sábado, 8 de janeiro de 2022

DICIONÁRIO DE IDEIAS FEITAS 2ª PARTE

 

Continuação do Dicionário de Ideias Feitas do escritor Eugénio Lisboa:

Para a 1.ª parte ver:

https://dererummundi.blogspot.com/2021/12/dicionario-de-ideias-feitas-1-parte.html 


Devido à sua natureza

coisificada, os clichés

podem ser coleciona-

dos como selos ou…

anedotas.

Anton Zijderveld

 

Embora pareçam coisa ligeira, os clichés ou ideias feitas ou frases feitas, têm sido submetidos a sérias análises, por gente do calibre de Orwell, T. Adorno, W. Benjamin ou H.Harendt. Os clichés sempre tiveram boa fortuna nas mãos de tiranos e tiranetes de todos os formatos e cores. São assunto sério, embora se possa brincar com eles. Flaubert ruminou sobre eles toda a sua vida e não apenas na fase final de BOUVARD EI PÉCUCHET e do DICTIONNAIRE DES IDÉES REÇUES. A Emma Bovary, do seu primeiro romance, já tinha a cabeça cheia dos clichés ardidos do romantismo serôdio, o que não pouco contribuiu para o enfastiamento dos seus amantes e para a sua queda final.

Dou hoje mais um punhado de ideias feitas, colhidas no nosso milieu, um pouco ao acaso.

Não é certo que esta colheita seja a última, porque o milieu é fértil.


CARLOS REIS – é o maior admirador de Carlos Reis. Quando passa por um espelho, fixa atentamente a sua imagem ali reflectida e diz, imitando Peter Sellers, numa situação idêntica: “My God, you are lovely!” Vai propor o Nobel para si próprio, para evitar que o seu muito amado Saramago fique eternamente sozinho.

CENTENÁRIOS – bons para se tentar resgatar do esquecimento escritores ou outros vultos interessantes, suspeitando-se, embora, que estes remergulharão no esquecimento, no dia seguinte. A propósito, não esquecer que passa este ano o centenário do “nosso único Nobel”.

CONCERTOS – dizer, com ar de gozo, que Mário Soares não gostava de os frequentar. Não tinha ouvido e fazia uma boa soneca o tempo todo. E não se importava nada de o dizer, o que era, aliás, desnecessário, pois estava bem à vista das pessoas, que preferiam olhar para ele, em vez de escutarem os já muito ouvidos “clássicos”.

Pode também, falando-se de concertos, dizer que os da Gulbenkian são muito bons e que não falha um.

CORRUPTOS – São todos os políticos. São todos a mesma coisa. Há uma justiça para os ricos (corruptos até dizer chega) e uma para os pobres (que, coitados, não têm outro remédio senão deixarem-se corromper). Esta corrupção é endémica e não há nada a fazer, a não ser uma revolução que faça um saneamento total. Barrela completa. Do que estamos a precisar é de um novo 25 de Abril, mas, desta vez, à séria.

CRÍTICOS DE ARTE – dizem, sobre as obras que criticam, coisas inesperadas e extraordinárias, nas quais os próprios artistas nunca tinham pensado. Aliás, é aos críticos e não aos artistas que compete pensar. Se fossem os artistas a pensar, não íamos a lado nenhum. Cada macaco no seu galho.

CRÍTICOS DE LITERATURA – dizem ou não dizem, conforme os casos, coisas que tenham a ver com a obra criticada (na maior parte dos casos, não dizem). Citar, escarninhamente, o crítico escocês que dizia nunca ler um livro, antes de o criticar, para não ficar com ideias preconcebidas. De resto, se um crítico fala, semanalmente, de três ou quatro livros, como é que se pode obrigá-lo a lê-los todos. Haja caridade.

DOUTORAMENTO – permite ao recentemente doutorado passar a falar, com pompa merecida, na sua “preparação científica”. E atirar à cara de quem não tenha passado por essa prova de fogo, um enorme desprezo, mesmo que se trate de Leonardo da Vinci. Quem o mandou a ele não se doutorar.

