Excerto de “A Ciência e os seus inimigos”, livro saído há pouco na Gradiva.de Carlos Fiolhais e David Marçal, que acaba de ser publicado na revista cultural do Porto "As Artes entre as Letras":
A anticiência encontra‑se por vezes
dentro da própria ciência. Falamos de erros ou falhas da ciência, feitos por
cientistas a que podemos chamar tresmalhados. De facto, pelo seu mau procedimento,
colocaram‑se à margem da comunidade científica.
Há evidentemente erros
involuntários na condução do trabalho científico. Já diziam os antigos Romanos
que Errare humanum est,
e os cientistas só mostram que são humanos quando erram. Os erros corrigem‑se
e, depois de pedir desculpa, passa‑se à frente, aprendendo com eles. Existem
erratas ou, por vezes, artigos completos a corrigir outros artigos. Não há nada
de mal em encontrar erros, bem pelo contrário. Como bem assinalou o filósofo
britânico Karl Popper, a procura do erro e o pão nosso de cada dia da ciência,
já que ela consiste, na sua essência, na detecção de falsidades. Escreveu
Popper: «Uma teoria
será científica se e só se for falsificável» e «uma teoria é
falsificável se alguém puder mostrar que é falsa ou se se puder
refutar usando rigorosos testes empíricos.»
A ciência desenvolveu um método —
chamado peer
review — que se destina a encontrar erros antes da
publicação de qualquer escrito, o que em geral consegue fazer, sendo
descartados os erros mais triviais. Não significa isto que alguns erros não
possam escapar ao crivo da revisão por pares. Quando isso acontece, e se se
tratar de um tema relevante a que se dedicam vários grupos de investigação,
estes são identificados e corrigidos posteriormente, quando outros cientistas
tentam replicar os resultados publicados. Ao longo da História, os cientistas
sempre tentaram encontrar e descartar erros. Eles são, portanto, muito
sensíveis a erros, isto é, desconformidades com a lógica ou com a realidade,
sabendo que a verdade é um objectivo longínquo para o qual se caminha de uma
forma contínua e progressiva. Embora a verdade seja um ideal eventualmente
inalcançável, na maioria dos casos práticos é relativamente fácil para um
cientista reconhecer a falta de verdade. O processo científico, onde a revisão
por pares desempenha um papel essencial, foi criado e melhorado para cumprir a
missão da ciência da melhor maneira possível.
A má ciência acontece quando os
erros cometidos por cientistas são intencionais ou, não o sendo, não são
reconhecidos pelos próprios quando apontados. Falamos então de fraudes
científicas. A definição de fraude científica proposta por um painel britânico
em 1999 é a seguinte: ≪Comportamento
de um investigador,
intencional ou não, que não possui bons padrões éticos e científicos.» Fraude consiste, portanto, na
violação dos códigos‑padrão de conduta ética na investigação científica, que
implicam a adesão à verdade.
Um dos primeiros deveres dos
cientistas é a permanente atenção aos factos. Os cientistas podem e devem ser
imaginativos em relação às teorias, mas devem respeitar escrupulosamente os
factos. As teorias devem ser ajustadas aos factos e não o contrário. E os factos
em ciência são captados através dos chamados dados (data)
que são tão
sagrados como os factos, uma vez que são o retrato deles.
As fraudes podem assumir as mais
variadas formas:
— Fabricação de dados. Podem‑se
criar imaginativamente dados falsos para uma certa experiência ou observação.
Podem‑se até relatar experiências ou observações que nunca foram realizadas.
Como é óbvio, consegue‑se extrair dessa maneira quaisquer conclusões que se
queiram, mas essas conclusões de científico não têm absolutamente nada. O
método científico foi «macaqueado» mas a ciência é nenhuma.
— Falsificação de dados. Pode haver
manipulação de dados, que consiste por exemplo no uso de dados fora do contexto
particular em que foram recolhidos, ou na subtracção ou acrescento de alguns
dados para que possa emergir uma «verdade» qualquer. Ou pode haver manipulação
da experiência, fazendo controlo indevido das variáveis.
— Plágio. Consiste na apropriação
do trabalho de outrem, incluindo a apropriação de um projeto experimental, do
material experimental ou de dados. Pode também haver simplesmente a cópia de
textos ou de imagens escritos ou obtidas por terceiros, sem qualquer referência
de autoria.
O número de casos de fraude
científica é, infelizmente, cada vez maior em todo o mundo. A razão é simples:
nunca houve tantos cientistas como hoje — sim, a ciência continua em
crescimento a escala global, apesar da acção de todos os seus inimigos — pelo
que, mesmo que a probabilidade de publicação de erros intencionais seja reduzida
(devido à acção da peer review), a
sua ocorrência em valor absoluto é cada vez maior. Os sinos do sistema
científico têm tocado a rebate, chegando o som a toda a sociedade. Por exemplo,
a revista The Economist dedicou em 2013 uma capa à fraude
na ciência (o título era How science goes wrong), levantando a questão de saber se
ainda se podia confiar na ciência. O número de artigos retirados pelos autores
ou pelos editores e, portanto, eliminados dos índices das revistas, é cada vez
maior. É certo que algumas dessas retiradas podem ser devidas a um erro grave
mas genuinamente cometido sem dolo. Mas muitos desses artigos retirados nunca
deviam ter sido publicados por enganarem deliberadamente os leitores e
prejudicarem o bom nome da ciência. As revistas sérias tomam precauções
redobradas, mas há cada vez mais revistas publicadas apenas na internet com
processos de revisão duvidosos ou mesmos sem qualquer revisão: é um negócio,
basta pagar para conseguir a publicação. Claro que há alguns sinais de alarme
que nos podem deixar de sobreaviso, se olharmos, por exemplo, para o factor de
impacto dessas revistas, uma medida que contabiliza o número de citações médio
de cada artigo nela publicado. É muito fácil publicar o que se queira em certas
revistas irrelevantes e obscuras. Há casos espantosos de artigos completamente
ininteligíveis, escritos basicamente ao acaso por um computador, que foram
aceites para publicação porque foi paga a taxa de publicação. Alguém fica com o
dinheiro e nós ficamos com o lixo na internet. Sim, a internet está cheia de
lixo, mesmo no sector das publicações alegadamente científicas. (…)
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