Minha recensão no I de ontem:
O norte-americano Ted Chiang (53
anos) é um dos mais premiados autores de ficção científica, apesar de ser autor
de apenas duas colectâneas de contos. O seu primeiro livro, História da Sua Vida e Outros Contos,
saiu nos Estados Unidos em 2002 (Tor Books)) e no Brasil em 2016 (Intrínseca).
Acaba se sair em Portugal o seu segundo livro, publicado no original em 2009
(Knopf). Intitula-se Exalação e tem a
chancela da Relógio d’Água, sendo o n.º 20 da colecção “Ficção Cientifica e Fantasia”.
Esta colecção tem oito livros do norte-americano Philip K. Dick, incluindo
títulos que passaram ao grande ecrã como Será
que os Andróides Sonham com Ovelhas Eléctricas? (no cinema, Blade Runner) e Relatório Minoritário,
e livros clássicos de outros autores, também adaptados ao cinema, como A Guerra dos Mundos e O Homem Invisível, do inglês H. G. Wells,
e Duna, do norte-americano Frank Herbert
(para já não falar do muito recente, mas já muito badalado O Problema dos Três Corpos, do chinês Liu Cixin). A tradução de Exalação, que não deve ter sido fácil –
há neologismos como “digientes” (entes digitais) e “vidiário” (diário em vídeo)
– tem a qualidade a que o poeta José Miguel Silva já nos habituou. Já a revisão
de texto deixou escapar algumas gralhas como, na p. 239, “Algumas pessoas ficam
obcecadas com os primas” (em vez de “prismas”).
Chiang é filho de chineses que,
com a revolução comunista, fugiram primeiro para Taiwan e depois para os
Estados Unidos onde ele nasceu (em Port Jefferson, perto de Nova Iorque). Fez
um Curso de Ciências de Computação na Universidade Brown, em Providence, e está
há mais de duas décadas a residir em Bellevue, perto de Seattle, oferecendo os
seus serviços de escritor técnico para empresas de software. Trabalhou na Microsoft e hoje é freelancer. A sua escrita ficcional está nos antípodas da escrita
técnica. Estreou-se na ficção científica aos 23 anos com o conto “The Tower of Babylon”, publicado em 1990 na lendária revista
Omni, que misturava ciência e ficção
científica (existiu uma versão portuguesa, dirigida por João Paulo Cotrim, na
qual tive a honra de colaborar). Com esse escrito ganhou o seu primeiro prémio Nébula.
Hoje é um escritor consagrado na área que escolheu, apesar da sua relativamente
escassa produção, tendo já ganho os mais prestigiados prémios na área da ficção
científica: quatro Prémio Nebula, quatro Prémio Hugo e quatro Prémio Locus. O
seu conto História da Sua Vida, que
deu o título ao seu primeiro livro,
foi adaptado ao cinema em 2016, estando na base do filme Arrival, em português O
Primeiro Encontro, dirigido pelo franco-canadiano Denis Villeneuve e
interpretado pelos actores norte-americanos Jeremy Renner e Amy Adams. Ted
Chiang também obteve reconhecimento académico: é escritor visitante na
Universidade de Notre Dame, em Indiana.
Os seus enredos de ficção
científica primam pela originalidade. Colocam o leitor perante situações que o
fazem reflectir. Entre os recenseadores, há quem fale de ficção científica “filosófica”
ou “humanista”. Não há na sua prosa as confusões das “guerras dos mundos”, mas
sim situações incomuns de base científica ou tecnológica que permitem levantar
as grandes questões da humanidade, por exemplo a magna questão de saber se
existe determinismo estrito ou se dispomos de uma margem razoável de livre-arbítrio.
Tenho para mim que toda a ficção científica, que li muito mais em jovem do que
leio hoje, é, de alguma maneira, filosófica e humanista. Trata-se de observar o
ser humano em cenários e dilemas onde a natureza humana se possa revelar com
maior nitidez. Coloca-se o homem num fato de astronauta em Marte ou num buraco
negro, com o fito de melhor o conhecer: ir para longe é sempre uma maneira de
chegar mais perto. Esta característica da ficção científica está bem nítida em
Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, dois gigantes que influenciaram o jovem Chiang.
A moderna ficção científica é a continuação da antiga.
O segundo livro de Chiang inclui
nove contos, dos quais só dois são inéditos. Os outros tinham sido publicados
em revistas de ficção científica e mesmo numa revista científica, a Nature, que gosta de piscar o olho à
ficção (já publicou textos ficcionais do biólogo João Ramalho Santos). O primeiro
conto, intitulado “O Mercador e o Portal do Alquimista”, passa-se em Bagdade e
no Cairo de há séculos: contendo histórias dentro da história, como nas Mil e Uma Noites, descreve uma máquina
do tempo, um tema tratado por H. G. Wells num outro seu clássico, A Máquina do Tempo. Nos “Comentários às
Histórias” que surgem no final, o autor explica a génese e a intenção dos seus
contos. No primeiro partiu da proposta
de uma máquina do tempo feita pelo físico norte-americano Kip Thorne (Prémio
Nobel da Física de 2017 e colaborador científico dos filmes Contacto e Interstellar), materializando-a na civilização árabe, impregnada
por um pensamento fatalista. Não existe aqui a possibilidade de interferir no
passado, mas sim e tão só a de compreender o decurso do tempo. O conto termina
assim: “Nada apaga o passado. Existe o arrependimento, existe a penitência, e
existe o perdão. Isso é tudo, mas é suficiente.”
