(…) os oráculos gostam do seu clima [de Portugal],
e às vezes dão
nele respostas eternas às perguntas do
mundo.
(Torga)
Os mais
experimentados levantai-os,
(…)
Pois que sabem
O como, o quando,
e o onde as cousas cabem.
(Camões)
Estou numa fase razoavelmente adiantada de
um livro (de ficção, em boa parte) que propõe, em nove dias/capítulos, um
Itinerário em Lisboa, e que termina no Campo Grande.
Por que razão este Itinerário termina no
Campo Grande? Por dois motivos:
1º. Na dedicatória do livro digo:
- A todas as crianças e a todos os jovens.
- A todos os adultos que acreditam
que o tesouro/força que há em cada criança e em cada jovem tem que ser
lucidamente acarinhado, sob pena de se transformar em «marés de fel» (Cesário
Verde).
Acontece que no Campo Grande há uma densíssima população estudantil, desde o ensino pré-primário ao universitário.
2º. No Campo Grande existe um património
cultural com um valor equiparável, embora muito diferente, ao da zona de Belém.
Merece destaque particular a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional da Torre
do Tombo. As sinergias que podem ser criadas entre estes dois tesouros e
fortalezas da palavra criariam condições perfeitas para a construção de um
Museu que a capital merece: O Museu da Lusofonia. Penso que em termos de
espaço e de orçamento as necessidades não são muito exigentes pois os dois
núcleos principais já existem (Biblioteca Nacional e Torre do Tombo). Por
detrás da Biblioteca existe um terreno com área suficiente, creio eu, para a
construção de um centro de interpretação e divulgação do património lusófono
existente não só no Campo Grande, mas em toda a cidade. Seria fundamental que
no referido Centro se valorizasse essencialmente as obras literárias dos
grandes escritores lusófonos, entre eles os que anualmente, desde a criação do
Prémio Camões (1989), vêm sendo galardoados. Os trabalhos de construção do
Museu poderiam ter início em 2021, durante a presidência da União Europeia por
Portugal, ou em 2022, ano em que Lisboa será palco das Jornadas Mundiais da
Juventude e das comemorações do 2º. Centenário da independência do Brasil e
do 1º. Centenário da viagem transatlântica de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.
Mas o Campo Grande tem outros patrimónios
de grande valor. São eles: o Jardim, que nestes últimos dois anos foi alvo de
consideráveis melhoramentos e onde frondosas árvores oferecem sombra durante
todo o dia; o Museu da Cidade; o Museu Bordalo Pinheiro; as tapeçarias de
Portalegre da colecção da Câmara Municipal; as gravuras incisas de Almada Negreiros na Reitoria e Faculdades
de Direito e de Letras; e a azulejaria das três estações de Metro, com
particular destaque para as estações de Entre Campos e Cidade
Universitária.
No 9º. Dia do itinerário por Lisboa, chego
ao Campo Grande acompanhado por quatro gigantes da nossa literatura: José
Régio, Carlos Queiroz, Miguel Torga e Sophia de Mello Breyner (recorde-se que
todos eles nasceram nas duas primeiras décadas do século vinte, época em que
Portugal ainda era um país eminentemente rural, o que tanto contribuiu para a
força das suas obras). Pouco tempo depois junta-se a este grupo Tolentino
Mendonça. A eles pergunto o que seria importante dizer no início do ano
académico aos caloiros que estão a iniciar uma estada de pelo menos três anos
nesta zona fascinante da capital. Os cinco respondem-me que há uma
palavra-chave – ALEGRIA, e que essa «provocação do espírito que nos abeira do
milagre» (Tolentino) tem que ser trabalhada seguindo o conselho de Camões,
citado em epígrafe deste texto e que agora repito: «Os mais experimentados
levantai-os (…) pois que sabem/ O como, o quando, e o onde as cousas cabem.»
Repare-se no que nos dizem estes
escritores sobre a alegria (já foi feita uma citação de Tolentino Mendonça):
José
Régio (reproduzindo palavras da Ti’Pinheiro):
«…Que
minhas meninas! Isto de ser temente a Deus não tira duma pessoa andar alegre e
até gostar de se divertir (…) A virtude é alegre, ora não? (…) Que minhas
meninas!: cá’mim ninguém me tira desta, e o senhor padre Forjaz ainda há dias o
disse do púlpito: A virtude não precisa de carantonhas! Quem está de bem com
Deus anda contente, pois então?! Por que há-de andar macambúzio?!»
