quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente"

Reproduzimos um artigo do botânico Jorge Paiva, saído há dois dias no jornal Público. Cada palavra que nele consta devia ser profundamente interiorizada por aqueles que já o leram e que o lerão. Sobretudo se são professores, directores escolares, políticos com responsabilidade (efectivamente) educativa. Na verdade, "constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente e com civismo" também (e sobretudo) na escola.


É por total falta de civismo que continuamos com elevado número diário de infectados pelo betacoronovírus SARS-CoV-2. Aliás, este nosso atraso cívico é milenar, como já o menciona Estrabão, geógrafo e filósofo grego (ca. 73-24 a.C.), ao referir que os iberos não conheciam o pão de trigo, nem vinho:
Os habitantes das montanhas, durante duas partes do ano, utilizam bolotas, depois de as terem secado e triturado; logo as moem e as transformam em pão… E utilizam também cerveja, mas têm falta de vinho… Todos eles vestem de negro, a maior parte com saios, e é com eles que se deitam sobre camas de folhagem.” (Geografia, Livro III, capítulo 3, 7, tradução de J. Deserto e S. Pereira, 2016).
A maioria das pessoas não entende, nem quer, individualmente, sujeitar-se às alterações de convivência a que estavam habituadas e julgam, egocentricamente, que o vírus só infecta os outros e nunca elas próprias. Por isso, continuam a conviver e a divertirem-se agrupadas, sem máscaras e, muitas vezes, em recintos fechados, sem as mínimas condições higiénicas.

Por outro lado, não há cuidado nenhum com o lixo sólido, pois, não só não o seleccionam, como até o lançam para o chão das artérias urbanas, caminhos e estradas. Há dias, no percurso que faço a pé para ir comprar jornais (cerca de 500 metros), vi espalhadas no piso das ruas que percorri cerca de uma dúzia de máscaras. Este lixo sólido arremessado para o chão é arrastado pelas águas pluviais, indo para as bacias hidrográficas dos rios, acabando por ir parar aos oceanos. 

Por exemplo, o plástico como flutua, é aglomerado por correntes marinhas, acumulando-se em ilhas flutuantes de plástico. Neste momento existem cinco grandes ilhas oceânicas de plástico: uma no Oceano Índico, duas no Atlântico (uma a Sul e outra a Norte) e duas no Pacífico (uma a Sul e outra a Norte, tendo esta última uma superfície correspondente a cerca de 18 vezes a superfície de Portugal Continental; isto é, cerca de sete vezes a superfície Reino Unido).

As máscaras e luvas lançadas para o solo, estão a chegar aos oceanos a um ritmo alucinante: cerca de 129 biliões (129.000.000.000.000) de máscaras por mês e cerca de 65 biliões de luvas plásticas por mês. Isto no espaço de um ano, pois esta pandemia foi detectada em Dezembro de 2019. Claro que estando algumas das máscaras carregadas de vírus e (ou) bactérias, estes micróbios podem entrar na cadeia alimentar marinha e chegar ao corpo humano. Este desastre resulta da falta de civismo não só dos portugueses, como também de outros povos.

Por outro lado, geralmente, quando se refere a biodiversidade, não se dá a devida relevância aos seres vivos microscópicos (microbiodiversidade), como são as bactérias, as arqueas (Archaea), as leveduras, as amebas, os vírus e muitos outros seres desconhecidos para a maioria das pessoas, como são, por exemplo, os mixomicetes, protistas microscópicos, plasmodiais, que se alimentam de microrganismos, como leveduras, fungos, bactérias e, provavelmente, também de vírus.
 
As florestas são dos ecossistemas onde estes seres são mais abundantes, quer na manta morta, quer na superfície das plantas. Uma árvore tem milhares de esporos ou propágulos de mixomicetes. Ao derrubar-se uma árvore, eliminam-se milhares de potenciais mixomicetes, predadores de microrganismos. Quando, além disso, se destrói, o ecossistema florestal, libertam-se de controlo milhões de bactérias e vírus que podem provocar novas doenças, como aconteceu, por exemplo, com a HIV e com a febre hemorrágica do Ébola.

Infelizmente, neste momento, há apenas 20% das florestas que existiam quando a nossa espécie surgiu neste Globo, uma “Gaiola” que temos vindo a sujar e a alterar o equilíbrio dos ecossistemas naturais, nos quais temos vindo a dizimar a biodiversidade. É deprimente e assustador saber-se que, por exemplo, se o ritmo actual de poluição do Mar Mediterrâneo não se alterar, em 2030 (daqui a dez anos), não haverá peixes neste mar interior e que, se o actual ritmo da diminuição da biodiversidade continuar, mais de metade das espécies de mamíferos e de aves desaparecerá até ao final deste século (daqui a 80 anos).

