sexta-feira, 13 de agosto de 2021

CARLO PETRINI, O “PAPA” DO SLOW FOOD, E O PAPA FRANCISCO



Uma das minhas recensões recentes no jornal I (sempre às quintas-feiras):

Carlo Petrini, 72 anos, jornalista, gastrónomo, sociólogo e activista social italiano, fundou em 1986 o movimento internacional Slow Food, que hoje congrega mais de cem mil pessoas em 160 países (incluindo Portugal), cujo fito é a promoção do direito ao prazer, defendendo o primado da alimentação e pugnando pela qualidade e pelo justo valor dos alimentos. O seu lema é “Bom, limpo e justo”.

Petrini ganhou proeminência quando se opôs ao estabelecimento de mais uma sucursal da MacDonald’s no centro de Roma. Para os defensores do Slow Food, cujo símbolo é um caracol, uma refeição deve proporcionar prazer, demorando o tempo que for necessário. As matérias-primas devem vir de produções locais, respeitando as tradições agrícolas, a biodiversidade e a sazonalidade. Quer dizer, a comida deve ser “amiga” do ambiente, da agricultura tradicional e dos agricultores locais. Os consumidores devem desenvolver a sua cultura alimentar, conhecendo os alimentos que estão a comer e o modo como foram preparados. Petrini e seus companheiros opõem-se à massificação dos sabores, à agricultura mecanizada e ao uso de organismos geneticamente modificados.

Num manifesto de 1987, assinado além de Petrini por uma dúzia de notáveis italianos, entre os quais Dario Fo, futuro Nobel da Literatura, a mensagem é clara: “Somos escravizados pela rapidez e sucumbimos todos ao mesmo vírus insidioso: a Fast Life, que destrói os nossos hábitos, penetra na privacidade dos nossos lares e nos obriga a comer Fast Food. O Homo Ssapiens, para ser digno desse nome, deveria libertar-se da velocidade antes que ela o reduza a uma espécie em vias de extinção. Um firme empenho na defesa da tranquilidade é a única forma de se opor à loucura universal da Fast Life. Que nos sejam garantidas doses apropriadas de prazer sensorial e que o prazer lento e duradouro nos proteja do ritmo da multidão que confunde frenesim com eficiência. A nossa defesa deveria começar à mesa com o Slow Food.”

O movimento, com o qual travei conhecimento na Expo 2015 de Milão sobre alimentação, criou uma editora (Slow Food Editore) e uma Universidade de Ciências Gastronómicas, em Pollenzo (Piemonte). Para além do Slow Food, Petrini também criou a comunidade Terra Madre, rede de pessoas unidas pela protecção da natureza. Autor de vários livros, foi considerado em 2004 pela Time um dos “heróis do nosso tempo”, na categoria de “inovadores”, e em 2008 pelo The Guardian uma das “50 pessoas que provavelmente salvarão o mundo”. Em 2004 recebeu a ordem de Grande Oficial da República Italiana e, em 2013, o prémio Campeão da Terra, outorgado pelo Programa Ambiental das Nações Unidas, a maior homenagem na área ambiental atribuída pelas Nações Unidas.

Em português tinha apenas o livro Uma Ideia de Felicidade (Porto Editora, 2014), escrito a meias com o chileno Luís Sepúlveda, falecido com COVID-19 no ano passado. Acaba de sair entre nós o seu livro O Futuro da Terra, com o subtítulo Diálogos com o Papa Francisco sobre Ecologia Integral (Casa das Letras). A capa mostra o “papa do Slow Food” com o verdadeiro papa, os dois sorridentes.

Os dois tornaram-se amigos após a publicação da encíclica Laudato Si’ (Paulus, 2015), que defende o conceito de Ecologia Integral. Encontraram-se em três ocasiões, em 2018, 2019 e 2020, estando a conversa transcrita no livro. Completa esses diálogos um conjunto de textos de Petrini e do papa Francisco, que está organizado em temas: Biodiversidade, Economia, Migrações, Educação e Comunidade. O livro é antecedido por um prefácio de Domenico Pompili, bispo de Rieti, na Itália central, amigo com quem Petrini fundou as comunidades Laudato Si’, grupos de pessoas irmanadas pela materialização das ideias contidas no documento papal.

Petrini enfatiza a sua condição de agnóstico  na sua introdução às conversas com o papa: “Somos os dois pessoas com histórias de vida extremamente diferentes, e no entanto estabelecemos laços muito rapidamente. Um agnóstico e um papa, um ex-comunista e um católico, um italiano e um argentino, um gastrónomo e um teólogo.” Há sintonias entre os dois, para além, da defesa comum do ambiente. Os dois tem origens no Piemonte, no Norte de Itália, Petrini nasceu na localidade de Bra, a 50 quilómetros de Turim, tendo tido um avô ferroviário, e o pai de Jorge Bergoglio, também ferroviário, nasceu em Portacomaro, muito perto. Quando, a certo passo, Petrini lembra que é agnóstico, o papa responde; “Agnóstico pio. Tem piedade pela natureza, o que é uma atitude nobre.” E, no final da terceira conversa, quando Petrini agradece - “Sua Santidade, muito obrigado por esta conversa e pelo tempo que me dedicou. Mesmo sendo eu agnóstico!” - o papa responde: “Bom… O importante é sermos coerentes connosco próprios. Se formos coerentes, então não há problema. Os fariseus eram incoerentes!”.

