terça-feira, 2 de junho de 2020

MOLDAR O BARRO, DA PRÉ-HISTÓRIA AOS DIAS DE HOJE 1) CERÂMICA, TECNOLOGIA E ARTE

Desde muito cedo, no Paleolítico superior, o Homem conheceu a moldabilidade do barro molhado, teve a percepção de que, uma vez seco, este se comportava como um sólido pouco rígido e macio, que se deixava riscar facilmente pelas unhas.

Verificou que, humedecido de novo, voltava a ser moldável. Verificou, ainda, talvez por acaso, que, por aquecimento ao fogo, o barro endurecido pela secagem consolidava de vez, tornando-se coeso e rígido. Nasceram assim, entre outros objectos achados, as conhecidas Vénus paleolíticas. 

Tais características físicas do barro determinaram, desde então, o seu uso numa tecnologia/arte, a que foi dado o nome de cerâmica, a partir do termo grego, "Kerameikos", nome de uma área de Atenas, localizada a noroeste da Acrópole, conhecida como o bairro dos "kerameis", os artesãos que trabalhavam o barro ("kéramos"), ou seja, os oleiros, nas suas olarias, palavra que radica em "ola", o nome antigo da panela de barro.

Uma realidade em todos os tempos e em todas as latitudes, a cerâmica acumula hoje uma indústria e um artesanato com assinalável importância económica, criando e desenvolvendo uma ampla diversidade de produtos de características muito diferentes, tendo a argila, na sua diversidade, por única ou principal matéria-prima. Entre os produtos mais conhecidos figuram o barro vermelho, a porcelana, a faiança e o grés.

Vista como uma tecnologia e, em muitos casos, uma arte, a cerâmica evoluiu e afirmou-se a partir do Neolítico, em especial, sob a forma de vasos, certamente para cozinhar e conservar alimentos. Uma importante expressão desta arte (no sentido de técnica ou habilidade) está na base da chamada Cultura do Vaso Campaniforme, de há 3000 anos a.C. e com origem no Castro Calcolítico do Zambujal, na Estremadura (Torres Vedras), tendo-se expandido depois pela Europa.

Diga-se, ainda, que o termo campaniforme deve o nome ao facto de os vasos de cerâmica decorados, encontrados ali em contexto funerário, terem a forma de um sino invertido. Gravada em tabuletas de argila, pelos sumérios, a partir de cerca de 3200 a.C., com auxílio de objetos em formato de cunha e, por isso, designada por escrita cuneiforme é, a par dos hieroglifos egípcios, o mais antigo tipo conhecido de escrita.

Descobriu-se muitíssimo depois, já no período histórico, que, em excesso de água e um tratamento adequado, a argila se desagrega, formando suspensões algo viscosas (do tipo de uma lama muito fluída), mantidas por tempo suficiente para fazer moldes por vazamento, conhecidas na indústria cerâmica por barbotinas (do francês "barboter", verbo que refere o agitar de um líquido), cuja estabilidade depende das dimensões das partículas e das suas características físico-químicas, bem como das do meio líquido, a água, à qual foi adicionado um desfloculante necessário para manter as referidas suspensões. 

O cozimento (na gíria profissional) da pasta cerâmica a temperaturas elevadas, a partir de cerca de 900 ºC, conduz à criação de novas fases cristalinas, entre as quais (em função da natureza da pasta), cristobalite (polimorfo de sílica de alta temperatura), mulite (silicato de alumínio), cordierite (aluminossilicado de ferro e magnésio) e espinela (óxido de alumínio e magnésio), transformando-a num material, a partir daí, coeso (não-desagregável), rígido (não deformável) e frágil (quebradiço). 

Desde os vasos mais frustes dos nossos ancestrais, à mais fina porcelana, passando pela indústria de barro vermelho, pela faiança e pelo grés, a cerâmica dos dias de hoje assenta nas caraterísticas físicas e químicas dos argilominerais (minerais próprios das argilas, com destaque para caulinite, ilite e esmectite) presentes hoje bem conhecidas em grande pormenor, mas que extravasam os propósitos generalistas deste texto. 

A natureza dos respectivos argilominerais e o seu natural grau de finura (nanométrica) determinantes da maior ou menor plasticidade da argila, face à adição de água, permitem distinguir argilas gordas e argilas magras. As gordas, em grande parte esmectíticas, são demasiado plásticas, de aspecto untuoso, colocando dificuldades à moldagem. As magras, de natureza essencialmente ilítica e/ou culinítica, caracterizam-se pela reduzida plasticidade, colocando, igualmente, dificuldades ao trabalho do oleiro. Cabe a este artesão, sempre que necessário, proceder à mistura de ambas, de modo a obter a pasta cerâmica trabalhável. 

Para determinados produtos, as respectivas pastas, além da componente plástica (os argilominerais), contêm uma outra não-plástica representada por partículas, ou grãos, de feldspatos, quartzo, calcite ou dolomite. Acrescente-se que o quartzo forma o esqueleto do produto final, que o feldspato actua como fundente de alta temperatura, e que a calcite e a dolomite funcionam como fundentes de baixa temperatura. 

Num discurso mais simples, mas suficiente, podemos definir cerâmica como a actividade industrial, artesanal e/ou artística, produtora de objectos utilitários ou decorativos, a partir de pastas cerâmicas trabalháveis, num processo em que estas, depois de moldadas ou enformadas, são cozidas a temperaturas elevadas (próximas ou superiores a 900 ºC), a fim de os produtos obtidos adquirirem coesão, rigidez e, em certos casos, a cor. 

Os produtos cerâmicos obtidos, quaisquer que sejam os grandes tipos (barro vermelho, faiança, grés e porcelana) variam, primeiro, na composição da pasta e, depois, na forma como são produzidas, duas entre outras variáveis que lhes conferem diferentes características adequadas a finalidades distintas. 

Dos lambazes (tijolos burros, maciços e rudimentares) ou dos ladrilhos, à mais fina chávena de porcelana Vista Alegre, passando pelos pratos de cavalinho (estátua) de Sacavém, pelas peças decorativas das Caldas da Rainha pelos azulejos da fábrica Viúva Lamego, pelo galo de Barcelos e pelos bonecos de Estremoz, pelas cantarinhas de Nisa ou pela loiça de São Pedro do Corval, tudo é cerâmica, uma indústria/artesanato e arte de que Portugal se orgulha, sem esquecer os vasos campaniformes do Calcolítico do Zambujal, no concelho de Torres Vedras.

A. Galopim de Carvalho

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