quinta-feira, 19 de agosto de 2021

O VERÃO – ALGUMAS OBSERVAÇÕES

 Poema de Eugénio Lisboa:

 

Pode ser que seja Abril

o mais cruel dos meses,

como disse um poeta

mal afinado com a natureza.

Seja como for, a ideia ficou

e vai durando, embora falsa.

Abril é um mês qualquer,

embora se diga que em Abril chove muito.

Mas Abril não é mais cruel

do que qualquer outro mês.

Cruel, sim, atroz, é o verão,

com o seu sol ardente e mortífero,

que acende a luz pavorosa

da nossa lucidez.

A luz do verão ilumina sem piedade

as zonas obscuras e ameaçadoras

da nossa condição,

torna clara e quase obscena

a dura realidade da vida.

O verão não mente, ilumina.

O verão não esconde, mostra.

O verão acena promessas enganadoras,

visto que a sua luz, iluminando a realidade,

nos ofusca também para ela.

Há gente demais, no verão,

gente horrorosamente feia, repugnante,

mal vestida de propósito.

O verão é enviesado, traiçoeiro,

mas não exactamente mentiroso.

As ilusões que o verão oferece são suicidas.

Foi no verão – nunca o esqueci! – que o amor de Mítia

o levou a pôr fim à vida: a luz cruel do verão

tornou atrozmente claro que não havia saída

para o seu desespero, no romance de Bunine,

que eu li, adolescente, e nunca esqueci.

O amor intenso e não correspondido de Mítia,

cuja não solução a luz crua de verão tão bem esclareceu,

resumiu, em medalha assassina,

tanto amor desperdiçado que o sol de verão

escancaradamente desvela, para nossa mortal tortura.

O verão é o mais cruel dos assassinos,

porque anuncia, muito evidentes, mundos deslumbrantes

que não existem,

ou que, existindo, não poderemos alcançar.

O sol violento de verão acende em nós uma lucidez,

que não é boa, porque nos deprime e nos mata.

O verão é um logro perigoso.

Este sol intenso solta, em nós, demónios que não dominamos.

O verão, mesmo não mentindo,

mente com quantos dentes tem na boca.

O verão mata tanto,

como qualquer guerra ou surto de peste.

No verão, morre-se à míngua de excesso

(a propósito, o Mário de Sá-Carneiro morreu em Abril,

porque não tinha dinheiro para chegar até Junho,

caso contrário, morreria no verão,

à míngua de excesso, como tão bem profetizara).

O verão é, apocalipticamente,

aquele vírus terminal, para que não há vacina.

Quando se nos abrem as portas do verão,

deparamos com um grande aviso, em letras descomunais:

LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE.

 

Eugénio Lisboa

 

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