sexta-feira, 6 de agosto de 2021

COVADONGA VALDALISO E OS MUSEUS DE LISBOA


Minha recensão no I de ontem:

Quantos museus existem em Lisboa? Covadonga Valdaliso, investigadora espanhola de História, especialista na Baixa Idade Média na Península Ibérica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, colocou a questão a uma dúzia de pessoas do seu círculo, todas residentes na capital e com cursos superiores, e a conclusão foi que devia haver entre 25 e 50 museus, dos quais eles tinham visitado 15 (cinco deles no ano anterior). Mas há mais.

De facto, não existindo nenhuma guia dos museus de Lisboa, Valdaliso deu um contributo para essa obra ao publicar agora o livro Museus de Lisboa na colecção “Retratos” da Fundação Francisco Manuel dos Santos. No final listou 71 museus. Se ela me tivesse perguntado, teria dito que eu, nascido em lisboa, mas residente há muito em Coimbra, já visitei 33 desse rol, portanto quase metade. Depois de ter lido com gosto o referido livro, que é pequeno como os outros da colecção, fiquei com grande apetite de conhecer mais.

O desafio era assaz interessante: O editor perguntou a Valdaliso, licenciada em História em Universidade de Cantábria, em Santander, doutorada em História Medieval na Universidade de Valladolid, com um pós-doutoramento na Universidade de Coimbra e recém-estabelecida como historiadora em Lisboa, o que tinha a dizer sobre os museus ulissiponenses.

E há tanta coisa a dizer sobre esses museus que se pode mesmo concluir que Lisboa é uma cidade de museus. A autora conclui o seu livro dizendo: “Na minha mente, a cidade agora não é maior em largura ou em comprimento, mas expandiu-se dentro de si própria e cresce cada dia que encontro um novo motivo para atravessar as portas de um museu”. Há, para toda a gente, uma Lisboa escondida no labirinto dos museus que a povoam.

Que museus mais impressionaram a autora? Ela não o diz directamente, mas depreende-se que o Museu Geológico, na Rua da Academia de Ciências, desconhecido de muitos, teve nela forte impacto, pois é por ele que se estende nas páginas do seu ”proémio”. E percebe-se também que o Museu do Fado a impressionou, dado que o título de um capítulo, “Amâncio e Adelaide”, remete para ele: os nomes referem.se aos figurantes do quadro “O Fado”, de José Malhoa (1910), que se pode ver nesse museu apesar de pertencer ao Museu da Cidade, ele um fadista condenado por vários crimes, e ela uma libertina, como mostra a pose, a cicatriz na face e a tatuagem na mão. Sendo a autora historiadora medieval, sabe do que fala quando diz que no Museu Arqueológico do Carmo, situado na ruína que ficou do grande terramoto de Lisboa, está ali o “túmulo do rei D. Fernando, que na altura em que estava em Santarém foi primeiro monumental e depois funcional – utilizado como bebedouro para cavalos – e agora, no museu, exibe o seu anjo inclinado a flutuar entre estrelas.” Como não poderia deixar de ser, é óbvio que gosta do Museu da Gulbenkian (em particular da loja e eu, que lá vou muitas vezes, concordo em absoluto), o Museu Nacional da Arte Antiga e o Museu do Oriente. Esperava que ela tivesse falado mais do Museu do Azulejo, uma verdadeira pérola. E do Museu da Marinha, que é em larga medida único no mundo. E também esperava que tivesse falado mais dos museus de ciência como a Central Tejo no MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, que está na capa, o Museu Nacional de História Natural e da Ciência, e o Pavilhão do Conhecimento – Ciência Viva, a cujo Conselho Público presido (deste só diz que tem bilhetes caros). 

O leitor não encontra aqui um guia dos museus alfacinhas, mas   antes um roteiro sentimental, bastante bem escrito, de alguém que durante cerca de um ano (com uma interrupção forçada pela covid) deambulou anonimamente pelos museus de que fala. Tendo reunido muito material, ela própria nega que ele chegue para o tal guia, que exigiria mais tempo. Escreve: “Se o guia fosse um jantar esta autora estaria apenas nas entradas”. Trata-se, no fundo, de um convite a entrar nos museus de Lisboa. 

Um dos méritos do livro reside na exposição de relações entre os vários museus. “Eu pretendia visitar todos os museus como se juntos fossem apenas um, e por isso reparava em paralelismos e ligações. Procurava também singularidades. Queria compreender, mas também ficar surpreendida.” A autora pretendia ainda mostrar “alguns dos infinitos percursos que podem ser desenhados, e transitados, a partir destes espaços anarquicamente espalhados pelo mapa da cidade”. 

Valdaliso começou por dedicar algum tempo à descoberta dos museus na Internet, que descreve num capítulo. Avisa-nos: “Aquilo que aparece impresso ou nas páginas da Internet nem sempre é como dizem e são muitas coisas que não aparecem.” Tal como nos outros museus nacionais, devido a falta de meios, nem sempre se encontra o que se espera. 

