apoiou publicamente Jorge Sampaio e Sampaio da Nóvoa em candidaturas à Presidência da República e, na cidade que é a dele desde menino, integrou o movimento cívico Somos Coimbra. “Esteve com José Manuel Silva até ele ser candidato pelo PSD. Aí sentiu que não era aquele o caminho e saiu”, conta Manuel Coelho e Silva, o professor da Faculdade de Desporto. Carlos Fiolhais confirma: “Nós, da Comissão Política, fomos quase os últimos a saber e não concordámos. Não queríamos ser comidos por um partido e saímos.”

 O bibliotecário e historiador de ciência 

 O papel de diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, que assumiu entre 2004 e 2011, marcou-o. Chegou a intitular-se, numa entrevista de vida, “guardião de um tesouro”. O convite do reitor da Universidade de Coimbra entusiasmou-o e de certa forma afastou-o da Física, ao mesmo tempo que o aproximava da História da Ciência: “Entrei num mundo que não era o meu e achei piada. Aquilo tinha 80 funcionários, era a segunda biblioteca do País, com fundos intermináveis, coisas mesmo a sério, desde Bíblias do século XV, uma delas judaica, a originais do Almeida Garrett, como o Frei Luís de Sousa. Tem a primeira Bíblia de Gutenberg com marca do impressor. Não exatamente a primeira, porque essa não tinha marca, mas uma se calhar até mais valiosa. A maioria das obras são ligadas à Igreja. Comecei a interessar-me pela História e a relacioná-la com a Ciência.” 

 O atual diretor da Biblioteca Geral, que enquanto diretor de imprensa da UC promoveu “várias realizações conjuntas de promoção do livro e da leitura” com Carlos Fiolhais, destaca “a grande bonomia” do professor e a já conhecida “gargalhada deliciosa”. João Gouveia Monteiro sucedeu ao sucessor de Fiolhais (José Bernardes, diretor entre 2011 e 2019) mas consegue facilmente enumerar o legado do físico à Biblioteca: “Reorganização interna de serviços, designadamente com a criação do SIBUC - Sistema Integrado das Bibliotecas da Universidade de Coimbra; maior abertura ao exterior; empréstimo domiciliário de livros a não docentes; valorização do piso térreo da Biblioteca Joanina; enriquecimento do património da biblioteca com incorporações relevantes.” 

 O professor 

 Enquanto diretor da Biblioteca Geral, Carlos Fiolhais continuou sempre a dar aulas. E foi nesse período que fundou o Rómulo. “Isto foi crescendo do zero, acho muita piada ao facto de os livros se multiplicarem a olhos vistos. Uns livros chamam os outros”, diz. 

 A última aula do professor de Física ocorreu a 28 de maio, na cadeira de Mecânica Quântica II. A 12 de julho teve uma “segunda última aula”, o verdadeiro jubileu, e aí casou amores, promovendo uma palestra sobre “História da Ciência na Universidade de Coimbra”. 

 Entre tantos papéis desempenhados na vida, há um que destaca, ainda que a custo: “Fui professor toda a vida, gostei de dar aulas e as pessoas dizem-me que algumas aulas saíam bem. Algumas pessoas lembram-se de mim é isso é gratificante. Somos herdeiros dos nossos professores e há gente que se diz minha herdeira, portanto ter sido professor marca-me muito.” 

 Ser bibliotecário também o marcou, ser autor e comunicador marca-o. E Carlos Fiolhais consegue uma vez mais juntar paixões: “Um bibliotecário é um ajudante de professores, que são os autores dos livros. O ser-se autor e comunicador é uma extensão de se ser professor, passa-se a ter alunos mais longe.” 

 Aos 65 anos, Carlos Fiolhais é o que já se viu: diretor do Rómulo Ciência Viva, diretor da coleção Ciência Aberta, colaborador da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Faz programas na rádio Observador e ainda recentemente, em novembro, anunciou workshops online sobre História da Ciência. 

 Não se queixa da vida. “Ao contrário do Fernando Pessoa, que dizia que a vida lhe tinha batido muito, eu acho que ela a mim não bateu. Vale sempre a pena viver mais e por isso costumo dizer: ‘Se me encontrarem morto investiguem bem que não fui eu!’. Uma pessoa acaba sempre por ter surpresas. Acho que amanhã ou depois vai haver outra. Na verdade não sei se haverá, de modo que é melhor ir até lá para ver se há ou não.” 

A conversa foi sempre fluindo, sem grandes formalismos retóricos. Carlos Fiolhais é um homem de comunicação prática. Termina o almoço meio à pressa, preocupado com o podcast combinado para daí a pouco. Consegue entretanto adiá-lo ligeiramente após um telefonema para o profissional da Rádio Observador. “Isto na Alemanha era adiado já para a semana ou para a outra, mas cá há alguma flexibilidade”, sublinha. Com o tempo ganho, ainda faz questão de passar pela livraria do Museu Nacional Machado de Castro. À saída, depara-se com uma exposição temporária de litografias de Paula Rego a partir de um conto de João de Melo intitulado “O Vinho”. Não sabia da existência da exposição ali tão perto do Rómulo e não resiste a entrar. Porque, como resume o editor Guilherme Valente, “nada do que é humano lhe é estranho”. 

 Alexandre Pereira 

Mestrado Comunicação de Ciência NOVA FCSH “Jornalismo de Ciência”
 Lisboa, dezembro de 2021

1 comentário:

Eugénio Lisboa disse...

Belo retrato! O retratado tem o direito de ficar com a cauda perpendicular, como Eliot dizia que ficavam os gatos, quando lhes afagavam o ego, dando-lhes nomes invulgares. Como todos os bons profissionais, o Professor Carlos Fiolhais não viveu exclusivamente no nicho bem exigente da Física. A sua saudável e enérgica curiosidade abriu-lhe muitas outras e sedutoras portas. Como a tantos do gabarito dele. Eu bem o avisei que não pensasse que o estado de reformado ia ser um descanso, porque pessoas como ele têm sempre muito a dar e tanto mais lhes falta o tempo quanto mais parece que este vai sobrar. Malhas que o saber e a energia tecem... Parabéns ao retratista e ao retratado!
Eugénio Lisboa

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