sábado, 19 de junho de 2021

O que vai mal no ensino universitário?

Não é uma atitude derrotista, não é um sentimento nostálgico de que “antes era melhor”. Algo se passa no ensino, em geral, e o universitário não é excepção. Um texto publicado pelo Prof. espanhol Miguel Ángel Quintana Paz põe em destaque os principais aspectos desse estado a que chamaremos “crise”, na esperança de que para ela, como em todas as crises, haja, mais cedo ou mais tarde, uma “vacina” que combata esse vírus que se vem instalando.

 

Miguel Ángel Quintana Paz é doutor em Filosofia e, entre outros aspectos da sua biografia, podem destacar-se a passagem pelo Boston College, pelas universidades de Turim e Viena, onde esteve como investigador. Dirigiu um projecto de inovação educativa “aprendizagem que atravessa gerações”. Com um vasto curriculum na área da filosofia, dentro e fora de Espanha,  Professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Europeia Miguel Cervantes, em Valladolid, decide retirar-se e indica as suas razões, num texto que intitula “Por qué me voy de la Universidad”, que pode ser lido aqui:

 

Tendo consciência de que o texto deste professor exprime o sentir de muitos outros, também entre nós, apresenta-se a tradução de alguns dos passos mais significativos:

 

“Durante os últimos quinze anos tive o gosto de trabalhar numa universidade pequena, de província — a Universidade Europeia Miguel Cervantes, em Valladolid.

Na semana passada dei a minha última aula de Ética. Quando saí para o corredor, não só deixava para trás os 15 anos ali passados, como fechava também 30 anos desde que, como aluno, me sentei pela primeira vez nos bancos da faculdade. Naquele caso tinha sido na universidade mais antiga de Espanha, a salmantina, onde me dispunha a estudar uma matéria, Filosofia, que ali se leccionava quase há 800 anos.

“Admiro o propósito com que os homens medievais fundaram a universidade: o desejo de juntar professores e alunos, de combinar o que se ensina, como docente, e o que se descobre, como investigador, de debater, com gosto, assuntos complicados. Não preciso de viajar para praias distantes ou subir a grandes arranha-céus: entre os lugares onde fui mais feliz na vida está uma simples aula.”

Explica depois os motivos que o levaram a sair, escolhendo três, de entre os muitos que poderia apontar:

 

1.     A burocracia

Vou-me embora da Universidade porque odeio fazer coisas estúpidas; e a Universidade cada vez nos obriga mais, e com mais insistência, a fazer coisas estúpidas. De acordo com uma mente ilustrada, supor-se-ia que o mundo deveria progredir até cotas cada vez maiores de saber e eficiência; mas um organismo imprevisto, o burocrata, interpôs-se neste projecto com o intuito de o destruir.

Um burocrata não ensina nem aprende, funções essenciais para as quais se inventou a Universidade. Pois bem, o burocrata viu que pelas veias dessa instituição corria dinheiro e decidiu que uns quantos litros desse sangue dourado os queria  sugar ele.

Do mesmo modo que outros organismos pluricelulares, os burocratas nascem, crescem, mas, sobretudo, reproduzem-se. Ponham um burocrata numa faculdade e não terá um só incentivo para reduzir os meios pelos quais castiga professores e alunos....

Chegará o dia em que os professores limitarão a sua jornada laboral a preencher papéis para o burocrata e será este o único que ministra lições na universidade: lições sobre como preencher tais papeladas.

Vou-me embora antes que isso aconteça.

 

2.     O pedagogismo

O pedagogismo consiste, basicamente, em que uns senhores que não conhecem nada da tua disciplina (e, por vezes, duvida-se que conheçam de alguma) decidiram que sabem como ensiná-la. Autodenominam-se pedagogos. A situação é semelhante a pôr um violinista a explicar a umas senhoras  como deveriam ensinar croché aos seus filhos, notando depois as senhoras que o violinista chama à agulha dos seus trabalhos “arco de violino”. Com uma agravante: as lições que os pedagogos te dão, durante as quais insistem tanto na necessidade de tornar as tuas aulas agradáveis, são tão aborrecidas como uma longametragem checoslovaca com subtítulos em suajili enquanto alguém te sopra ao ouvido as suas opiniões sobre o assunto em húngaro.

É costume falar-se de Aquiles e Pátroclo como exemplos de uma amizade férrea; mas nem ela supera em tenacidade a conveniente aliança que se estabeleceu entre pedagogos e burocratas. Quantas mais coisitas pedagógicas há que fazer, mais burocracia haverá que preencher; quanto mais duvidoso está o burocrata se não estarás a desfrutar em excesso do teu trabalho de professor, mais o ajudará o pedagogo e lhe garantirá que não é o caso. E disporá de todo um arsenal para isso: requisitos absurdos sobre avaliação, sobre novas tecnologias, sobre revisões, sobre tutorias, sobre revisões das tutorias, sobre avaliação da docência, tudo muito bem regulado.

O futuro da Universidade pertence a pedagogos e burocratas; como não pertenço a nenhum desses clãs, vou-me embora.

 

3.     O ensino prévio

Cada vez os alunos chegam à Universidade com níveis mais baixos. Até já se inventaram em algumas carreiras os Cursos Zero: onde se aprendiam as Matemáticas ou as Fìsicas básicas. Receio que, com o tempo, também no primeiro curso se exija cada vez menos e assim nos seguintes.

Quanto à ortografia, temo que a batalha já esteja perdida. ...

É previsível que as únicas novas normas que importam sejam escrever “alumnado”, em vez de “alumnos”, ou “olá a todos e a todas”, logo ampliado por um “e todes”. Isso sim, a nova ortografia será muito mais cruel do que a antiga: se te enganas irão acusar-te, não só de escrever mal, mas também de ser má pessoa.

Sempre tive uma boa relação com os alunos. Com certeza não são mais tontos nem mais inteligentes, em média, do que éramos nós na idade deles. Mas cada vez chegam à Universidade com um repertório cultural mais limitado.

Vou-me embora da Universidade porque...

cada vez me custa mais falar-lhes de Platão, de Boécio ou de Espinoza, quando há tantas coisas que antes deveria partilhar com eles sobre a nossa cultura ocidental.

2 comentários:

Dulce Marques da Silva disse...

Dra. Isaltina
Muito obrigada por esta partilha. Retrata, sem dúvida, o sentimento que grassa entre muitos docentes, entre aqueles que mantêm a consciência lúcida relativamente ao ensino e à sua tarefa.
Tristemente, a situação vai-se agudizando pela inércia de uns e os aplausos de outros que gostam de se curvar ao poder.
«Não preciso de viajar para praias distantes ou subir a grandes arranha-céus: entre os lugares onde fui mais feliz na vida está uma simples aula.”»
Que Bela afirmação!
A alegria da comunhão humana, entre quem ensina e quem ama saber, foi, para muitos, consubstanciada nesse momento mágico que pode assumir uma aula.
Hoje, em muitas circunstâncias, é um inferno!

Anónimo disse...

A triste descrição, que o Prof. Miguel Ángel Quintana Paz faz do estado a que chegou o ensino universitário em Espanha, é, mutatis mutandis, a descrição do estado de decadência e corrupção dos ensinos secundário e politécnico em Portugal.
Isto leva a pensar que, no futuro próximo, os conhecimentos "superiores" deixarão de ser ensinados aos pobres cidadãos dos países pobres. Para esses, estão reservadas as ciências da educação...

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