Uma das minhas recensões recentes no jornal I (sempre às quintas-feiras):
Carlo Petrini, 72 anos, jornalista,
gastrónomo, sociólogo e activista social italiano, fundou em 1986 o movimento
internacional Slow Food, que hoje congrega mais de cem mil pessoas em
160 países (incluindo Portugal), cujo fito é a promoção do direito ao prazer,
defendendo o primado da alimentação e pugnando pela qualidade e pelo justo
valor dos alimentos. O seu lema é “Bom, limpo e justo”.
Petrini ganhou
proeminência quando se opôs ao estabelecimento de mais uma sucursal da MacDonald’s
no centro de Roma. Para os defensores do Slow Food, cujo símbolo é um
caracol, uma refeição deve proporcionar prazer, demorando o tempo que for
necessário. As matérias-primas devem vir de produções locais, respeitando as
tradições agrícolas, a biodiversidade e a sazonalidade. Quer dizer, a comida
deve ser “amiga” do ambiente, da agricultura tradicional e dos agricultores
locais. Os consumidores devem desenvolver a sua cultura alimentar, conhecendo
os alimentos que estão a comer e o modo como foram preparados. Petrini e seus
companheiros opõem-se à massificação dos sabores, à agricultura mecanizada e ao
uso de organismos geneticamente modificados.
Num manifesto de 1987,
assinado além de Petrini por uma dúzia de notáveis italianos, entre os quais Dario
Fo, futuro Nobel da Literatura, a mensagem é clara: “Somos escravizados pela rapidez e sucumbimos todos ao mesmo
vírus insidioso: a Fast Life, que destrói os nossos hábitos, penetra na
privacidade dos nossos lares e nos obriga a comer Fast Food. O Homo Ssapiens,
para ser digno desse nome, deveria libertar-se da velocidade antes que ela o
reduza a uma espécie em vias de extinção. Um firme empenho na defesa da
tranquilidade é a única forma de se opor à loucura universal da Fast Life.
Que nos sejam garantidas doses apropriadas de prazer sensorial e que o prazer
lento e duradouro nos proteja do ritmo da multidão que confunde frenesim com
eficiência. A nossa defesa deveria começar à mesa com o Slow Food.”
O movimento, com o qual travei conhecimento na Expo 2015 de Milão sobre
alimentação, criou uma editora (Slow Food Editore) e uma Universidade de
Ciências Gastronómicas, em Pollenzo (Piemonte). Para além do Slow Food,
Petrini também criou a comunidade Terra Madre, rede de pessoas unidas
pela protecção da natureza. Autor de vários livros, foi considerado em 2004 pela
Time um dos “heróis do nosso tempo”, na categoria de “inovadores”, e em
2008 pelo The Guardian uma das “50 pessoas que provavelmente salvarão o
mundo”. Em 2004 recebeu a ordem de Grande Oficial da República Italiana e, em 2013, o prémio Campeão da Terra, outorgado
pelo Programa Ambiental das Nações Unidas, a maior homenagem na área ambiental
atribuída pelas Nações Unidas.
Em português tinha apenas o livro Uma Ideia de Felicidade (Porto Editora,
2014), escrito a meias com o chileno Luís Sepúlveda, falecido com COVID-19 no
ano passado. Acaba de sair entre nós o seu livro O Futuro da Terra, com
o subtítulo Diálogos com o Papa Francisco sobre Ecologia Integral (Casa
das Letras). A capa mostra o “papa do Slow Food” com o verdadeiro papa,
os dois sorridentes.
Os dois tornaram-se amigos após a publicação da encíclica Laudato Si’
(Paulus, 2015), que defende o conceito de Ecologia Integral. Encontraram-se em três
ocasiões, em 2018, 2019 e 2020, estando a conversa transcrita no livro.
Completa esses diálogos um conjunto de textos de Petrini e do papa Francisco,
que está organizado em temas: Biodiversidade, Economia, Migrações, Educação e Comunidade.
O livro é antecedido por um prefácio de Domenico Pompili, bispo de Rieti, na
Itália central, amigo com quem Petrini fundou as comunidades Laudato Si’,
grupos de pessoas irmanadas pela materialização das ideias contidas no
documento papal.
Petrini enfatiza a sua condição de agnóstico na sua introdução às conversas com o papa: “Somos
os dois pessoas com histórias de vida extremamente diferentes, e no entanto estabelecemos
laços muito rapidamente. Um agnóstico e um papa, um ex-comunista e um católico,
um italiano e um argentino, um gastrónomo e um teólogo.” Há sintonias entre os
dois, para além, da defesa comum do ambiente. Os dois tem origens no Piemonte,
no Norte de Itália, Petrini nasceu na localidade de Bra, a 50 quilómetros de Turim,
tendo tido um avô ferroviário, e o pai de Jorge Bergoglio, também ferroviário,
nasceu em Portacomaro, muito perto. Quando, a certo passo, Petrini lembra que é
agnóstico, o papa responde; “Agnóstico pio. Tem piedade pela natureza, o
que é uma atitude nobre.” E, no final da terceira conversa, quando Petrini agradece
- “Sua Santidade, muito obrigado por esta conversa e pelo tempo que me dedicou.
