Continuação do Dicionário de Ideias Feitas do escritor Eugénio Lisboa:
Para a 1.ª parte ver:
https://dererummundi.blogspot.com/2021/12/dicionario-de-ideias-feitas-1-parte.html
Devido à sua natureza
coisificada, os clichés
podem ser coleciona-
dos como selos ou…
anedotas.
Anton Zijderveld
Embora
pareçam coisa ligeira, os clichés ou ideias feitas ou frases feitas, têm sido
submetidos a sérias análises, por gente do calibre de Orwell, T. Adorno, W. Benjamin
ou H.Harendt. Os clichés sempre tiveram boa fortuna nas mãos de tiranos e
tiranetes de todos os formatos e cores. São assunto sério, embora se possa
brincar com eles. Flaubert ruminou sobre eles toda a sua vida e não apenas na
fase final de BOUVARD EI PÉCUCHET e
do DICTIONNAIRE DES IDÉES REÇUES. A
Emma Bovary, do seu primeiro romance, já tinha a cabeça cheia dos clichés
ardidos do romantismo serôdio, o que não pouco contribuiu para o enfastiamento
dos seus amantes e para a sua queda final.
Dou hoje
mais um punhado de ideias feitas, colhidas no nosso milieu, um pouco ao acaso.
Não é certo
que esta colheita seja a última, porque o milieu é fértil.
CARLOS REIS – é o maior admirador de Carlos
Reis. Quando passa por um espelho, fixa atentamente a sua imagem ali reflectida
e diz, imitando Peter Sellers, numa situação idêntica: “My God, you are lovely!”
Vai propor o Nobel para si próprio, para evitar que o seu muito amado Saramago
fique eternamente sozinho.
CENTENÁRIOS – bons para se tentar resgatar do
esquecimento escritores ou outros vultos interessantes, suspeitando-se, embora,
que estes remergulharão no esquecimento, no dia seguinte. A propósito, não
esquecer que passa este ano o centenário do “nosso único Nobel”.
CONCERTOS – dizer, com ar de gozo, que Mário
Soares não gostava de os frequentar. Não tinha ouvido e fazia uma boa soneca o
tempo todo. E não se importava nada de o dizer, o que era, aliás,
desnecessário, pois estava bem à vista das pessoas, que preferiam olhar para
ele, em vez de escutarem os já muito ouvidos “clássicos”.
Pode também,
falando-se de concertos, dizer que os da Gulbenkian são muito bons e que não
falha um.
CORRUPTOS – São todos os políticos. São todos a
mesma coisa. Há uma justiça para os ricos (corruptos até dizer chega) e uma
para os pobres (que, coitados, não têm outro remédio senão deixarem-se
corromper). Esta corrupção é endémica e não há nada a fazer, a não ser uma
revolução que faça um saneamento total. Barrela completa. Do que estamos a
precisar é de um novo 25 de Abril, mas, desta vez, à séria.
CRÍTICOS DE ARTE – dizem, sobre as obras que
criticam, coisas inesperadas e extraordinárias, nas quais os próprios artistas
nunca tinham pensado. Aliás, é aos críticos e não aos artistas que compete
pensar. Se fossem os artistas a pensar, não íamos a lado nenhum. Cada macaco no
seu galho.
CRÍTICOS DE LITERATURA – dizem ou não dizem, conforme os
casos, coisas que tenham a ver com a obra criticada (na maior parte dos casos,
não dizem). Citar, escarninhamente, o crítico escocês que dizia nunca ler um
livro, antes de o criticar, para não ficar com ideias preconcebidas. De resto,
se um crítico fala, semanalmente, de três ou quatro livros, como é que se pode
obrigá-lo a lê-los todos. Haja caridade.
DOUTORAMENTO – permite ao recentemente doutorado
passar a falar, com pompa merecida, na sua “preparação científica”. E atirar à cara
de quem não tenha passado por essa prova de fogo, um enorme desprezo, mesmo que
se trate de Leonardo da Vinci. Quem o mandou a ele não se doutorar.
