quarta-feira, 3 de junho de 2020

"Rumo a uma universidade virtual?"

A propósito da decisão de algumas universidades europeias – como Cambridge e Manchester – de não abrirem os seus espaços físicos no próximo ano lectivo, mantendo a leccionação à distância, ainda que podendo ser intercalada com a realização de sessões presenciais em pequenos grupos, Maximiliano Fuentes e Gerardo Boto, professores do Departamento de História e História da Arte da Universidade de Girona, escreveram recentemente um artigo sobre a situação em Espanha.

Nesse artigo – com o título Rumo a uma universidade virtual? – partem de declarações do ministro do ensino superior do seu país a um jornal – Castells: "Hay que estar listos para establecer la enseñanza y evaluaciones online por completo – que, sem destoar de muitos "agentes educativos", declarou que a “universidade híbrida” (combinação dos modelos presencial e virtual) já faz parte do futuro, logo, a aceitação generalizada é apenas uma questão de tempo. A Covid-19 só veio precipitar a necessidade de consolidar a aceitação. 

Desassombradamente, tocam no aspecto que muitos têm mencionado como a principal justificação da nova realidade: o lucro económico imediato das empresas de tecnologia. É evidente que a realidade não é assim apresentada; é, como já estamos habituados, apresentada como benéfica para a sociedade e para os alunos e professores. 

Resumindo muito as palavras dos autores, notam que as aliança das grandes universidades com as principais empresas tecnológicas permitirá aumentar o número de "consumidores do ensino universitário", ainda que com a degradação do conhecimento, em favor da aquisição de competências/ habilidades. Descartar o ensino sólido das disciplinas – inscritas nos campos científico, tecnológico, social ou humanístico – constitui um risco real que se tenta minimizar ou, se possível, ocultar.

Nesta evolução é possível que muitas universidades públicas, de segundo nível, fiquem esvaziadas de sentido e diminuídas de recursos, sendo conduzidas à extinção. A diferença entre aqueles que podem pagar cursos nas universidades de elite (presenciais ou virtuais) e os que não podem aumentará. Trata-se, afinal, de uma tendência que se tem vindo a afirmar desde a crise de 2008, aproveitada para criar universidades privadas ou concertadas online, apesar de já existirem universidades públicas à distância, como a UNED e a UOC. E tudo isto acontece num contexto de precarização mundial, cinicamente designado como “nova normalidade” que multiplica as tarefas do professor e a mercantilização do ensino.

Os historiadores que seguimos retomam a entrevista para sublinhar que, ao contrário daquilo que  o ministro afirmou, a leccionação híbrida significa mesmo uma mudança na actividade associativa, reflexiva e crítica da universidade. Basta a experiência relatada por muito professores e alunos para afirmarmos que isso é assim.

Os professores trabalham em ambientes caseiros, que estão longe de ser espaços adequados para tanto, além de que ocupam grande parte do seu tempo a gerir plataformas. O seu estado é de grande desilusão, visto que a presença no ecrã se afasta cada vez mais das trocas que têm lugar nas salas de aula. Os monólogos tornam-se a parte mais visível e também a mais sombria dessa “normalidade”. Por seu lado, os alunos verificaram, semana após semana, que o ensino virtual não incentiva, antes desencoraja a formulação de dúvidas, o debate articulado, a argumentação objectiva e a controvérsia fundamentada.

Obviamente, a apresentação destas questões não significa, notam, negar a manutenção da formação universitária, num momento de particular vulnerabilidade; o problema é outro. É de saber se estamos dispostos a que a “formação de emergência”, que é possível proporcionar numa situação anormal, se torne na "formação a adoptar" na situação normal, que havemos de recuperar.

Além das questões apresentadas há outras, de ordem ética e legal, que não podem ser deixadas ao acaso, por exemplo, a geolocalização dos alunos, a verificação da sua identidade num exame, a  captura de imagem das aulas... Há que perguntar: que controlo há sobre o destino e o uso dos dados que são produzidos?

Falta, também, discutir se a mutação da universidade não tem por referência o novo modelo de mercado de trabalho que se quer implementar, completado com o tipo de relações sociais que lhe são convenientes.

Se não queremos negar a universidade como espaço democratizante por excelência, é urgente pensar nos perigos inerentes à aceitação acrítica das propostas que se querem impor. É isso que têm feito intelectuais, como o professor e filósofo Nuccio Ordine (ver aqui).

Disse ele que as aulas não são apenas o conteúdo transmitido – isso pode ser feito através de qualquer plataforma virtual, com ou sem professor –, são, acima de tudo, experiências humanas compartilhadas. É na sala de aula, mas também nos corredores das faculdades, bibliotecas, seminá-rios e bares, que se constrói um espaço de reflexão e sociabilidade de crucial importância na construção intelectual dos alunos e dos professores. A empatia, a ética, a argumentação, a deliberação, que acontecem nesses cenários, não podem tornar-se virtuais.

Crer-se que elas se podem tornar virtuais priva a educação universitária do seu sentido, ao ponto de enterrar, quem sabe se definitivamente, o espírito humanista, que está na própria raiz da própria universidade e, naturalmente, do conhecimento que lhe dá corpo.

Maria Helena Damião e Isaltina Martins

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