Mesmo sendo eu agnóstico!” - o papa responde: “Bom… O importante é sermos
coerentes connosco próprios. Se formos coerentes, então não há problema. Os fariseus
eram incoerentes!”.
O papa explica no livro a génese da Laudato Si’, dizendo que foi
um trabalho de muita gente e reconhecendo que a sua posição foi evoluindo à
medida que tomava consciência dos problemas do planeta. Lembra que, quando era
bispo de Buenos Aires, não ligava aos problemas ambientais, para os quais os
bispos brasileiros chamavam repetidamente a atenção. Mais tarde compreenderia a
questão da Amazónia, tema de um sínodo (Querida Amazónia, Paulus, 2020),
discutido na segunda conversa. O papa esclarece o sentido profundo da sua
famosa encíclica, a que alguns chamam “verde”: “Contrariamente ao que muitos
pensam e escrevem, Laudato Si’ não é uma encíclica verde, não é um texto
ambientalista, é antes uma encíclica social.”
O papa vê com simpatia o movimento de Greta Thunberg por ela ter
conseguido que os jovens se mobilizassem: “Se a sua acção e o seu activismo
permitem que milhões de jovens de todo o mundo se mobilizem, sejam parte
activa, só temos de nos alegrar e estar optimistas. Interessa-me a reacção dos
jovens: além do futuro, devem também apropriar-se do presente.”
Tenho reiterado as posições do papa sobre as alterações climáticas por
ele ser um dos poucos líderes globais. E por ele contrariar uma ideia com
raízes bíblicas de que o homem deve dominar a Terra: “Sejamos claros: é preciso
combater o egoísmo, essa ideia de que se eu exploro a Mãe Terra é porque ela é
grande e tem a obrigação de me dar o que eu quero. É uma ideia totalmente
doente, que nos conduzirá ao colapso.” Salvaguardadas as devidas distâncias,
Petrini é também um líder global.
Na terceira conversa, que teve lugar já durante a pandemia, quando
Petrini fala da “humanidade prostrada” pelo vírus, o papa prefere falar da
”humanidade espezinhada por este vírus e por tantos outros vírus injustos que
deixámos crescer. Estes vírus injustos: uma economia de mercado selvagem, uma
injustiça social violenta, com a qual as pessoas morrem e tantas vezes vivem
como animais.” Este papa não tem papas na língua!
A conversa é muito saborosa e passa, como não podia deixar de ser, pelo
tema da alimentação: falam, com gosto, da cozinha do Piemonte. Sobre a comida,
diz o papa: “A comida é um instrumento de convivialidade, partir o pão é o
gesto mais emblemático: partimos o pão e oferecemo-lo primeiro ao convidado,
partilhando-o com ele. (…)Nesta época de opulência, por vezes exageramos, ora
com uma espectacularização do acto de comer, ora adoptando uma atitude famélica
e desregrada. Refiro-me àqueles almoços ou jantares com inúmeros pratos: saímos
subjugados pelo muito que se comeu, quase sempre sem prazer. (…) O prazer de
comer serve para que ao comer nos mantenhamos de boa saúde, o mesmo em relação
ao prazer sexual, que existe para tornar o amor mais belo e garantir a
propagação da espécie.”
Destaco do livro de Petrini a apologia que o papa faz do humor. Petrini
lembra uma citação da entrevista
do papa ao sociólogo francês Dominique Wolton (Um Futuro de Fé, Planeta,
2019) na qual ele afirma que ”o sentido de humor é aquele que, no plano humano,
mais se aproxima… “ O papa, com boa memória, logo completa: “... da graça. Na
minha opinião, ele está quase na fronteira da graça divina. Para mim é o estado
mais elevado da pessoa, no limiar de Deus. Somente uma pessoa que alcançou um
determinado nível pode ter sentido de humor”. Achei muita piada a esta relação
entra a graça divina e a graça das anedotas.
O papa tem um notável sentido de humor. Por exemplo, pronunciando-se
sobre a cosmética, diz: “Recordo-me do escândalo que foi a [Anna] Magnani com o episódio das
rugas. Quando lhe perguntaram se ela não pretendia eliminar as suas rugas
recorrendo à cirurgia plástica, ela respondeu: ‘De modo algum, levei uma vida
inteira para as ter!’ É o exemplo de uma pessoa que tinha percebido
profundamente a relação com a natureza, compreendia a beleza da natureza.
Natureza esta que é integral, da qual nós constituímos parte integrante,
inseparável.”
Petrini também tem sentido de humor. Conta uma história engraçada recordando
o seu avô ferroviário, fundador do partido comunista local: “Quando, em 1948,
os comunistas foram excomungados, ele já tinha morrido, mas a minha avó foi confessar-se.
‘Em quem vota?’, perguntou-lhe o padre. E ela respondeu que votava comunista,
como o seu pobre marido. O padre disse-lhe que não podia dar-lhe a absolvição. Ao
que a minha avó, depois de pensar um pouco, lhe retorquiu: ‘Guarde-a então para
si!’ “. Responde o papa Francisco: “Sabedoria, era sabedoria!” E acrescenta: “Foi
um modo muito delicado de o mandar passear!” Riem os dois e nós rimo-nos com
eles.
Sem comentários:
Enviar um comentário