Carlos
Queiroz:
É urgente descobrir
Na flora da
fantasia,
Uma espécie de
semente
Que gere a pura
alegria
E se possa
introduzir
Nas almas de toda
a gente.
Miguel
Torga:
«No seu sentido mais profundo, a vida é bela e alegre. Todos nós tivemos já a experiência disso milhares de vezes (…). Mas, apegados como estamos à aparência de tudo, esquecemos a voz do profundo, e ouvimos deliciados o som da superfície. Temos o vício da tristeza.»
Sophia:
-
«Porque Deus nos criou para a alegria»
-
«A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. (…) Parecia estar
muito perto da terra. (…) Vinha desde
sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da
alegria, a substância imortal da alegria.»
Tolentino
Mendonça (novamente):
O pequeno quinhão de alegria que nos resta é suficiente para relançar uma inteira vida.
Como, Quando e Onde devem estas citações,
de escritores muito «experimentados», passar para os estudantes? Comecemos pelo
Onde.
No Campo Grande: aqui eles estão em casa e
os patrimónios cultural e natural são magníficos (não esqueçamos que o jardim
tem excelentes condições para a prática de marcha e de ciclismo).
Passemos para o Quando.
Já neste texto referi a minha simpatia
pelo início do ano lectivo. E, por que não no contexto das praxes? Seria a
componente cultural de uma prática ancestral que pretende unir e dar ânimo.
Entremos agora no momento mais complexo,
mas também mais empolgante do processo de transmissão da mensagem: o Como.
Penso que é indispensável recorrer a
vários meios, mas fiquemo-nos, neste artigo, por dois: 1º. mais textos
literários; 2º. a Beleza.
António Gedeão diz-nos, na primeira parte
do poema “Homem”: «Inútil definir este animal aflito./ Nem palavras,/ nem
cinzéis,/ nem acordes,/ nem pincéis/ são gargantas deste grito./ (…)» É um
magnífico poema, mas não concordo com o poeta. Se é verdade que nenhum ramo da arte
consegue, só por si, definir o Homem, talvez seja verdadeiro afirmar que em
conjunto conseguem. Régio dizia-nos: «Procuro uma expressão integral lançando
mão de vários recursos vindos de vários ramos de arte.» E isto está ao nosso
alcance no jardim do Campo Grande. Aqui podemos dar acolhimento às «palavras»; aos
«cinzéis»; aos «acordes»; e aos «pincéis». Painéis de azulejos e esculturas de
artistas consagrados e desconhecidos (por que não estudantes?) poderiam, com um
caracter de rotatividade, ser colocados em vários pontos do jardim ilustrando a
arte da palavra.
Vejamos mais sugestões de textos, e
comecemos com propostas de Aforismos:
No Jardim:
- Nunca escolhas uma cidade para viver se não tiver jardins.
Junto à Faculdade de Psicologia:
- Quem não se conhece poderá ser assassino de si
mesmo.
- O melhor espelho não reflecte o outro lado das
coisas.
Entre a Faculdade de Letras e a Torre do Tombo:
- Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai.
- Junto à
Faculdade de Letras:
- Quem domina a sua língua salva a sua cabeça.
- As palavras são como a teia de aranha: para o
homem habilidoso, são um abrigo; para o desajeitado, são uma armadilha.
- Junto à
Faculdade de Direito:
- A corda para amarrar os pensamentos ainda não foi
urdida.
- A mentira dá flores, mas não frutos.
No Centro Alameda da Cidade Universitário
- Quem estuda com um só mestre desconhece a
abundância.
- Uma só cabeça nunca se põe de acordo.
- O bico da pena penteia a cabeleira da linguagem.
- Aquele que confessa a sua ignorância mostra-a uma
vez; o que tenta escondê-la mostra-a várias vezes.
- O espírito nunca chega tão longe quanto o coração.
Passemos agora para textos com registo da autoria:
Régio:
[Algumas casas
são (e muitas deveriam ser) como A Velha Casa]
Se ninguém mais o sabia – sabia ele [Lélito] que a sua casa tinha alma e nervos. (…) tinha personalidade própria (…) insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam (…) acabava por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos…
Queiroz:
Quem sabe se era
Dentro de algum
Lugar-comum
Que estava à espera
De nós (em vão)
A salvação?...
