terça-feira, 9 de junho de 2020

“Quasi” Ou Contributo para um Novo Paradigma das Praxes Académicas

 


Texto que nos foi remetido por José Manuel Cymbron:

(…) os oráculos gostam do seu clima [de Portugal], e às vezes dão

nele respostas eternas às perguntas do mundo.

(Torga)

 

Os mais experimentados levantai-os,

(…)

Pois que sabem

O como, o quando, e o onde as cousas cabem.

(Camões)

 

Estou numa fase razoavelmente adiantada de um livro (de ficção, em boa parte) que propõe, em nove dias/capítulos, um Itinerário em Lisboa, e que termina no Campo Grande.

Por que razão este Itinerário termina no Campo Grande? Por dois motivos:

1º. Na dedicatória do livro digo:

- A todas as crianças e a todos os jovens.

- A todos os adultos que acreditam que o tesouro/força que há em cada criança e em cada jovem tem que ser lucidamente acarinhado, sob pena de se transformar em «marés de fel» (Cesário Verde).

Acontece que no Campo Grande há uma densíssima população estudantil, desde o ensino pré-primário ao universitário.

2º. No Campo Grande existe um património cultural com um valor equiparável, embora muito diferente, ao da zona de Belém. Merece destaque particular a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. As sinergias que podem ser criadas entre estes dois tesouros e fortalezas da palavra criariam condições perfeitas para a construção de um Museu que a capital merece: O Museu da Lusofonia. Penso que em termos de espaço e de orçamento as necessidades não são muito exigentes pois os dois núcleos principais já existem (Biblioteca Nacional e Torre do Tombo). Por detrás da Biblioteca existe um terreno com área suficiente, creio eu, para a construção de um centro de interpretação e divulgação do património lusófono existente não só no Campo Grande, mas em toda a cidade. Seria fundamental que no referido Centro se valorizasse essencialmente as obras literárias dos grandes escritores lusófonos, entre eles os que anualmente, desde a criação do Prémio Camões (1989), vêm sendo galardoados. Os trabalhos de construção do Museu poderiam ter início em 2021, durante a presidência da União Europeia por Portugal, ou em 2022, ano em que Lisboa será palco das Jornadas Mundiais da Juventude e das comemorações do 2º. Centenário da independência do Brasil e do 1º. Centenário da viagem transatlântica de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.   

Mas o Campo Grande tem outros patrimónios de grande valor. São eles: o Jardim, que nestes últimos dois anos foi alvo de consideráveis melhoramentos e onde frondosas árvores oferecem sombra durante todo o dia; o Museu da Cidade; o Museu Bordalo Pinheiro; as tapeçarias de Portalegre da colecção da Câmara Municipal; as gravuras incisas  de Almada Negreiros na Reitoria e Faculdades de Direito e de Letras; e a azulejaria das três estações de Metro, com particular destaque para as estações de Entre Campos e Cidade Universitária. 

No 9º. Dia do itinerário por Lisboa, chego ao Campo Grande acompanhado por quatro gigantes da nossa literatura: José Régio, Carlos Queiroz, Miguel Torga e Sophia de Mello Breyner (recorde-se que todos eles nasceram nas duas primeiras décadas do século vinte, época em que Portugal ainda era um país eminentemente rural, o que tanto contribuiu para a força das suas obras). Pouco tempo depois junta-se a este grupo Tolentino Mendonça. A eles pergunto o que seria importante dizer no início do ano académico aos caloiros que estão a iniciar uma estada de pelo menos três anos nesta zona fascinante da capital. Os cinco respondem-me que há uma palavra-chave – ALEGRIA, e que essa «provocação do espírito que nos abeira do milagre» (Tolentino) tem que ser trabalhada seguindo o conselho de Camões, citado em epígrafe deste texto e que agora repito: «Os mais experimentados levantai-os (…) pois que sabem/ O como, o quando, e o onde as cousas cabem.»

Repare-se no que nos dizem estes escritores sobre a alegria (já foi feita uma citação de Tolentino Mendonça):


José Régio (reproduzindo palavras da Ti’Pinheiro):

«…Que minhas meninas! Isto de ser temente a Deus não tira duma pessoa andar alegre e até gostar de se divertir (…) A virtude é alegre, ora não? (…) Que minhas meninas!: cá’mim ninguém me tira desta, e o senhor padre Forjaz ainda há dias o disse do púlpito: A virtude não precisa de carantonhas! Quem está de bem com Deus anda contente, pois então?! Por que há-de andar macambúzio?!»                                                             

 

Carlos Queiroz:

É urgente descobrir

Na flora da fantasia,

Uma espécie de semente

Que gere a pura alegria

E se possa introduzir

Nas almas de toda a gente.

