terça-feira, 2 de janeiro de 2018

OS CIENTISTAS TRESMALHADOS


Excerto de “A Ciência e os seus inimigos”, livro saído há pouco na Gradiva.de Carlos Fiolhais e David Marçal, que acaba de ser publicado na revista cultural do Porto "As Artes entre as Letras":

A anticiência encontra‑se por vezes dentro da própria ciência. Falamos de erros ou falhas da ciência, feitos por cientistas a que podemos chamar tresmalhados. De facto, pelo seu mau procedimento, colocaram‑se à margem da comunidade científica.

Há evidentemente erros involuntários na condução do trabalho científico. Já diziam os antigos Romanos que Errare humanum est, e os cientistas só mostram que são humanos quando erram. Os erros corrigem‑se e, depois de pedir desculpa, passa‑se à frente, aprendendo com eles. Existem erratas ou, por vezes, artigos completos a corrigir outros artigos. Não há nada de mal em encontrar erros, bem pelo contrário. Como bem assinalou o filósofo britânico Karl Popper, a procura do erro e o pão nosso de cada dia da ciência, já que ela consiste, na sua essência, na detecção de falsidades. Escreveu Popper: «Uma teoria será científica se e só se for falsificável» e «uma teoria é falsificável se alguém puder mostrar que é falsa ou se se puder refutar usando rigorosos testes empíricos.»

A ciência desenvolveu um método — chamado peer review  — que se destina a encontrar erros antes da publicação de qualquer escrito, o que em geral consegue fazer, sendo descartados os erros mais triviais. Não significa isto que alguns erros não possam escapar ao crivo da revisão por pares. Quando isso acontece, e se se tratar de um tema relevante a que se dedicam vários grupos de investigação, estes são identificados e corrigidos posteriormente, quando outros cientistas tentam replicar os resultados publicados. Ao longo da História, os cientistas sempre tentaram encontrar e descartar erros. Eles são, portanto, muito sensíveis a erros, isto é, desconformidades com a lógica ou com a realidade, sabendo que a verdade é um objectivo longínquo para o qual se caminha de uma forma contínua e progressiva. Embora a verdade seja um ideal eventualmente inalcançável, na maioria dos casos práticos é relativamente fácil para um cientista reconhecer a falta de verdade. O processo científico, onde a revisão por pares desempenha um papel essencial, foi criado e melhorado para cumprir a missão da ciência da melhor maneira possível.

A má ciência acontece quando os erros cometidos por cientistas são intencionais ou, não o sendo, não são reconhecidos pelos próprios quando apontados. Falamos então de fraudes científicas. A definição de fraude científica proposta por um painel britânico em 1999 é a seguinte: Comportamento de um investigador, intencional ou não, que não possui bons padrões éticos e científicos.» Fraude consiste, portanto, na violação dos códigos‑padrão de conduta ética na investigação científica, que implicam a adesão à verdade.

Um dos primeiros deveres dos cientistas é a permanente atenção aos factos. Os cientistas podem e devem ser imaginativos em relação às teorias, mas devem respeitar escrupulosamente os factos. As teorias devem ser ajustadas aos factos e não o contrário. E os factos em ciência são captados através dos chamados dados (data) que são tão sagrados como os factos, uma vez que são o retrato deles.

As fraudes podem assumir as mais variadas formas:

— Fabricação de dados. Podem‑se criar imaginativamente dados falsos para uma certa experiência ou observação. Podem‑se até relatar experiências ou observações que nunca foram realizadas. Como é óbvio, consegue‑se extrair dessa maneira quaisquer conclusões que se queiram, mas essas conclusões de científico não têm absolutamente nada. O método científico foi «macaqueado» mas a ciência é nenhuma.

— Falsificação de dados. Pode haver manipulação de dados, que consiste por exemplo no uso de dados fora do contexto particular em que foram recolhidos, ou na subtracção ou acrescento de alguns dados para que possa emergir uma «verdade» qualquer. Ou pode haver manipulação da experiência, fazendo controlo indevido das variáveis.

— Plágio. Consiste na apropriação do trabalho de outrem, incluindo a apropriação de um projeto experimental, do material experimental ou de dados. Pode também haver simplesmente a cópia de textos ou de imagens escritos ou obtidas por terceiros, sem qualquer referência de autoria.

O número de casos de fraude científica é, infelizmente, cada vez maior em todo o mundo. A razão é simples: nunca houve tantos cientistas como hoje — sim, a ciência continua em crescimento a escala global, apesar da acção de todos os seus inimigos — pelo que, mesmo que a probabilidade de publicação de erros intencionais seja reduzida (devido à acção da peer review), a sua ocorrência em valor absoluto é cada vez maior. Os sinos do sistema científico têm tocado a rebate, chegando o som a toda a sociedade. Por exemplo, a revista The Economist dedicou em 2013 uma capa à fraude na ciência (o título era How science goes wrong), levantando a questão de saber se ainda se podia confiar na ciência. O número de artigos retirados pelos autores ou pelos editores e, portanto, eliminados dos índices das revistas, é cada vez maior. É certo que algumas dessas retiradas podem ser devidas a um erro grave mas genuinamente cometido sem dolo. Mas muitos desses artigos retirados nunca deviam ter sido publicados por enganarem deliberadamente os leitores e prejudicarem o bom nome da ciência. As revistas sérias tomam precauções redobradas, mas há cada vez mais revistas publicadas apenas na internet com processos de revisão duvidosos ou mesmos sem qualquer revisão: é um negócio, basta pagar para conseguir a publicação. Claro que há alguns sinais de alarme que nos podem deixar de sobreaviso, se olharmos, por exemplo, para o factor de impacto dessas revistas, uma medida que contabiliza o número de citações médio de cada artigo nela publicado. É muito fácil publicar o que se queira em certas revistas irrelevantes e obscuras. Há casos espantosos de artigos completamente ininteligíveis, escritos basicamente ao acaso por um computador, que foram aceites para publicação porque foi paga a taxa de publicação. Alguém fica com o dinheiro e nós ficamos com o lixo na internet. Sim, a internet está cheia de lixo, mesmo no sector das publicações alegadamente científicas.  (…)

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