O papa explica no livro a génese da Laudato Si’, dizendo que foi um trabalho de muita gente e reconhecendo que a sua posição foi evoluindo à medida que tomava consciência dos problemas do planeta. Lembra que, quando era bispo de Buenos Aires, não ligava aos problemas ambientais, para os quais os bispos brasileiros chamavam repetidamente a atenção. Mais tarde compreenderia a questão da Amazónia, tema de um sínodo (Querida Amazónia, Paulus, 2020), discutido na segunda conversa. O papa esclarece o sentido profundo da sua famosa encíclica, a que alguns chamam “verde”: “Contrariamente ao que muitos pensam e escrevem, Laudato Si’ não é uma encíclica verde, não é um texto ambientalista, é antes uma encíclica social.”

O papa vê com simpatia o movimento de Greta Thunberg por ela ter conseguido que os jovens se mobilizassem: “Se a sua acção e o seu activismo permitem que milhões de jovens de todo o mundo se mobilizem, sejam parte activa, só temos de nos alegrar e estar optimistas. Interessa-me a reacção dos jovens: além do futuro, devem também apropriar-se do presente.”

Tenho reiterado as posições do papa sobre as alterações climáticas por ele ser um dos poucos líderes globais. E por ele contrariar uma ideia com raízes bíblicas de que o homem deve dominar a Terra: “Sejamos claros: é preciso combater o egoísmo, essa ideia de que se eu exploro a Mãe Terra é porque ela é grande e tem a obrigação de me dar o que eu quero. É uma ideia totalmente doente, que nos conduzirá ao colapso.” Salvaguardadas as devidas distâncias, Petrini é também um líder global.

Na terceira conversa, que teve lugar já durante a pandemia, quando Petrini fala da “humanidade prostrada” pelo vírus, o papa prefere falar da ”humanidade espezinhada por este vírus e por tantos outros vírus injustos que deixámos crescer. Estes vírus injustos: uma economia de mercado selvagem, uma injustiça social violenta, com a qual as pessoas morrem e tantas vezes vivem como animais.” Este papa não tem papas na língua!

A conversa é muito saborosa e passa, como não podia deixar de ser, pelo tema da alimentação: falam, com gosto, da cozinha do Piemonte. Sobre a comida, diz o papa: “A comida é um instrumento de convivialidade, partir o pão é o gesto mais emblemático: partimos o pão e oferecemo-lo primeiro ao convidado, partilhando-o com ele. (…)Nesta época de opulência, por vezes exageramos, ora com uma espectacularização do acto de comer, ora adoptando uma atitude famélica e desregrada. Refiro-me àqueles almoços ou jantares com inúmeros pratos: saímos subjugados pelo muito que se comeu, quase sempre sem prazer. (…) O prazer de comer serve para que ao comer nos mantenhamos de boa saúde, o mesmo em relação ao prazer sexual, que existe para tornar o amor mais belo e garantir a propagação da espécie.”

Destaco do livro de Petrini a apologia que o papa faz do humor. Petrini lembra uma citação da entrevista do papa ao sociólogo francês Dominique Wolton (Um Futuro de Fé, Planeta, 2019) na qual ele afirma que ”o sentido de humor é aquele que, no plano humano, mais se aproxima… “ O papa, com boa memória, logo completa: “... da graça. Na minha opinião, ele está quase na fronteira da graça divina. Para mim é o estado mais elevado da pessoa, no limiar de Deus. Somente uma pessoa que alcançou um determinado nível pode ter sentido de humor”. Achei muita piada a esta relação entra a graça divina e a graça das anedotas.

O papa tem um notável sentido de humor. Por exemplo, pronunciando-se sobre a cosmética, diz: “Recordo-me do escândalo que foi a [Anna] Magnani com o episódio das rugas. Quando lhe perguntaram se ela não pretendia eliminar as suas rugas recorrendo à cirurgia plástica, ela respondeu: ‘De modo algum, levei uma vida inteira para as ter!’ É o exemplo de uma pessoa que tinha percebido profundamente a relação com a natureza, compreendia a beleza da natureza. Natureza esta que é integral, da qual nós constituímos parte integrante, inseparável.”

Petrini também tem sentido de humor. Conta uma história engraçada recordando o seu avô ferroviário, fundador do partido comunista local: “Quando, em 1948, os comunistas foram excomungados, ele já tinha morrido, mas a minha avó foi confessar-se. ‘Em quem vota?’, perguntou-lhe o padre. E ela respondeu que votava comunista, como o seu pobre marido. O padre disse-lhe que não podia dar-lhe a absolvição. Ao que a minha avó, depois de pensar um pouco, lhe retorquiu: ‘Guarde-a então para si!’ “. Responde o papa Francisco: “Sabedoria, era sabedoria!” E acrescenta: “Foi um modo muito delicado de o mandar passear!” Riem os dois e nós rimo-nos com eles.

 

 

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