Por outro lado, desde há cerca de meio século que são organizadas cimeiras internacionais sobre o ambiente e biodiversidade, mas a conduta ética irresponsável de decisores políticos tem levado estas iniciativas ao fracasso por incumprimento dos acordos estabelecidos. Estas cimeiras começaram em 1972 com a 1ª Cimeira Internacional sobre o Ambiente, em Estocolmo (113 países); seguiu-se em 1975 (Belgrado) o Colóquio sobre Educação Ambiental da UNESCO; em 1979 (Genebra) a Cimeira Mundial do Clima; em 1985 (Villach) a 1ª Conferência Mundial do Clima (1ª Declaração sobre o Aquecimento Global); em 1989, é criado o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC); em 1990 (Genebra) a 2ª Conferência Mundial do Clima; em 1992 (Rio de Janeiro) a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92) (1ª Cimeira Da Terra); em 1995 (Berlim) a 1ª Conferência das Partes (COP), o órgão supremo decisório da Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP-1); até 2019 (Madrid) a última COP (COP-25).

Esta última esteve marcada para o Rio de Janeiro, mas o actual Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não autorizou que se realizasse no Brasil. Foi, primeiramente transferida para Santiago do Chile, mas devido à instabilidade política que ocorria na altura no Chile, foi finalmente marcada para Madrid. Esta atitude do Presidente do Brasil e a de Donald Trump, que retirou os Estados Unidos dos compromissos tomados nos acordos destas reuniões, não constituem falta de ética. São muito pior do que falta de ética e prefiro abster-me de as qualificar, pois são, praticamente, inqualificáveis. 

Os governantes, políticos, industriais, etc., necessitam, urgentemente, de tomar medidas. Sem elucidação da população, com programas bem elaborados nas estações de rádio e televisão públicas e sem uma educação ambiental bem programada nas escolas, a preservação dos outros seres vivos (biodiversidade) vai continuar a diminuir drasticamente e o aquecimento global vai continuar a aumentar implacavelmente.

É fundamental que todos se capacitem que não sobreviveremos no Globo Terrestre sem os outros seres vivos (biodiversidade) e com temperaturas insuportáveis.

Porém, a sociedade consumista em que se transformou a designada “civilização ocidental” tornou-se opressiva, violenta e demolidora. Assim, as pessoas não só não têm tempo para se aperceberem de como estamos a poluir a “Gaiola” (planeta Terra) em que vivemos e como estamos a destruir a Natureza. Os políticos apregoam imenso que é necessário um desenvolvimento sustentável, mas não fazem concretamente nada para que assim aconteça.

Como se referiu, as Nações Unidas realizam frequentemente Cimeiras Internacionais sobre o Ambiente e Biodiversidade, mas os políticos, com uma total falta de ética, nunca cumpriram os acordos. Sem florestas e com a poluição dos oceanos, a Terra terá temperaturas tão elevadas e tantos microrganismos letais que se tornará inabitável para a nossa espécie. Constitui dever ético tomar consciência desta realidade e agir urgentemente e com civismo.
Jorge Paiva

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

As razões e a ética, a ciência e a consciência, as necessidades e os sentimentos e os sonhos, o amor, a instrução e a educação, o pão e a música, o sol e a liberdade...não têm sido capazes de controlar a vontade dos indivíduos e dos grupos, nem os seus comportamentos.
Nem a democracia tem sido capaz de amortecer e de rechaçar a vontade no regaço da razão e da ciência e do amor.
Aliás, a própria ciência, embora não dependa, como tal, de sufrágios de maiorias, em democracia, depende das maiorias para vigorar como verdade oficial.
A solução seguida, pelos sistemas políticos, historicamente, com algumas episódicas excepções, tem sido a da liberdade com responsabilidade. Parece ser uma boa fórmula, mas como qualquer fórmula política, não resulta por magia, nem por mera causalidade ou necessidade lógica. A começar pela liberdade, que é um problema brutal, tanto mais quanto mais não podemos deixar de atribuir os males da sociedade à liberdade e, pior ainda, não podemos responsabilizar quem abusa da liberdade que tem.
Então, o que teoricamente parece ser uma boa fórmula, revela-se, nos seus efeitos e consequências, perversa e demolidora.
Mas o problema não é apenas da liberdade e da responsabilidade. O problema é a situação concreta em que elas podem ou não ser exercidas.
A sociedade capitalista e consumista, entronizada na ganância, no lucro, no oportunismo, na competição e no poder do dinheiro, capaz de transformar tudo em ouro e o ouro em mais competição, oportunismo e ganância, sem contar os mortos pelo caminho, porque estes fazem parte do processo, tem sempre, contudo, a virtualidade de fazer dos problemas a sua razão de existir. Quando for mais rentável para alguém despoluir, limpar, do que sujar, compor do que entregar na sucata, construir ou reparar do que destruir... nem vai ser preciso polícia, ou ética, para vermos as pessoas a portarem-se como deve ser. O problema está em fazer coincidir o dever ser com os interesses e a vontade particulares. Na medida em que estes tiverem que ceder àquele dever, não deixaremos de estar expostos e dependentes de vontades e de interesses particulares, tanto mais quanto mais poderosos forem.

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