Torga:
Ibéria
(…)
Uma antena da Europa a receber
A voz do longe que lhe quer falar…
Estes dois versos
torguianos e a realidade cultural do Campo Grande-Cidade Universitária (onde
encontramos tantos estudantes do Programa Erasmus) levam-me a sonhar com um
monumento escultórico, a ser colocado em frente ao edifício da Reitoria, e
alusivo à União Europeia, com os seguintes versos da Ode à
Alegria,
de Schiller, inspiradores da nona sinfonia de Beethoven e do Hino da União
Europeia:
Alegria, mais belo fulgor divino,
(…)
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
(…)
Todos os homens se irmanam
Onde pairar teu voo suave. .
A quem a boa sorte tenha favorecido
De ser amigo de um amigo,
(…)
Rejubile-se connosco!
(…)
Abracem-se milhões de seres!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Este «beijo para todo o mundo» deve ser enviado
pelos estudantes da Universidade. É esta a mensagem, datada de 1534, de André
de Resende e gravada no terraço fronteiro ao edifício da Reitoria: «É
vosso dever conseguir, com empenho e trabalho fiéis, que a universidade de
Lisboa se torne não menos celebrada em todo o mundo do que a própria cidade.»
Sophia:
O Rei de Ítaca
A civilização em
que estamos é tão errada que
Nela o
pensamento se desligou da mão
Ulisses de Ítaca
carpinteirou seu barco
E gabava-se
também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado
Tolentino Mendonça:
- O encontro com a beleza é tão decisivo que há um antes e um depois, é
uma estação nova que começa para a nossa vida.
- Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não
encontre no mundo linguagem melhor do que o silêncio.
- Na diversidade das tradições religiosas e espirituais da humanidade, o silêncio é um traço de união extraordinariamente fecundo.
Apesar do aspecto caótico da actual
sociedade internacional, acredito que a Humanidade poderá, a curto prazo,
atingir um patamar civilizacional muito alto. Penso que podemos aplicar ao
nosso tempo os versos que Mário de Sá-Carneiro utilizou, para se definir, no
poema “Quasi”:
Um pouco mais de sol – eu era brasa.
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
(…)
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama
(…)
- Ai a dor de ser quasi, dor sem fim…
(…)
Aos jovens que entram agora para a
Universidade é preciso dar-lhes condições para que dêem o «golpe de asa» que
lhes permita propôr à ONU um provisório 31º. Artigo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, com uma redacção semelhante à seguinte:
Cada ser humano tem o direito (e o dever) de exigir a ele próprio e às Instituições Nacionais e Internacionais que no início da segunda metade deste século o mundo seja um Reino Maravilhoso, isto é, uma comunidade onde reine aquilo a que Torga chamava «uma paz lúdica e laboriosa».
«Valete, Fratres.» (Pessoa)
José Manuel Cymbron
Professor do Ensino Superior e Investigador na área do Turismo Cultural
2 comentários:
Junto à escola primária:
"O que nasce torto tarde ou nunca se endireita."
"A cavalo dado não se olha o dente."
Ditado Zen que completa o provérbio anterior:
"Apanha o cavalo vigoroso do teu espírito."
Dentro da escola devemos sempre dizer aos alunos:
"Tudo o que interessa é interessante."
William Hazlitt
Arthur Schnabel afirma:
"As notas eu domino tão bem como tantos outros pianistas. Mas as pausas entre as notas - ah, aí é que está a arte!"
Intervenções orais de docentes devem sempre ter como fundamento esta frase de John Cage:
"Nada tenho para dizer, estou a dizê-lo, e isso é poesia."
Haveria muito mais a acrescentar mas, como diz Alan Wats:
"Ninguém tem uma boca tão grande para dizer tudo."
É indispensável que se leia, sobretudo, o que não é o discurso da "verdade oficial". A função do livro é de tal modo indomável e imprevisível, que os autores da clandestinidade, os desmancha-discursos, "malditos", "proscritos", "excomungados", que não alinham nem servem cartilhas, grémios, associações, partidos ou religiões, são a melhor garantia de podermos aprender alguma coisa importante sobre o que pensam os loucos, ou aqueles que são tomados como tais, algo que nos interesse ou sirva de aviso e de esclarecimento, ou lição, ou de visão. Podem ser como aquelas raras pessoas que se incomodam a dizer verdades que normalmente ninguém deve saber. Os livros podem ser a única forma de acesso a verdades que não têm o direito de existir, por qualquer razão, conhecida ou desconhecida, a informação muito relevante, que não poderemos encontrar noutro lugar, nem de outro modo. Os livros, que não chateiam ninguém, que estão quietinhos e não fazem barulho, são dos objectos que, ao longo da história, mais foram odiados, perseguidos, queimados e que, ainda assim, sobreviveram aos seus algozes e inimigos, muitas vezes, devido ao amor dos seus leitores.
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