A história da Terra lê-se nas rochas. Com efeito, as rochas podem ser entendidas como documentos que os geólogos aprenderam e ensinam (se for caso disso) a ler.
Os fósseis que muitas delas encerram, como é o caso das rochas sedimentares, e os minerais são duas das letras dessa escrita.
Como constituintes mais peliculares da litosfera acessíveis à curiosidade dos geólogos, as rochas sedimentares constituem um domínio particularmente importante da Geologia e são o fulcro das preocupações dos sedimentólogos, uma especialização relativamente recente que se fica a dever aos interesses das grandes empresas petrolíferas.
Armazéns ou arquivos de vultuosa informação, estas rochas têm-nos permitido descodificá-la e, assim, conhecer grande parte da história da Terra e da vida.
Numa linguagem com preocupações de estilo, poder-se-ia dizer que as rochas sedimentares trazem consigo não só as marcas dos seus progenitores, mas também as das condições ambientais em que foram geradas, ou seja, como e onde nasceram. No mesmo estilo de linguagem, muitas delas revelam-nos, ainda, a data do seu nascimento.
É, pois, nesta medida que podemos comparar as camadas de rochas sedimentares às páginas de um grande livro onde está escrita uma história com milhares de milhões de anos.
Em 1941, o russo, George Gamov, físico, cosmólogo e conhecido divulgador de ciência, escreveu: "O Livro dos Sedimentos, reconstruído pelo esforço de diversas gerações de geólogos, equivale a um extensíssimo documento histórico, ao lado do qual todos os alentados volumes da História da Humanidade não passam de insignificantes opúsculos”.
SE o cidadão abarcar os “como” e os “porquês”, os “quando” e os “onde” da dinâmica inerente aos processos que levam à génese das rochas sedimentares:
(1) alteração das rochas em superfície por efeito dos agentes externos (meteorização),
(2) erosão,
(3) transporte e
(4) sedimentação;
SE interiorizar os principais conceitos sobre os mais variados ambientes de sedimentação (fluvial, deltaico, estuarino, lacustre, palustre, marinho litoral ou profundo, desértico, glaciário, entre outros) que hoje nos rodeiam em todas as latitudes, a ponto de os poder correlacionar com os do passado, e se souber que foram ambientes iguais ou semelhantes a esses que, ao longo de milhares de milhões de anos, estiveram na origem de uma parte substancial das rochas sedimentares e das que delas derivaram por metamorfismo e anatexia (fusão em profundidade e transformação num magma);
SE adquirir preparação de base nestes domínios,
irá entender a maravilhosa história do planeta que nos deu e assegura a vida, e deixará de olhar para a Geologia como uma disciplina desinteressante e fastidiosa, que, tantas vezes, professores não habilitados debitam, acriticamente e sem entusiasmo, por dever de ofício, matérias estereotipadas e isoladas de um todo harmonioso, matérias que o aluno decora por obrigação curricular e que lança no caixote do esquecimento, passado que foi o exame final.
Tem sido este o quadro nas nossas escolas, amarradas ao programa oficial, onde a Geologia sempre foi subalternizada. Quadro em que o cidadão comum, marcado por uma conhecida e lamentável iliteracia geológica (e não só), cresceu e cumpriu a escolaridade obrigatória. Quadro em que, salvo as sempre honrosas excepções, cresceram e se formaram as mulheres e os homens que hoje temos na política, na administração, nas empresas, na cultura, na comunicação social.
Na Enciclopédia (com mais de 50 volumes) de “Os Irmãos da Pureza” (nome de uma fraternidade de filósofos ismaelitas que se admite terem vivido em Bassorá, no Iraque) obra colectiva, inspirada nas filosofias pitagóricas, platónicas e neoplatónicas, aristotélicas e na do próprio Corão, acabada por volta do ano de 980, diz-se, numa notável antecipação aos conceitos modernos, que
“a erosão destrói perpetuamente as montanhas e que o escorrer das águas pluviais arrasta rochedos, pedras e areia para o leito das torrentes e rios; diz-se ainda que, por seu turno, ao escoarem-se, os rios acarretam tais materiais para os pântanos, lagos e mares, onde os acumulam sob a forma de camadas sobrepostas”.
Diga-se que o principal objectivo destes “Irmãos” era o conhecimento do Universo, na sua grande harmonia e beleza, apontando a necessidade de uma preocupação que fosse para além da existência material.
No século XIII, Alberto, o Grande (1206-1280), aludia ao
“lodo agarradiço e viscoso, trazido pelas águas, que cimenta a terra (material detrítico, desagregado) e a transforma em rocha dura”.
No século XIV, Jean Buridan (circa 1300-1360), filósofo francês e reitor da Universidade de Paris, questionou algumas das concepções aristotélicas. Escrevia ele, reformulando uma ideia vinda da Antiguidade:
“Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará”.
No século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) admitia que
“os fósseis encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo dos mares”.
Polemizando entusiasticamente com os defensores de ideias conservadoras, contrárias às suas, da Vinci descreveu notavelmente os grandes processos actuais e passados da erosão, transporte, sedimentação e fossilização, numa óptica muito próxima das concepções actuais.
