A propósito da decisão de algumas universidades europeias – como Cambridge e Manchester – de não abrirem os seus espaços físicos no próximo ano lectivo, mantendo a leccionação à distância, ainda que podendo ser intercalada com a realização de sessões presenciais em pequenos grupos, Maximiliano Fuentes e Gerardo Boto, professores do Departamento de História e História da Arte da Universidade de Girona, escreveram recentemente um artigo sobre a situação em Espanha.
Nesse artigo – com o título Rumo a uma universidade virtual? – partem de declarações do ministro do ensino superior do seu país a um jornal – Castells: "Hay que estar listos para establecer la enseñanza y evaluaciones online por completo – que, sem destoar de muitos "agentes educativos", declarou que a “universidade híbrida” (combinação dos modelos presencial e virtual) já faz parte do futuro, logo, a aceitação generalizada é apenas uma questão de tempo. A Covid-19 só veio precipitar a necessidade de consolidar a aceitação.
Desassombradamente, tocam no aspecto que muitos têm mencionado como a principal justificação da nova realidade: o lucro económico imediato das empresas de tecnologia. É evidente que a realidade não é assim apresentada; é, como já estamos habituados, apresentada como benéfica para a sociedade e para os alunos e professores.
Resumindo muito as palavras dos autores, notam que as aliança das grandes universidades com as principais empresas tecnológicas permitirá aumentar o número de "consumidores do ensino universitário", ainda que com a degradação do conhecimento, em favor da aquisição de competências/ habilidades. Descartar o ensino sólido das disciplinas – inscritas nos campos científico, tecnológico, social ou humanístico – constitui um risco real que se tenta minimizar ou, se possível, ocultar.
Nesta evolução é possível que muitas universidades públicas, de segundo nível, fiquem esvaziadas de sentido e diminuídas de recursos, sendo conduzidas à extinção. A diferença entre aqueles que podem pagar cursos nas universidades de elite (presenciais ou virtuais) e os que não podem aumentará. Trata-se, afinal, de uma tendência que se tem vindo a afirmar desde a crise de 2008, aproveitada para criar universidades privadas ou concertadas online, apesar de já existirem universidades públicas à distância, como a UNED e a UOC. E tudo isto acontece num contexto de precarização mundial, cinicamente designado como “nova normalidade” que multiplica as tarefas do professor e a mercantilização do ensino.
Os historiadores que seguimos retomam a entrevista para sublinhar que, ao contrário daquilo que o ministro afirmou, a leccionação híbrida significa mesmo uma mudança na actividade associativa, reflexiva e crítica da universidade. Basta a experiência relatada por muito professores e alunos para afirmarmos que isso é assim.
Os professores trabalham em ambientes caseiros, que estão longe de ser espaços adequados para tanto, além de que ocupam grande parte do seu tempo a gerir plataformas. O seu estado é de grande desilusão, visto que a presença no ecrã se afasta cada vez mais das trocas que têm lugar nas salas de aula. Os monólogos tornam-se a parte mais visível e também a mais sombria dessa “normalidade”. Por seu lado, os alunos verificaram, semana após semana, que o ensino virtual não incentiva, antes desencoraja a formulação de dúvidas, o debate articulado, a argumentação objectiva e a controvérsia fundamentada.
Obviamente, a apresentação destas questões não significa, notam, negar a manutenção da formação universitária, num momento de particular vulnerabilidade; o problema é outro. É de saber se estamos dispostos a que a “formação de emergência”, que é possível proporcionar numa situação anormal, se torne na "formação a adoptar" na situação normal, que havemos de recuperar.
Além das questões apresentadas há outras, de ordem ética e legal, que não podem ser deixadas ao acaso, por exemplo, a geolocalização dos alunos, a verificação da sua identidade num exame, a captura de imagem das aulas... Há que perguntar: que controlo há sobre o destino e o uso dos dados que são produzidos?
Falta, também, discutir se a mutação da universidade não tem por referência o novo modelo de mercado de trabalho que se quer implementar, completado com o tipo de relações sociais que lhe são convenientes.
Se não queremos negar a universidade como espaço democratizante por excelência, é urgente pensar nos perigos inerentes à aceitação acrítica das propostas que se querem impor. É isso que têm feito intelectuais, como o professor e filósofo Nuccio Ordine (ver aqui).
Disse ele que as aulas não são apenas o conteúdo transmitido – isso pode ser feito através de qualquer plataforma virtual, com ou sem professor –, são, acima de tudo, experiências humanas compartilhadas. É na sala de aula, mas também nos corredores das faculdades, bibliotecas, seminá-rios e bares, que se constrói um espaço de reflexão e sociabilidade de crucial importância na construção intelectual dos alunos e dos professores. A empatia, a ética, a argumentação, a deliberação, que acontecem nesses cenários, não podem tornar-se virtuais.
Crer-se que elas se podem tornar virtuais priva a educação universitária do seu sentido, ao ponto de enterrar, quem sabe se definitivamente, o espírito humanista, que está na própria raiz da própria universidade e, naturalmente, do conhecimento que lhe dá corpo.
Os professores trabalham em ambientes caseiros, que estão longe de ser espaços adequados para tanto, além de que ocupam grande parte do seu tempo a gerir plataformas. O seu estado é de grande desilusão, visto que a presença no ecrã se afasta cada vez mais das trocas que têm lugar nas salas de aula. Os monólogos tornam-se a parte mais visível e também a mais sombria dessa “normalidade”. Por seu lado, os alunos verificaram, semana após semana, que o ensino virtual não incentiva, antes desencoraja a formulação de dúvidas, o debate articulado, a argumentação objectiva e a controvérsia fundamentada.
Obviamente, a apresentação destas questões não significa, notam, negar a manutenção da formação universitária, num momento de particular vulnerabilidade; o problema é outro. É de saber se estamos dispostos a que a “formação de emergência”, que é possível proporcionar numa situação anormal, se torne na "formação a adoptar" na situação normal, que havemos de recuperar.
Além das questões apresentadas há outras, de ordem ética e legal, que não podem ser deixadas ao acaso, por exemplo, a geolocalização dos alunos, a verificação da sua identidade num exame, a captura de imagem das aulas... Há que perguntar: que controlo há sobre o destino e o uso dos dados que são produzidos?
Falta, também, discutir se a mutação da universidade não tem por referência o novo modelo de mercado de trabalho que se quer implementar, completado com o tipo de relações sociais que lhe são convenientes.
Se não queremos negar a universidade como espaço democratizante por excelência, é urgente pensar nos perigos inerentes à aceitação acrítica das propostas que se querem impor. É isso que têm feito intelectuais, como o professor e filósofo Nuccio Ordine (ver aqui).
Disse ele que as aulas não são apenas o conteúdo transmitido – isso pode ser feito através de qualquer plataforma virtual, com ou sem professor –, são, acima de tudo, experiências humanas compartilhadas. É na sala de aula, mas também nos corredores das faculdades, bibliotecas, seminá-rios e bares, que se constrói um espaço de reflexão e sociabilidade de crucial importância na construção intelectual dos alunos e dos professores. A empatia, a ética, a argumentação, a deliberação, que acontecem nesses cenários, não podem tornar-se virtuais.
Crer-se que elas se podem tornar virtuais priva a educação universitária do seu sentido, ao ponto de enterrar, quem sabe se definitivamente, o espírito humanista, que está na própria raiz da própria universidade e, naturalmente, do conhecimento que lhe dá corpo.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
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