sábado, 6 de junho de 2020

A desigualdades sociais combatem-se com uma educação escolar que verdadeiramente o seja, não com recursos digitais

“Esta crise demonstrou bem como é essencial 
combater as desigualdades, 
designadamente aquelas do ensino à distância”
António Costa, Primeiro Ministro de Portugal 

A notícia corre (aqui, aqui, aqui, etc.): foi aprovado em Conselho de Ministros que, no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social, se gastem muitos milhões de euros na promoção do "ensino digital", pois é preciso "assegurar a universalização do acesso e utilização de recursos educativos digitais"

A designação do Programa diz tudo e, portanto, o meu comentário poderia ficar por aqui: não se trata de um programa educativo, mas de um programa de "estabilização económica e social". A formação do ser humano não está no horizonte, o que está no horizonte é a formatação de "capital humano". Logo, quanto mais dinheiro se gasta nesta formatação maior é o desvio da função formativa que é a da escola pública.

O "maravilhoso" futuro que o Programa promete - a universalização da "escola digital" - é, portanto, desassombradamente isso. Não é outra coisa. Não fico por aqui no meu comentário, vou continuar:

Leio que as escolas terão mais computadores, conectividade e licenças de ‘software’, os manuais serão desmaterializados... Lembremo-nos de que as escolas frequentados pelos filhos dos grandes empresários das tecnologias são escolas onde o papel e o lápis, o quadro e outras "antiguidades" são os recursos usados: lembremo-nos também das muitas investigações credíveis que demonstram a superioridade desses recursos relativamente aos tecnológicos (estudar num bom manual em papel não é o mesmo do que estudar num bom manual digital). Já mencionei neste blogue bibliografia que corrobora tanto uma afirmação como outra, mas se algum leitor precisar de se informar, poderei recordá-la.

Não fica por aqui o Governo: vai "também apoiar a produção de novos recursos didáticos e educativos". Reafirma-se a concepção do professor como técnico-executor. Concepção nada nova que tem permitido que uma panóplia de entidades, incluindo a tutela, considere legítimo pôr nas mãos de profissionais aquilo que lhes cabe engendrar e fazer para utilizar. Ser professor é ter essa capacidade, esse empenho de pensar em cenários e de os criar, para, nas aulas, ensinar os seus alunos.

E, de modo a que os professores apliquem, adequada e convictamente, o que quer que seja, está, ainda, previsto um "programa de capacitação digital dos docentes". Vejo serem dados passos de gigante no sentido de se obterem professores-aplicadores-de-materiais-e-operadores-de-máquinas.

Para que tudo isto seja bem acolhido na sociedade, em especial para os mais directamente implicados, usa-se o estafado argumento da igualdade social: parece que será dada “prioridade aos alunos abrangidos por apoios no âmbito da ação social escolar”. Em nome de um valor como este, que remete para outro que é a justiça social, os governos (repito, este não está só), o que têm para oferecer? Recursos digitais?

Recursos digitais que, note-se e note-se bem, uma panóplia de empresas, como é da sua natureza, faz tudo para vender.

3 comentários:

Pandemia na caverna disse...

Estou para ver que ensino à distância se fará futuramente, no 1.º CEB, com uma CONFAP que sempre abanou a bandeirola da exclusão dos TPC´s - porque os ditos subtraem tempo ao brincar das crianças e exponenciam o trabalho dos pais, sendo que os mesmos não são professores (o que ficou bem patente neste período letivo). Nestas faixas etárias, a autonomia é praticamente nula e perigosa e ainda acresce o facto de alguém ter de tomar conta dos babes o dia inteiro. Portanto, para esses lados, o ensino digital será apenas um instrumento de trabalho, inócuo, usado presencialmente, como já o é e está bem assim. Nos outros ciclos, é mais preocupante. O dinheiro que o governo irá investir terá de ser amplamente justificado por todos nós, logo, a coisa terá de correr bem, mesmo que não ou nem sequer ou que tudo fique ó negro...

Anónimo disse...

Na primária, prosseguir-se-á com o paradigma digital COPY & PASTE.
No liceu e Universidade, para ricos e pobres, consolidar-se-á o paradigma digital COPY & PASTE.
Com as melhorias das aprendizagens que assim hão-de vir, poderemos abalançar-nos na conceção e fabricação de super computadores e dizer ao mundo que somos uma sociedade digital e patati-patatá...

Anónimo disse...

O paradigma do professor/manga de alpaca digital , sem tempo para aprofundar conhecimentos, reflectir, desenvolver o espírito crítico ou produzir os seus próprios materiais. Depois, será muito mais fácil a transição para o professor máquina que ensina à distância.
O pensamento e a reflexão são coisas muito perigosas e devem evitar-se a todo o custo.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...