Em exclusivo aqui o meu prefácio a um livro sensacional que acaba de ser publicado na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva:
A ÓPERA E A QUÍMICA: DUAS FITAS
DE UMA SÓ HÉLICE
Sendo a arte mais antiga que a
ciência, as ligações entre arte e ciência são tão antigas quanto a ciência. A
moderna ciência, nascida com a Revolução Científica nos séculos XVI e XVII,
apareceu logo em palco nessa época, surgindo os cientistas ou proto-cientistas como
personagens por vezes admirados e noutras vezes amaldiçoados. A Trágica História da Vida e Morte do Doutor Fausto,
do dramaturgo inglês Christopher Marlowe, cuja première ocorreu em Londres cerca de 1592, conta a história de um
alquimista alemão que aspira ao saber absoluto e, portanto, ao poder absoluto e
que, para alcançar os seus fins, assina, com a tinta do seu próprio sangue, um
pacto com o demónio, no qual se compromete a entregar-lhe não só o corpo como a
alma. O demónio oferece-lhe em troca um livro que lhe permite, entre outras
coisas, obter ouro, o elemento químico que está desde a mais remota antiguidade
associado à riqueza. O final desta tragédia, mais tarde retomadoa por Goethe e por vários
outros autores, é bem conhecido: o Doutor Fausto, apesar do seu arrependimento,
acaba nas chamas do Inferno. A moral é que há um preço a pagar pela hubris humana. Estávamos num tempo,
antes da química científica (que só surgiria, com o francês Antoine-Laurent Lavoisier,
no final do século XVIII), mas no qual despontava um novo método de aquisição
do saber, num processo que passaria pelo italiano Galileu Galilei, na física, e
pelo inglês William Harvey, na medicina. Começou nesse tempo a ser claro que
saber significava também poder. No então vasto império português, uma ligação
entre arte e ciência tinha ficado patente três décadas antes, em 1563, quando o
médico Garcia da Orta, o autor dos Colóquios
dos Simples (uma obra de botânica pioneira à escala global), pediu ao seu
amigo Luís de Camões para escrever alguns versos introdutórios. Ciência e arte
estão desde há muito entrelaçadas.
O Doutor Fausto conheceu numerosas versões operáticas, das quais a
mais famosa é talvez a que foi composta pelo francês Charles Gounod e estreada
em Paris em 1859. Mas a primeira ópera data precisamente do tempo do primeiro
Fausto. Conforme o químico João Paulo André lembra no preâmbulo deste seu livro,
essa ópera é Dafne, uma peça musical representada
em Florença em 1597. O autor da música foi o compositor e cantor italiano Jacopo
Peri, em colaboração com Jacopo Corsi, tendo o libreto sido escrito por um outro
italiano, o poeta Ottavio Rinuccini. O espectáculo é hoje irrepetível, pois da
música original só restam alguns fragmentos. O ideário do grupo Camerata Fiorentina, onde aqueles nomes
pontificavam, consistia em revitalizar a antiga tragédia grega, cantando o
texto em vez de o recitar. O enredo, como é contado neste livro, baseia-se num dos
mitos da Antiguidade Clássica: Apolo, o mais belo deus do Olimpo, apaixona-se perdidamente
pela ninfa Dafne após ter sido atingido por uma flecha de Cupido que continha
ouro na ponta. Mas, querendo trocar as voltas a Apolo, Cupido atinge também
Dafne com uma flecha com chumbo, um metal vil, que vai provocar nela a rejeição
do continuado assédio. Perseguida na floresta, Dafne, desesperada, acaba por pedir
ajuda ao seu pai, um deus que a transforma num loureiro (o momento mágico da
transformação foi fixado em mármore por Gian Lorenzo Bernini). E Apolo, para
trazer o seu amor perenemente consigo, passa a usar uma coroa de louros na
cabeça. A ópera Dafne haveria de dar
origem a outras sobre o mesmo tema, por exemplo, a primeira ópera em língua
alemã, estreada em Torgau em 1627, da autoria, respectivamente música e texto,
de Heinrich Schütz e Martin Opitz.
Estando dois elementos químicos presentes
em Dafne, podemos dizer que a química
está na ópera logo desde o seu berço. E continuou nela ao longo da história desse
género musical que chega em expansão crescente até aos dias de hoje, conforme o
químico João Paulo André, tão claramente mostra com abundantes exemplos. Ele
atinge os nossos cérebros com uma “flecha de ouro, que nos deixa interessados
pelo tema. O autor enfatiza não só o papel na ópera de substâncias químicas
simples, como os metais, mas também o de substâncias mais complexas como as poções,
as quais possuem invulgares virtudes transformadoras: eram substâncias
procuradas pelos alquimistas, que se nalguns casos eram remédios milagreiros
noutros se revelavam rapidamente fatais. Na ópera Tristão e Isolda, do alemão Richard Wagner, estreada em Munique em
1865, dois amantes ingerem uma poção mágica. Na ópera Romeu e Julieta, de Charles Gounod, estreada em Paris em 1867,
Julieta, tal como na tragédia homónima de Shakespeare, ingere uma bebida que a
faz cair num estado cataléptico. Na ópera as poções têm ajudado ao início e ao
fim de intensas paixões.
Falando de paixões de um ponto de
vista mais actual, o autor lembra-nos os ensinamentos da moderna bioquímica: são
afinal substâncias químicas que explicam a “química do amor”, o que torna a
ligação entre ópera e química bastante mais profunda do que os exemplos
anteriores já evidenciavam. Quando Goethe intitulou um dos seus romances “As
Afinidades Electivas” pretendia associar as ligações que se fazem e desfazem
entre seres humanos (ainda hoje se diz que entre duas pessoas há “uma boa
química”) às ligações, omnipresentes na Natureza, entre substâncias químicas.