ERNESTO de MELLO E CASTRO – mostrar alguma hesitação em escrever Mello com dois “l”: antes do 25 de Abril, dava-lhe jeito aquela dupla e aristocrática consoante; com o 25 de Abril, pareceu-lhe apropriado fazer cair um “l” e assim aconteceu, dando-lhe porta aberta para ingressar na esquerda dura, a qual, por sua vez, eventualmente se foi esbatendo. Creio ter recuperado aquela consoante cheia de sangue azul, que teve de andar escondida, como muitos aristocratas franceses, durante o Terror (1793).

Mello e Castro é conhecido e estudado, como poeta vanguardista, concretista, experimentalista, contabilista, cientista, sofista, extremista, tecnicista, trapezista, solipsista, catequista, esgrimista e, eventualmente, comunista (tendo, mais tarde, ganhado juízo e mudado outra vez para elitista). Como se vê, a nada era alheio o seu talento. Gostava muito que se soubesse que era engenheiro têxtil (formado em Inglaterra, note-se), o que lhe dava o direito de se tratar por tu com o Binómio de Newton (no qual fazia afocinhar a ignorância impotente dos outros poetas).

FILMES – dizer mal, sempre que o filme pareça bem feito, com boa fotografia, profissional, bem dirigido, bem interpretado e com uma história cheia de substância. Dizer, com enorme desprezo, que é um filme “muito linear” e que lhe falta “um toque de opacidade”. Dar-lhe, com ar de generosidade imerecida, uma estrela e vivó velho.

GONÇALO M. TAVARES II – especialista em afirmações que não podem ser verificadas, no género desta: “Deus gosta mais de harpa do que de violino”. Os jovens acham isto invulgarmente profundo e fazem bicha para obter autógrafos. Ele dá – por enquanto. Até um dia entrar em oclusão total, como a Greta Garbo ou  Salinger.

LIVRO DIFÍCIL – se tiver de o apresentar, não hesite, mesmo tratando-se de um livro difícil de digerir. Para não ter de se chatear, fale de outra coisa qualquer: ninguém reparará porque ninguém ainda leu o livro e o que V. disser sempre fará um sentido qualquer. O autor do livro ficará contente, na mesma, por ter sido V. a apresentá-lo. E meterá isso no curriculum.

MANOEL DE OLIVEIRA – os seus filmes são chatos, muito lentos, alguns actores não sabem representar, mas fartou-se de ganhar prémios internacionais. Ninguém tem pachorra para ver os seus filmes (excepto o ANIKI BÓBÓ e o DOURO, FAINA FLUVIAL), mas é uma glória nacional. Convinha não lhe fazer muitas perguntas sobre os seus filmes, porque ele dava respostas muito desconcertantes. Quando era inquirido sobre uma passagem difícil de um romance da Agustina, que ele andava a filmar, respondia, enfadado, que lhe perguntassem a ela. Ele só filmava, era o que faltava, ainda ter de compreender o que ela queria dizer com o que escrevia. Talvez ela soubesse explicar, se ainda se lembrasse.

MATEMÁTICA – fica bem aos literatos dizerem que, nesta matéria, nunca deram uma para a caixa. Cai bem, no milieu literário. Tem sempre muito cachet esta confissão sorridente de incompatibilidade com os números. Fica sibilinamente inculcado que esta falta de vocação para as abstracções matemáticas é, por assim dizer, uma garantia de invulgar inclinação para as letras. Convém inserir esta inapetência no curriculum. Se, por grande bizarria e improbabilidade, gostar um bocadinho de matemática, não o confesse. Pode ser-lhe fatal.

 

(Hoje, fico por aqui, mas voltarei

em breve, porque as ideias feitas

são a mercadoria mais bem distri-

buída neste nosso Portugalinho.)

 

Eugénio Lisboa 

 

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