 

Miguel Torga:

«No seu sentido mais profundo, a vida é bela e alegre. Todos nós tivemos já a experiência disso milhares de vezes (…). Mas, apegados como estamos à aparência de tudo, esquecemos a voz do profundo, e ouvimos deliciados o som da superfície. Temos o vício da tristeza.»  


Sophia:

- «Porque Deus nos criou para a alegria»

- «A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. (…) Parecia estar muito perto da terra.  (…) Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.»

 

Tolentino Mendonça (novamente):

O pequeno quinhão de alegria que nos resta é suficiente para relançar uma inteira vida. 

Como, Quando e Onde devem estas citações, de escritores muito «experimentados», passar para os estudantes? Comecemos pelo Onde.

No Campo Grande: aqui eles estão em casa e os patrimónios cultural e natural são magníficos (não esqueçamos que o jardim tem excelentes condições para a prática de marcha e de ciclismo).

Passemos para o Quando.

Já neste texto referi a minha simpatia pelo início do ano lectivo. E, por que não no contexto das praxes? Seria a componente cultural de uma prática ancestral que pretende unir e dar ânimo.

Entremos agora no momento mais complexo, mas também mais empolgante do processo de transmissão da mensagem: o Como.

Penso que é indispensável recorrer a vários meios, mas fiquemo-nos, neste artigo, por dois: 1º. mais textos literários; 2º. a Beleza.

António Gedeão diz-nos, na primeira parte do poema “Homem”: «Inútil definir este animal aflito./ Nem palavras,/ nem cinzéis,/ nem acordes,/ nem pincéis/ são gargantas deste grito./ (…)» É um magnífico poema, mas não concordo com o poeta. Se é verdade que nenhum ramo da arte consegue, só por si, definir o Homem, talvez seja verdadeiro afirmar que em conjunto conseguem. Régio dizia-nos: «Procuro uma expressão integral lançando mão de vários recursos vindos de vários ramos de arte.» E isto está ao nosso alcance no jardim do Campo Grande. Aqui podemos dar acolhimento às «palavras»; aos «cinzéis»; aos «acordes»; e aos «pincéis». Painéis de azulejos e esculturas de artistas consagrados e desconhecidos (por que não estudantes?) poderiam, com um caracter de rotatividade, ser colocados em vários pontos do jardim ilustrando a arte da palavra.

Vejamos mais sugestões de textos, e comecemos com propostas de Aforismos:

No Jardim:

- Nunca escolhas uma cidade para viver se não tiver jardins.

 

Junto à Faculdade de Psicologia:

- Quem não se conhece poderá ser assassino de si mesmo.

- O melhor espelho não reflecte o outro lado das coisas.

 

Entre a Faculdade de Letras e a Torre do Tombo:

- Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai.

 

- Junto à Faculdade de Letras:

- Quem domina a sua língua salva a sua cabeça.

- As palavras são como a teia de aranha: para o homem habilidoso, são um abrigo; para o desajeitado, são uma armadilha.

 

- Junto à Faculdade de Direito:

- A corda para amarrar os pensamentos ainda não foi urdida.

- A mentira dá flores, mas não frutos.


No Centro Alameda da Cidade Universitário

- Quem estuda com um só mestre desconhece a abundância.

- Uma só cabeça nunca se põe de acordo.

- O bico da pena penteia a cabeleira da linguagem.

- Aquele que confessa a sua ignorância mostra-a uma vez; o que tenta escondê-la mostra-a várias vezes.

- O espírito nunca chega tão longe quanto o coração.

Passemos agora para textos com registo da autoria:

Régio:

[Algumas casas são (e muitas deveriam ser) como A Velha Casa]

Se ninguém mais o sabia – sabia ele [Lélito] que a sua casa tinha alma e nervos. (…) tinha personalidade própria (…) insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam (…) acabava por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos…

Queiroz:

Quem sabe se era

Dentro de algum

Lugar-comum

Que estava à espera

De nós (em vão)

A salvação?...

Torga:

Ibéria

(…)

Uma antena da Europa a receber

A voz do longe que lhe quer falar…


Estes dois versos torguianos e a realidade cultural do Campo Grande-Cidade Universitária (onde encontramos tantos estudantes do Programa Erasmus) levam-me a sonhar com um monumento escultórico, a ser colocado em frente ao edifício da Reitoria, e alusivo à União Europeia, com os seguintes versos da Ode à Alegria, de Schiller, inspiradores da nona sinfonia de Beethoven e do Hino da União Europeia:

  

Alegria, mais belo fulgor divino,

(…)

Ébrios de fogo entramos

Em teu santuário celeste!