No capitulo dos museus virtuais, ao alcance dos leitores em férias, de entre as sugestões da autora, destaco o Museu da RTP, o Museu das Artes Decorativas Portuguesas, a Galeria Virtual do Palácio Nacional da Ajuda, o Museu de São Roque. Inclui também os arquivos on-line de Museu da Saúde, do Museu Geológico, a Matriz-Net (catálogo colectivo de museus portugueses, que inclui doze de Lisboa) e o Museu do Instituto Português de Cartografia e Cadastro (este apenas virtual).

No capitulo da preparação das vistas, fiquei a saber que o Museu da Saúde só se pode visitar às quartas-feiras. É pouco! Para quando um grande museu da saúde sempre aberto? Entre os sítios agradáveis onde se pode ficar, mesmo depois da visita, a autora elenca o Museu Nacional de Etnologia, o Museu de Lisboa (Palácio Pimenta), o Museu da Sociedade de Geografia, o Museu do Oriente e o Museu Militar. Indica a disponibilidade, nalguns casos, de bilhetes conjuntos para um grupo de museus.

Valdaliso escreve: “Entrar num museu não se diferencia muito de abrir um livro ou começar a ver um filme”. Conta-nos, em pinceladas rápidas, as suas impressões de visita. E alerta para o facto de muitos museus, mesmo sem o dizerem explicitamente, terem subjacentes certos discursos ou mensagens. O que é natural, digo eu: o mesmo se passa num livro ou num filme. A autora não fala da polémica do Museu das Descobertas, que foi uma promessa do edil lisboeta. Podia ainda ter falado mais da óbvia falta de recursos dos museus públicos portugueses.

Entre os pormenores curiosos em que a autora reparou está a legenda de um busto no Museu Nacional de Etnologia: “O busto do senhor que gostaríamos de saber quem era.“ Refere também as estelas com a escrita do Sudoeste no Museu Nacional de Arqueologia, uma escrita pré-história encontrada no Alentejo que ainda ninguém conseguiu decifrar. E chama a atenção, entre outros, para o quadro “A Blusa Azul”, dos anos 20, de Adriano Sousa Lopes, que está no Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado.

Uma nota sobre a colecção “Retratos” na qual se insere o livro. Salvo erro, este já é o número 53 (eles não estão numerados) da colecção dirigida por António Araújo, e que faz boa companhia à colecção “Ensaios”, que já ultrapassou uma centena de títulos. Na “Retratos”, o estilo é mais jornalístico, mas os autores são por vezes escritores conhecidos como Bruno Vieira Amaral, Filipa Melo, Afonso Cruz e João Tordo. Julgo que o livro de Valdaliso é o primeiro escrito por uma estrangeira, embora residente em Portugal e apaixonada por Lisboa. O livro mais vendido terá sido, devido à polémica que suscitou, Alentejo Prometido, de Henrique Raposo, mas aquele que mais gosto, até porque colaborei nele, é Cientistas Portugueses, de David Marçal. São livros muito baratos que se lêem num instantinho. Como brinde trazem dentro um postal ilustrado com uma foto artística (este tem a vista aérea do MAAT, de Fernando Guerra, que consta da capa).

Por último, uma nota pessoal sobre a minha relação com os museus. Nasci no centro de Lisboa,  na Maternidade Alfredo da Costa, muito perto de Casa-Museu Doutor Anastácio Goncalves, sobre a qual já me disseram maravilhas, mas que nunca visitei. Cresci em Belém, e cedo visitei quase todos os museus da zona, desde o Museu da Marinha (o meu preferido) ao Museu dos Coches (ainda não fui depois da mudança de edifício; tentei ir, mas não me venderam bilhete pois faltava uma hora para o fecho), passando pelo Museu de Arte Popular e pelo Museu Nacional de Arqueologia. Fiz estudos de doutoramento em Frankfurt am Main, na Alemanha, onde há, na margem esquerda do rio, vários museus (Museus da Arquitectura, do Cinema, e das Artes Aplicadas e o famoso Staedtel), onde levava as pessoas que me visitavam. Em Coimbra colaborei na organização do Museu da Ciência da Universidade, agora um pouco abandonado. Como adoro visitar museus, conheço muitos por todo o lado do mundo desde o Hermitage, em São Petersburgo, até ao Museu da Coca-Cola, em Atlanta. 

Depois de ler Museus de Lisboa, fiquei com vontade de ver alguns museus lisboetas que, para minha vergonha, ainda não vi.  Além da Casa-Museu Doutor Anastácio Gonçalves, quero ver o Museu da Saúde, o Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa, o Museu Egas Moniz, o Museu Maynense (um dos mais antigos mencionados neste livro) e o Museu Nacional do Desporto.

Os museus são um mundo inesgotável. Escreve a historiadora: “Penso que reuni bastantes peças do puzzle, mas ainda não o completei.  Em consequência, este texto é apenas um esboço dessa, um bocado utópica e muito subjectiva, imagem completa.” Agora, em dias que são de férias para muitos, é tempo de voltar aos museus, em Lisboa ou noutros sítios.

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