ERNESTO de MELLO E CASTRO – mostrar alguma hesitação em
escrever Mello com dois “l”: antes do 25 de Abril, dava-lhe jeito aquela dupla
e aristocrática consoante; com o 25 de Abril, pareceu-lhe apropriado fazer cair
um “l” e assim aconteceu, dando-lhe porta aberta para ingressar na esquerda
dura, a qual, por sua vez, eventualmente se foi esbatendo. Creio ter recuperado
aquela consoante cheia de sangue azul, que teve de andar escondida, como muitos
aristocratas franceses, durante o Terror (1793).
Mello e
Castro é conhecido e estudado, como poeta vanguardista, concretista,
experimentalista, contabilista, cientista, sofista, extremista, tecnicista,
trapezista, solipsista, catequista, esgrimista e, eventualmente, comunista
(tendo, mais tarde, ganhado juízo e mudado outra vez para elitista). Como se
vê, a nada era alheio o seu talento. Gostava muito que se soubesse que era
engenheiro têxtil (formado em Inglaterra, note-se), o que lhe dava o direito de
se tratar por tu com o Binómio de Newton (no qual fazia afocinhar a ignorância
impotente dos outros poetas).
FILMES – dizer mal, sempre que o filme
pareça bem feito, com boa fotografia, profissional, bem dirigido, bem
interpretado e com uma história cheia de substância. Dizer, com enorme
desprezo, que é um filme “muito linear” e que lhe falta “um toque de
opacidade”. Dar-lhe, com ar de generosidade imerecida, uma estrela e vivó
velho.
GONÇALO M. TAVARES II
– especialista em afirmações que não podem ser verificadas, no género desta:
“Deus gosta mais de harpa do que de violino”. Os jovens acham isto
invulgarmente profundo e fazem bicha para obter autógrafos. Ele dá – por enquanto.
Até um dia entrar em oclusão total, como a Greta Garbo ou Salinger.
LIVRO DIFÍCIL – se tiver de o apresentar, não
hesite, mesmo tratando-se de um livro difícil de digerir. Para não ter de se
chatear, fale de outra coisa qualquer: ninguém reparará porque ninguém ainda
leu o livro e o que V. disser sempre fará um sentido qualquer. O autor do livro
ficará contente, na mesma, por ter sido V. a apresentá-lo. E meterá isso no
curriculum.
MANOEL DE OLIVEIRA – os seus filmes são chatos, muito
lentos, alguns actores não sabem representar, mas fartou-se de ganhar prémios
internacionais. Ninguém tem pachorra para ver os seus filmes (excepto o ANIKI BÓBÓ e o DOURO, FAINA FLUVIAL), mas é uma glória nacional. Convinha não lhe
fazer muitas perguntas sobre os seus filmes, porque ele dava respostas muito
desconcertantes. Quando era inquirido sobre uma passagem difícil de um romance
da Agustina, que ele andava a filmar, respondia, enfadado, que lhe perguntassem
a ela. Ele só filmava, era o que faltava, ainda ter de compreender o que ela
queria dizer com o que escrevia. Talvez ela soubesse explicar, se ainda se
lembrasse.
MATEMÁTICA – fica bem aos literatos dizerem
que, nesta matéria, nunca deram uma para a caixa. Cai bem, no milieu literário.
Tem sempre muito cachet esta confissão sorridente de incompatibilidade com os
números. Fica sibilinamente inculcado que esta falta de vocação para as
abstracções matemáticas é, por assim dizer, uma garantia de invulgar inclinação
para as letras. Convém inserir esta inapetência no curriculum. Se, por grande
bizarria e improbabilidade, gostar um bocadinho de matemática, não o confesse.
Pode ser-lhe fatal.
(Hoje, fico por aqui, mas voltarei
em breve, porque as ideias feitas
são a mercadoria mais bem distri-
buída neste nosso Portugalinho.)
Eugénio Lisboa
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