Mas hoje sabemos que no nosso corpo existem hormonas, como a testosterona e a
progesterona, associadas à sexualidade e neurotransmissores, como a β-feniletilamina,
cujos níveis estão correlacionados com estados amorosos. Se o amor está
praticamente por todo o lado na ópera, então poderemos dizer com toda a
propriedade que o mesmo acontece com a química.
E as ligações entre química e
ópera não se ficam por aqui. É curioso referir que o compositor italiano Claudio Monteverdi, autor da primeira
obra-prima operática, L’Orfeo (que se baseia no mito de Orfeu e Eurídice,
outra história de malfadada paixão, onde desta vez entra um veneno), estreada
em Mântua em 1627, era um entusiasta pela alquimia, a “Grande Obra”. Pouco
depois da sua morte, um músico escreveu uns versos encomiásticos que dedicou ao
“Gran Professor della Chimica”. Um grande elogio, embora decerto exagerado. Na
história da ópera, houve porém um autor canónico que foi professor de Química
numa escola superior, o russo Aleksandr Borodin, autor de Príncipe Igor, ópera estreada em São Petersburgo em 1890.
João Paulo André prodigaliza estas
e outras associações, algumas porventura inesperadas para o leitor comum, que relacionam
de uma forma assaz sedutora ópera e química, a “obra de arte total”, por
combinar uma variedade de artes, e a “ciência do meio”, por estar no seio de
outras ciências. Conduz-nos, ao longo de dez capítulos entre o preâmbulo e o
epílogo, numa agradável viagem ao extraordinário mundo da química através do
fio condutor da ópera que é, ao mesmo tempo, uma viagem ao encantatório mundo
da ópera através do fio condutor da química. Química e ópera são, para ele, duas
fitas da mesma hélice, numa bela metáfora em que invoca a molécula do ADN, a
pedra angular de todas as manifestações de vida que conhecemos.
Os exemplos de óperas conhecidos
com minúcia pelo autor que, de uma forma ou de outra, recorrem à química chegam
até à actualidade. Por exemplo, Madame Curie, a famosa física e química polaco-francesa
que foi a única cientista a ganhar dois prémios Nobel de duas disciplinas
científicas, foi fonte de inspiração da ópera Madame Curie, estreada em Paris em 2011, no Ano Internacional da
Química, que assinalava os cem anos do seu segundo Nobel. Foi sua autora a
compositora polaca Elzbieta Sikora, num preito tanto à terra natal de Madame
Curie como ao talento feminino. O físico de origem alemã Albert Einstein, que
foi amigo e admirador de Madame Curie (e que, por isso, aparece na ópera atrás
referida), foi também figura central de algumas óperas, nomeadamente Einstein on the Beach, dos americanos
Robert Wilson e Philip Glass, estreada em Avignon em 1976.
Em 1959 o físico-químico e
romancista inglês Charles P. Snow discutiu, numa famosa conferência que
proferiu em Cambridge, o problema da separação entre duas culturas, a cultura
literária (ou, mais em geral, a cultura artística) e a cultura científica. Deu
como exemplo a obra do dramaturgo inglês William Shakespeare (um contemporâneo
de Marlowe e de Galileu) e a Segunda Lei da Termodinâmica, o primeiro celebrado
por todos os literatos e a segunda ignorada por eles com a mesma unanimidade.
E, contudo, Shakespeare e a Segunda Lei estão mais ligados do que geralmente se
pensa. O professor de Química americano A. Truman Schwartz escreveu: “A Segunda
Lei parece conduzir as tragédias de Shakespeare: no Rei Lear é libertada uma entropia prodigiosa.” Se fosse mais conhecedor da cultura portuguesa, Snow poderia,
para além de Shakespeare, ter referido Luís de Camões, que, antecedendo o bardo
de Stratford-upon-Avon, escreveu que “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
/ Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando
sempre novas qualidades,” que não é mais do que um enunciado poético da Segunda
Lei da Termodinâmica.
Os tempos mudaram. Hoje, passado
mais de meio século sobre a questão das duas culturas, é geralmente reconhecido
que a ciência é um ramo da vasta cultura humana, tal como a arte é outro. Há só
uma cultura, mas, se a virmos como uma longa hélice, poderemos falar de duas
fitas unidas por travessões. O químico americano contemporâneo Carl Djerassi,
um dos inventores da pílula anticoncepcional, ensaiou com a escrita de peças de
teatro baseadas em temas de ciência a construção de pontes entre ciência e o
teatro. Algo semelhante fez um outro químico americano, Roald Hoffmann, Prémio Nobel
da Química de 1981, que escreveu poemas de temática científica para além de ter
partilhado com Djerassi a autoria da peça Oxigénio,
que conta a descoberta desse elemento. E, entre nós, Jorge Calado, que, sendo um
professor de Química, é também um grande especialista em ópera. João Paulo
André, professor de Química e entusiasta da ópera, tem a quem sair e sai-se
muito bem neste seu primeiro livro. Com esta obra, ganha o estatuto de professor
de Química e Ópera, um título exigente a que poucos poderão aspirar mesmo à
escala mundial. Há muitos mestres de Química e, embora em menor número, não são
poucas as pessoas que ensinam Ópera. Mas há poucos, muito poucos, mestres de
Química e Ópera, sábios que consigam fascinar-nos com o entrelaçamento da ciência
e da arte. O autor do livro que o leitor tem em mãos é um mestre das duas
culturas que afinal são uma só.
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