No século XVII, o dinamarquês Niels Steensen (1638-1686), mais conhecido entre nós por Nicolau Steno, médico e cientista, teve papel igualmente importante na área da geologia sedimentar, no seu todo, incluindo a estratigrafia, muito antes desta disciplina se ter afirmado como tal, dizia:
“se as conchas e outros restos de antigos seres vivos, encontrados nas rochas de uma dada região, são despojos de animais marinhos, as camadas que os contêm são necessariamente marinhas”,
concluindo que o mar ocupara essa região.
Por outro lado, ao dizer que
“as camadas são formadas paralelamente à horizontal, em obediência à gravidade terrestre”,
Steno introduziu o que ficou conhecido por “princípio da horizontalidade original”, concepção que lhe permitia concluir:
“quando as camadas se encontram inclinadas, tal é devido a deformação posterior”.
Uma outra sua afirmação, segundo a qual,
“qualquer camada é mais moderna do que a que lhe fica por baixo e mais antiga do que a que lhe está por cima”,
foi considerada o “princípio fundamental da estratigrafia”, pois mostrou que as camadas sedimentares são cada vez mais modernas à medida que se sobe na série.
Estas afirmações constituem hoje verdades mais do que evidentes, mas foram, na época, grandes passos em frente. Com este autor, as sucessões de camadas sedimentares passaram a funcionar como “arquivos da natureza”, como lhes chamou, mais tarde, o naturalista e geólogo alemão Peter Simon Pallas (1741-1811), e o geólogo francês Faujas de Saint-Fond (1741-1819), ou como “anais do mundo físico”, no dizer do padre francês, Giraud Soulavie (1752-1813), fundador da moderna estratigrafia paleontológica.
Por esta altura, o inglês James Hutton (1726-1797), considerado o pai da geologia moderna, ensinava que
“a história da Terra pode ser decifrada a partir do estudo das rochas sedimentares estratificadas, uma vez que estas rochas se geraram de modo comparável ao dos modernos sedimentos em formação sob os nossos olhos”.
Este raciocínio é hoje usado, automaticamente, sem qualquer hesitação, quando, através do estudo das rochas sedimentares, procuramos conhecer o ambiente e as condições em que foram geradas, ou seja, a “fácies”.
Uma tal concepção, que constituiu um passo decisivo no conhecimento geológico à escala global, assenta no que foi o trabalho deste professor da Universidade de Edimburgo e o do seu concidadão Charles Lyell (1797-1895), corroborado por Charles Darwin (1809-1882) através do estudo do evolucionismo.
Conhecido por “Princípio do Uniformitarismo”, do “Actualismo”, ou das “Causas Actuais”, dele se conhece a expressão que ficou clássica,
“O presente é a chave do passado”.
Esta frase diz concretamente, na situação em que aqui é usada, que qualquer corpo de rocha sedimentar foi depositado por agentes como gravidade, chuva, vento, água corrente, gelo, acções marinhas, etc., todos eles processos familiares nos dias de hoje. As rochas sedimentares, no geral, sedimentos antigos posteriormente litificados, guardam as marcas deixadas pelos ambientes e agentes deposicionais semelhantes aos actuais.
É, pois, com base neste princípio que se elaboram reconstituições paleoambientais contemporâneas das rochas sedimentares que vemos por todo o lado. Hutton dizia que
“a Terra é um sistema dinâmico, cuja superfície está constantemente em transformação em virtude, não só do calor armazenado no seu interior, mas também dos efeitos causados em superfície pela energia solar”.
Por outro lado, no desenvolvimento da teoria plutonista (formação de rochas magmáticas em profundidade), de que foi o protagonista mais visível, as rochas sedimentares ganharam o significado que não tinham tido até então.
Com efeito, o modelo cíclico de renovação da crosta terrestre, implícito nesta visão, resulta, segundo ele,
“de um equilíbrio dinâmico entre a elevação das montanhas, por efeito do calor interno, e a sua posterior erosão”.
Hutton mostrou, ainda, que os materiais resultantes desta erosão eram acumulados em sucessivas camadas sedimentares e aí consolidavam, originando rochas como conglomerados, arenitos, argilitos, calcários, entre outras.
Ao dizer que
“as camadas de rochas sedimentares foram antigos sedimentos que se transformaram em rochas”,
este fundador da moderna geologia dava ênfase à petrificação ou litificação dos sedimentos, habitualmente referida por diagénese.
Dizia ainda Hutton que
“não via vestígios nas rochas que lhes indicassem um começo”.
Esta outra particularidade da sua concepção cíclica trouxe, novamente, para a ribalta das grandes controvérsias científicas da época, o problema da dimensão do tempo geológico, imenso na concepção huttoniana, em contraste com os cerca de 6000 anos defendidos pela Igreja de então.
As ideias inovadoras de Hutton, nomeadamente as referentes ao Actualismo e ao Plutonismo, marcaram o princípio do fim do Neptunismo, um tema a desenvolver num próximo texto…
A. Galopim de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário