Acaba de sair no Círculo de Leitores uma nova edição de uma das obras mais fundamentais da Cultura Portuguesa, o "Verdadeiro Método de Estudar" de Luís António Verney". É coordenador da edição, assinando a introdução e as notas Adelino Cardoso. Este é o volume 27 das "Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa" coordenadas por José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais. Com a devida vénia, publicamos aqui o início da Introdução:
Perfil de um pedagogo iluminista
Luís António Verney (1713-1792) foi uma das figuras mais proeminentes do iluminismo português. Foi um estrangeirado, que, tal como António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), concluiu a sua formação no estrangeiro, onde viveu a maior parte da vida, recebendo a influência das novas ideias que iluminavam os espíritos. O seu caso tem, no entanto, algo muito peculiar: uma luta obstinada contra o obscurantismo que cerceava a vida coletiva em Portugal. Com efeito, Verney não fez carreira académica ou eclesiástica, investindo os seus esforços no projeto de reforma do ensino e, mais amplamente, da sociedade portuguesa. O seu olhar acerbamente crítico leva-o a um diagnóstico severo do mal português, um mal endógeno que se caracteriza sobretudo pela insuportável “negligência dos-portugueses em promover tudo o que é cultura de engenho,e utilidade da-república” (p. 59). No entanto, como assinala J. Pina Martins, Verney não foi apenas um “iconoclasta implacável” , porque dedicou o melhor do seu esforço à tarefa de reconstrução do saber e de implementação de uma pedagogia ativa, orientada para o desenvolvimento das potencialidades dos jovens, do seu engenho. A função da escola é aperfeiçoar a natureza, motivando o aluno através do reforço positivo e não de castigos humilhantes. Verney enfatiza este ponto: "Seria bom que nessa sua universidade se desse um rigoroso castigo, ainda de morte, aos que injustamente acometem os novatos e fazem outras insolências. A brandura com que se tem procedido neste particular foi talvez causa do que ao depois se fez e ainda se faz. Neste particular seria eu inexorável, porque a paz pública, que o príncipe promete aos que concorrem para tais exercícios, pede-o assim, e em outros reinos executam-no com todo o rigor" (p. 124(). Trata-se de uma questão de cidadania, que marca um estilo de relação social.
Filho de Dionísio Verney e de Maria da Conceição Arnaut, nasceu em Lisboa, onde aprendeu as primeiras letras com o capelão de sua casa, o Pe. Manuel de Aguiar Paixão. Estudou no colégio jesuíta de Santo Antão, entre 1720-1727, no qual se ensinava latim, cultura greco-latina e retórica. De 1727 a 1729, frequentou o curso de filosofia na Congregação do Oratório. Inesperadamente, em abril de 1729, integrou uma expedição militar, cuja missão deveria prolongar-se por seis anos na Índia portuguesa, mas em novembro desse ano, encontra-se matriculado na Universidade de Évora, administrada pelos Jesuítas, e na qual, uma vez concluídos os estudos em filosofia e teologia, obtém em 1736 o grau de mestre em artes. Logo de seguida, viaja para Roma, onde se doutorou em teologia e direito pela Universidade da Sapienza.
A ida para Roma tem certamente a ver com a procura de um meio intelectual capaz de responder às suas exigências, evitando a negligência lusa nas artes do engenho e da crítica, que promovem a plena realização do ser humano. De facto, Roma é o centro da, mas, acima de tudo, é um símbolo de uma civilização memorável, cuja marca perdura através das línguas e culturas latinas, em especial a italiana, e é uma fonte de inspiração para o projeto reformador de Verney. Aí conheceu figuras relevantes do iluminismo italiano, como Ludovico Antonio Muratori (1672-1750), com quem se correspondeu, e Antonio Genovesi (1713-1769), e desenvolveu fecunda atividade intelectual.
Concluída a formação académica, Verney empenha-se na redação da sua obra emblemática, o Verdadeiro método de estudar, publicada anonimamente em 1746 e, desde logo, envolta em grande controvérsia. Esta obra é, nas palavras do autor, a peça nuclear de um vasto programa de “restabelecimento das artes e das letras em Portugal”, que exige a elaboração de novos compêndios e de obras de síntese nos vários domínios do saber, tendo em atenção o recente avanço dos conhecimentos. Tal é o sentido da produção verneiana, particularmente intensa nos anos subsequentes à publicação do Verdadeiro método de estudar, nomeadamente: De ortographia latina (1747); Oração sobre a aliança da filosofia moderna com a teologia (1747); Carta ao Maquês de Valença (1748); Apparatus ad Philosophiam et Theologiam (1751); De re logica (1751); De re metaphysica (1753); De re physica (1758); Grammatica latina tratada por um methodo novo, claro, e facil (1758). Deixou inéditos manuais sobre história, retórica, poética, gramática grega e hebraica, bem como um curso de teologia.
Para ser eficaz, o projeto reformador de Verney implicava a capacidade de influenciar os decisores públicos, ao mais alto nível, incluindo, nomeadamente, a corte. Esta, porém foi uma relação muito conturbada: a influência que o Barbadinho - pseudónimo de Verney - teve junto de D. João V nos anos que antecederam a publicação do Verdadeiro método de estudar esfumou-se na sequência da polémica que envolveu essa obra. No início do reinado de D. José, entre 1751-1753, beneficiou de apoio financeiro para a publicação de obras como: De re logica e De re metaphysica. As relações com o monarca esfriaram, recebendo novo alento após a expulsão dos Jesuítas (1759) e subsequente reforma dos estudos menores, que se traduziu na implementação de várias medidas preconizadas por Verney, como seja a proibição da Arte do jesuíta Manuel Álvares, uma gramática latina amplamente utilizada nas escolas. Dentro desse ambiente de bom entendimento com o círculo de D. José, onde pontificava o Marquês de Pombal, Verney foi nomeado, em abril de 1768, secretário de legação em Roma. No entanto, em Junho de 1771, foi demitido desse cargo por Francisco de Almeida Mendonça, primo do Marquês de Pombal e ministro plenipotenciário. O afastamento em relação à corte de D. José tornou-se irreversível a partir desse momento. Só foi reabilitado após a morte de D. José (1777) e da subida ao trono de D. Maria I. Em junho de 1780, a Academia das Ciências de Lisboa nomeou-o sócio correspondente em Roma, mas ele só ocupou efetivamente o cargo um ano depois. Em setembro de 1790, foi nomeado deputado honorário da Mesa da Consciência.
