O futuro que espera as universidades - como espaços físicos, de encontro - é a sua dissolução, escreveu Ronald G. Musto, professor de História norte-americano. Sobreviverão algumas, poucas, universidades para elites (ver aqui e aqui).
"Hoje, lentamente no início e em casos isolados, mas cada vez mais nos níveis local, estadual e nacional, as universidades são submetidas à mesma narrativa: «são instituições inúteis que estão muito aquém de cumprir seu papel social, que é educar nossos filhos para empregos úteis»; «usam demasiados recursos para enriquecer alguns professores e administradores irrelevantes», «estão fora de moda, substituídas por entidades com fins lucrativos, acreditação on line e programas de treino de empresas»..."
Estas palavras foram escritas antes da COVID-19. Acontece que a doença, desde as suas primeiras manifestações, foi usada como o grande argumento para fortalecer a narrativa, precipitando a dissolução a que Musto se refere, conferindo-lhe um sentido de inevitabilidade e, mais do que isso, apontando-a como a melhor medida possível, o passo que faltava dar para que o mundo pudesse ter um ensino superior inequivocamente inovado.
Em 22 deste mês o filósofo italiano Giorgio Agamben publicou um texto com o título - Requiem per gli studenti - que tem tudo a ver com o supra dito. Eis uma síntese, escrita num tom "mais suave" do que é o do autor.
Como havíamos previsto, no próximo ano, na universidade, as aulas serão realizadas on-line. A pandemia foi usada como pretexto para a difusão das tecnologias digitais, não pontualmente, mas como recurso sistemático. A presença física de professores e alunos é eliminada, e com ela são eliminadas as suas discussões sobre o conhecimento, essência da própria universidade.
Faz parte da barbárie tecnológica, pela qual estamos a passar, o cancelamento de qualquer experiência dos sentidos e a perda de olhar que vá além do ecrã, ao qual estamos aprisionados.
Mas mais decisivo do que isso é algo de que não se tem falado: o fim do estudante, como modo de vida.
Lembremo-nos que as universidades são o resultado do esforço que aqueles que queriam estudar faziam para se encontrarem. Na sua base estão associações de estudantes das mais diversas partes da Europa.
Ser estudante era, antes de mais, uma forma de vida, na qual as lições dos mestres tinham importância, mas não tinha menos importância o intercâmbio entre colegas. Esse modo de vida que evoluiu de múltiplas maneiras, desde os clérigos viajantes da Idade Média aos movimentos estudantis do século XX, durou quase dez séculos mas está agora a terminar e para sempre.
Os estudantes, separados por centenas ou milhares de quilómetros, fechados nos seus quartos, "recebendo aulas", deixarão de se encontrar nos espaços da universidade, e deixarão de morar nas cidades em que as universidades se localizam. É todo um fenómeno social que desaparece.
Porém, em certo sentido, a universidade merece este fim, pois tornou-se numa instituição onde grassam a corrupção e a ignorância especializada.
Para que a tradição universitária permanecesse viva seria preciso que:
1. Os professores que aceitam - como está a acontecer - submeter-se à nova ditadura on-line, se recusassem a fazê-lo; ela tem laivos de ditaduras já experimentadas;
2. Os estudantes que realmente querem sê-lo, recusassem inscrever-se em universidades transformadas e reivindicassem ser, como no início, universitários, constituídos em novas universitates, onde possa permanecer viva a palavra do passado e nascer qualquer coisa como uma nova cultura.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
1 comentário:
Porquê a morte da Universidade?
• Crónico subfinanciamento do Ensino Superior por parte do governo;
• Precarização do trabalho dos assistentes convidados, bolseiros e investigadores;
• Valorização política e social do modelo de gestão empresarial cumprindo necessidades do mercado e colocando a formação ao serviço de interesses empresariais;
• Proletarização do saber, regulada pelo mercado competitivo;
• Privatização numa lógica comercial com fins lucrativos;
• “Primazia das metodologias quantitativas; ênfase de estudos de caráter avaliativo e de diagnósticos informados pela racionalidade económica, baseados na análise de custo-benefício; preocupação obsessiva com a medição dos resultados da aprendizagem através da aplicação periódica de testes padronizados.” (Santos, 2005, p.61);
• Massificação da universidade – desqualificação do ensino;
• Burocratização dos docentes - dissolução do papel filosófico do saber;
• Proliferação de cursos (tecnológicos, bacharelatos, licenciaturas, pós-graduações, mestrados, doutoramentos, formação contínua, entre outros), especialmente nas instituições privadas, o que estimula o aumento da competição, tendo como reflexo a insolvência de algumas instituições com consequentes movimentos de fusões e aquisições;
• Cultura da universidade individualista, elitista e pouco inclusiva – sobrevive do aluno, mas pouco se importa com ele;
• Acumulação exponencial de tarefas académicas que levam à exaustão dos alunos sem utilidade fundamentada;
• Alunos deixados à mercê do seu autodidatismo, imersos em revisões bibliográficas, livros, trabalhos académicos, frequências e exames. No final, os produtos são teses plagiadas, bem ou mal, ou trabalhos com pouca qualidade, sem qualquer consequência no avanço científico;
• Corrupção – lobbys diretos, de topo , de base marginais à ética (estranhos convites a pessoas para exercer cargos sem a menor capacidade para o efeito, enquanto outros com currículo sustentado ficam na sombra).
"O homem é o lobo do homem" (FREUD, 1980/1930, p.133), isto é, colhemos o que semeamos.
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