O segundo conto “Exalação”, inspirado
numa história de Philip K. Dick, remete-nos para um cientista extraterrestre,
inteiramente mecânico, que, por auto-axame (ele próprio se intitula
“anatomista”), consegue descobrir o segredo da vida no seu mundo: ela só existe
porque há uma diferença de pressão de ar. A inspiração é a Segunda Lei da Termodinâmica,
segundo a qual a “morte térmica” se dá com o máximo de entropia, isto é, a
completa indiferenciação entre partes do sistema. O cientista deixa, antes da
morte do seu mundo, uma mensagem: “Embora eu esteja já morto há muito quando
leres isto, explorador, quero deixar-te uma exortação de despedida. Contempla a
maravilha que é a existência, e alegra-te por seres capaz de o fazer. Sinto que
tenho o direito de te dizer isso porque, enquanto gravo estas palavras, estou a
fazer exactamente o mesmo.”
O terceiro conto, “O Que Se
Espera de Nós”, é o mais breve de todos: não chega a três páginas. Descreve um gadget, o “Predictor”, só com um LED e um botão, que desafia o livre-arbítrio:
“Se tentarmos premir o botão com a luz apagada, esta acende-se imediatamente, e
por muito rápidos que sejamos, nunca o conseguimos apertar antes de ter passado
um segundo. Se ficarmos à espera que a luz pisque, com a intenção de só depois
premirmos o botão, ela não acende. Falamos o que fizermos, a luz precede sempre
o aperto do botão. Não há maneira de enganar um Predictor.”
O quarto conto, “O Ciclo de Vida
dos Objectos de Software”, é o maior de todos: estende-se por 90 páginas. Uma
rapariga que foi tratadora num jardim zoológico e um rapaz que cria desenhos
animados trabalham para uma companhia de software
que desenvolve os “digientes”, uma espécie de tamagotchies digitais. Nos comentários, o autor explica a sua
ideia: partiu do princípio de que a inteligência artificial não nasce feita,
mas precisa de um processo de educação, ao longo de duas décadas, tal como a
inteligência natural. As relações entre humanos e “digientes” fazem-nos pensar:
poderão os “digientes” algum dia tornar-se humanos?
O conto seguinte, “A Ama Automática
de Dacey”, de novo curto, remete-nos para o tempo vitoriano, descrevendo um mecanismo
imaginário para cuidar de crianças. Ao contrário do conto anterior, onde as
máquinas eram tratadas por humanos, aqui os humanos são tratados por máquinas.
Depois vem “A Verdade de Facto, a
Verdade de Sentimento”, uma das histórias de que mais gostei. Explora as
possibilidades e perigos das memórias digitais, fazendo-nos pensar sobre os
inconvenientes do excesso de memória. Entremeia uma história de missionários
numa tribo primitiva, que ensinam a escrita, cujo grande poder é o de guardião
da memória. Mas, como o título sugere, há várias verdades que a memória pode
guardar.
No conto “O Grande Silêncio”
compara-se a dificuldade de comunicação com extraterrestres com a dificuldade
de comunicação entre os humanos que construíram o radiotelescópio de Arecibo,
em Porto Rico, e os papagaios que habitam uma floresta das redondezas. Por sua
vez, o tema de “Ônfalo” (ou centro do mundo) é deveras curioso: Chiang imagina
um mundo ultrarreligioso, onde a doutrina criacionista reina devido à abundância
de provas, mas onde novas observações arriscam abalar a crença arreigada. A
questão é: Ocupamos ou não um lugar central no Universo? Ou, se se quiser: “Que
relação existe entre ciência e religião?
Finalmente, no conto “A Ansiedade
É a Vertigem da Liberdade” o autor explora o tema dos universos paralelos, que
se costuma associar à teoria quântica. Um dispositivo quântico, dito “prisma”, permite
a uma pessoa estabelecer contacto consigo própria, num outro ramo da sua
história de vida. Por exemplo, a pessoa pode usar o prisma se estiver
interessado em saber como teria sido a sua vida se não tivesse casado com a
pessoa com quem casou. Mais uma vez assoma o tema do determinismo e do livre-arbítrio.
Exalação foi muito elogiado por Barack Obama, que o incluiu no seu rol de livros de Verão de 2019, e também pela escritora Joyce Carol Oates, um nome recorrente nas previsões de Nobel da Literatura, num artigo da revista The New Yorker. Além disso entrou no top de livros do ano do jornal The New York Times. Já há duas propostas para adaptações cinematográficas de dois contos. Vale, de facto, a pena lê-lo em português!
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