No plano material, a principal fonte de rendimentos de Verney terá sido a remuneração de 300 mil réis pelo cargo de arcediago da Sé de Évora, para o qual foi nomeado em 1741.
Verney assume-se como um cidadão da república das letras, que participa na vida cultural europeia, tendo sempre em mente a necessidade de superar o atraso intelectual do Reino de Portugal, contrapondo-lhe o que de mais avançado se fazia na Europa. A forma epistolar adotada no Verdadeiro método de estudar corresponde ao gosto da época, em que a carta é um meio privilegiado de intercâmbio intelectual e um género literário em voga, e simultaneamente ajusta-se da melhor maneira à estratégia de confrontar a situação dos estudos e das letras em Portugal e nos países mais cultos da Europa, de que a Itália é exemplo. Dirigindo-se a um “certo religioso da Universidade de Coimbra, seu amigo”, como é dito na dedicatória “Aos reverendíssimos padres mestres da venerável religião da Companhia de Jesus, no reino e domínio de Portugal” (p. 41), o Barbadinho expõe a sua posição sobre o conjunto dos estudos ministrados em Portugal, respondendo às supostas cartas do seu virtual interlocutor. Nos termos do putativo editor das peças que compõem o livro, trata-se de “cartas eruditas de um autor moderno” (p. 41).
A palavra "moderno", no próprio texto do Verdadeiro método de estudar, reveste-se de alguma ambiguidade, assumindo diversos sentidos: um sentido cronológico, para designar o tempo recente; um sentido doutrinal, para designar ideias e teorias inovadoras; um sentido operatório, para designar a atitude de inconformismo e rotura com o passado, no intento de contribuir para a inovação e progresso intelectual. Verney é moderno sobretudo pelas ideias que defende e pela sua atitude em relação ao saber vigente nas escolas portuguesas, sem outra justificação que a força do costume fortemente entranhado.
Verney tem uma compreensão do presente que lhe é dado viver como um momento progressivo no processo de desenvolvimento do saber, que, muito longe de ser um processo uniforme, segue ritmos diferentes nos vários domínio do saber, procedendo ora por acumulação de novos conhecimentos, ora por rotura com o legado da tradição. Assim, a polaridade entre tradição e modernidade é uma constante da focagem verneiana do tempo do saber. No entanto, essa polaridade pode alargar-se a todo o passado ou restringir-se à escolástica, implicando o regresso à Antiguidade clássica, num quadro novo e mais inteligível.
Seguindo a visão mais típica do seu tempo, Verney entende que a ciência emblemática da modernidade, a física newtoniana, rompe com a física escolástica, mas também com a matriz aristotélica que a inspira. Daí a estratégia de confronto, rejeitando a possibilidade de conciliar o antigo e o moderno: “Quem recebe as experiências e, em virtude delas, quer discorrer; deve renunciar o perípato: quem abraça o perípato deve renunciar às experiências: são coisas totalmente opostas; que uma destrui a outra.» (p. 391).
Em coerência, o autor aplica o mesmo esquema temporal, jogando na polaridade irredutível entre antigo e moderno, à medicina, que é um prolongamento da física. O ponto de viragem é, neste caso, a descoberta da circulação do sangue por W. Harvey, divulgada nas Exercitationes de motu cordis (1628) , deste autor, pelo que tudo o que os médicos escreveram antes de 1628 não vale nada (cf. p. 479).
No que se refere às artes da linguagem e às ciências humanas (direito e ética racional), Verney joga na oposição entre modernidade e tradição escolástica, entendida como uma perversão ou degradação dos clássicos, aos quais se deve regressar. A retórica é, sob este aspeto, um caso exemplar. Na retrospetiva que Verney faz desta arte, Aristóteles foi o seu “mestre” e importantes retóricos gregos e romanos (Cícero, Quintiliano e Longino) levaram-na à perfeição. Depois disso, a retórica decaiu, atingindo o seu ponto máximo de degradação no “século da ignorância”, isto é, no final do século XVI e primeira metade do século XVII (cf. pp.242, 257). O processo de restauração (ressalvando a sua pátria de eleição, a Itália, onde se manteve sempre florescente) ainda estaria em curso no século XVIII. Num domínio distinto, o da ética racional, os filósofos antigos inauguraram a reflexão, tendo declinado, quando os escolásticos operaram a separação entre ética filosófica e teológica, com o intuito deliberado de desvalorizar a primeira (cf. pp. 421,426). Nesse domínio, o "século da ignorância" prolonga-se do século X até aos "tempos do Concílio de Trento" (p. 426).
O cerne do confronto antigos-modernos está no método. Esta palavra adquire uma significação muito ampla no Verdadeiro método de estudar, designando: a organização interna das matérias; a ordem pedagógica da sua exposição e elucidação; os dispositivos técnicos, materiais e relacionais que favorecem o processo de ensino-aprendizagem. Por conseguinte, a questão do método não é meramente formal, envolvendo também os conteúdos e o estilo da relação pedagógica. . (...)"
Adelino Cardoso