(…)

Todos os homens se irmanam

Onde pairar teu voo suave. .

A quem a boa sorte tenha favorecido

De ser amigo de um amigo,

(…)

Rejubile-se connosco!

(…)

Abracem-se milhões de seres!

Enviem este beijo para todo o mundo!

 

Este «beijo para todo o mundo» deve ser enviado pelos estudantes da Universidade. É esta a mensagem, datada de 1534, de André de Resende e gravada no terraço fronteiro ao edifício da Reitoria: «É vosso dever conseguir, com empenho e trabalho fiéis, que a universidade de Lisboa se torne não menos celebrada em todo o mundo do que a própria cidade.»

 

Sophia:

 

O Rei de Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que

Nela o pensamento se desligou da mão

 

Ulisses de Ítaca carpinteirou seu barco

E gabava-se também de saber conduzir

Num campo a direito o sulco do arado        

 

Tolentino Mendonça:

- O encontro com a beleza é tão decisivo que há um antes e um depois, é uma estação nova que começa para a nossa vida.

- Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não encontre no mundo linguagem melhor do que o silêncio.

- Na diversidade das tradições religiosas e espirituais da humanidade, o silêncio é um traço de união extraordinariamente fecundo.

Apesar do aspecto caótico da actual sociedade internacional, acredito que a Humanidade poderá, a curto prazo, atingir um patamar civilizacional muito alto. Penso que podemos aplicar ao nosso tempo os versos que Mário de Sá-Carneiro utilizou, para se definir, no poema “Quasi”:

Um pouco mais de sol – eu era brasa.

Um pouco mais de azul – eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

(…)

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama

(…)

- Ai a dor de ser quasi, dor sem fim…

(…)

Aos jovens que entram agora para a Universidade é preciso dar-lhes condições para que dêem o «golpe de asa» que lhes permita propôr à ONU um provisório 31º. Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com uma redacção semelhante à seguinte:

Cada ser humano tem o direito (e o dever) de exigir a ele próprio e às Instituições Nacionais e Internacionais que no início da segunda metade deste século o mundo seja um Reino Maravilhoso, isto é, uma comunidade onde reine aquilo a que Torga chamava «uma paz lúdica e laboriosa».

                                                                                            «Valete, Fratres.» (Pessoa)  

José Manuel Cymbron

jose_cymbron@sapo.pt

Professor do Ensino Superior e Investigador na área do Turismo Cultural


2 comentários:

Alegria disse...

Junto à escola primária:

"O que nasce torto tarde ou nunca se endireita."
"A cavalo dado não se olha o dente."

Ditado Zen que completa o provérbio anterior:
"Apanha o cavalo vigoroso do teu espírito."

Dentro da escola devemos sempre dizer aos alunos:
"Tudo o que interessa é interessante."
William Hazlitt

Arthur Schnabel afirma:
"As notas eu domino tão bem como tantos outros pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, aí é que está a arte!"

Intervenções orais de docentes devem sempre ter como fundamento esta frase de John Cage:
"Nada tenho para dizer, estou a dizê-lo, e isso é poesia."

Haveria muito mais a acrescentar mas, como diz Alan Wats:
"Ninguém tem uma boca tão grande para dizer tudo."

Carlos Ricardo Soares disse...

É indispensável que se leia, sobretudo, o que não é o discurso da "verdade oficial". A função do livro é de tal modo indomável e imprevisível, que os autores da clandestinidade, os desmancha-discursos, "malditos", "proscritos", "excomungados", que não alinham nem servem cartilhas, grémios, associações, partidos ou religiões, são a melhor garantia de podermos aprender alguma coisa importante sobre o que pensam os loucos, ou aqueles que são tomados como tais, algo que nos interesse ou sirva de aviso e de esclarecimento, ou lição, ou de visão. Podem ser como aquelas raras pessoas que se incomodam a dizer verdades que normalmente ninguém deve saber. Os livros podem ser a única forma de acesso a verdades que não têm o direito de existir, por qualquer razão, conhecida ou desconhecida, a informação muito relevante, que não poderemos encontrar noutro lugar, nem de outro modo. Os livros, que não chateiam ninguém, que estão quietinhos e não fazem barulho, são dos objectos que, ao longo da história, mais foram odiados, perseguidos, queimados e que, ainda assim, sobreviveram aos seus algozes e inimigos, muitas vezes, devido ao amor dos seus leitores.

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