Da responsabilidade de José María Hernández Díaz e de Eugenie Eyeang, o livro “Los valores en la educación de África de ayer a hoy”, escrito em três línguas (espanhol, português e francês) e editado pela Universidade de Salamanca em finais de 2017, é mais do que a apresentação do resultado de investigação universitária. Tendo por base a investigação universitária, robustece as débeis pontes que ligam a Europa e a África em matéria de educação escolar, mais precisamente, do seu valor que ela tem e dos valores que a devem guiar.
Uma breve nota curricular dos autores principais e do conteúdo da obra ajudará a explicar esta afirmação.
Hernández Díaz, professor catedrático de “Teoria e História da Educação” da Faculdade de Educação da Universidade de Salamanca, é um académico reputado. No seu vasto e consolidado trabalho conta-se a coordenação do grupo de pesquisa “Memoria y Proyecto de la Educación”.
Eyeang, professora da Escola Normal Superior de Libreville e directora do “Centre de Recherche Appliqué aux Arts et aux Langues”, especializou-se na área da sociodidáctica, dedicando-se, sobretudo, à formação de professores de línguas e ao estudo dos valores éticos no campo da educação, onde tem uma vasta lista de publicações.
Partindo da mesma linha de pensamento no respeitante aos mencionados valores, os dois autores têm aproximado não só Espanha e o Gabão mas também outros países europeus e africanos, bem como o Brasil, na tão necessária reflexão sobre os seus sistemas de ensino.
Estamos perante uma reflexão que visa saber para compreender e compreender para melhorar.
Este é, de facto, o cerne da extensa obra em destaque.
São 799 páginas que se materializam numa introdução (“África, sus valores y la educación”) e em quatro partes (“África, valores y educación. Questões a debate”; “Valores pedagógicos de África, desde si misma. Experiências”; “Miradas poliédricas sobre África, valores y educación”; e “Tiempos e miradas posnacionais. A propósito de África”), em que se organizam sessenta e cinco artigos de participantes no “II Foro sobre África de Educación y Desarrollo”, que teve lugar na Universidade de Salamanca em finais do último Outubro.
Na Introdução, Hernández Díaz e Eyeang destacam, em termos de educação escolar, a importância de “seguir-se o caminho da hibridação cultural, onde caibam todas as expressões e valores que estejam à altura da defesa dos direitos do homem e do cidadão”. É este, de resto, o sentido comum dos artigos que se seguem, veiculando “leituras genéricas, históricas e actuais, análises de experiências e práticas socioeducativas [bem como] leituras críticas sobre os valores que se difundem na escola e o seu lugar no currículo, a simbologia inerente ao quotidiano escolar, os manuais escolares, a organização do tempo e do espaço educativo em diferentes países africanos”.
Trata-se especialmente, ainda que não exclusivamente, de “contribuições elaboradas desde a própria raiz africana, desde os agentes educativos que actuam com a convicção do potencial transformador da educação para a melhoria social”, pois, face a “fenómenos de dor colectiva (…) não se podem cruzar os braços, nem nunca se deve aceitar o conformismo do inevitável”.
Esta recusa de nada pensar nem fazer perante os desígnios dos sistemas educativos que se desviam daqueles que concorrem para o bem-estar da humanidade revela-se uma das mais-valias da obra. O que é tanto mais importante quando se tem visto, nas últimas décadas, múltiplos sistemas de todo o mundo sucumbirem à uniformização neoliberal, mesmo não deixando de declarar que as suas políticas se encontram norteadas para a formação de cidadãos democratas e autónomos e para dar resposta a especificidades concretas das populações.
Sendo uma realidade imposta por entidades e empresas de dimensão supra-nacional centradas no lucro financeiro, saem destacadas as competências funcionais exigidas pelo mercado de trabalho, as quais, nessa medida, devem ser adquiridas por todos os alunos, sem outra qualquer alternativa. Face a esta realidade, interpretada por vários dos autores como manifestamente limitativa, susceptível de configurar novas formas de colonialismo, há um dever por parte de quem tem responsabilidades educativas de a analisar em função dos valores éticos e de procurar alterá-la.
Uma segunda mais-valia da obra é a visão da educação que proporciona a partir da realidade africana, o que, na verdade, não é costume nas universidades europeias. Realmente, o estudo dessa realidade, “no melhor dos casos”, traduz-se, disse Hernández Díaz ao jornal “Ensino Magazine” de 20 de Julho, em “alguma presença testemunhal em programas culturais (…) mas não muito mais. O que significa que África continua submetida ao ostracismo académico, ao esquecimento científico”. Assim, “merece um espaço nas nossas universidades, nas aulas e projectos, nos currículos, nos livros e revistas, nos congressos”, potenciando a emergência de “novos paradigmas de conhecimento e de cultura pela dimensão global e mundial dos problemas que abordamos na nossa docência e investigação”.
Em concreto, para a questão dos valores importa consolidar e ampliar redes capazes de sustentarem estas duas dimensões. Note-se que algumas redes desse teor já são bem visíveis em trabalhos, tanto teóricos como de observação e análise empírica, apresentados no livro, e das quais resulta uma ponderação axiológica que vai além do que é convencional publicar-se.
Uma terceira mais-valia, que está longe de ser a última a poder ser apontada à obra, é o ângulo que se destaca nessa visão: o das ciências da educação. Estamos num domínio diverso, onde se encontram pressupostos divergentes e modos de laborar nem sempre consistentes, circunstância que, em geral, acarreta suspeitas quanto à validade e pertinência das suas produções, podendo torná-las exercícios estéreis, sem consequências para o melhoramento da educação, afinal o seu fim último.
Ora, o conteúdo em apreço deixa ao leitor uma ideia bem diferente: foi possível que mais de meia centena de especialistas ligados a tal domínio, de geografias distantes e com vivências distintas se focalizassem numa temática e a abordassem de forma abrangente e, ao mesmo tempo, profunda, conseguindo um núcleo duro de conhecimentos, que dignifica as próprias ciências da educação. Núcleo que, uma vez explorado e apropriado pelos sistemas de ensino, eventualmente com apoio das universidades, poderá ajudar, por via da educação, a encarar alguns dos problemas com os quais as sociedades contemporâneas se confrontam, sendo que um dos mais prementes é a deriva dos valores éticos em favor de “valores” que não o são nem o podem ser, sob pena de se entrar num retrocesso civilizacional, já declarado em obras de referência.
A apreciação geral da obra faz ressaltar duas ideias para o presente e o futuro: o valor inquestionável da educação escolar e dos valores éticos que permitiram a marcha da humanidade e, afinal, lhe conferem substância e unidade; e a difícil tarefa que cabe aos educadores quando fazem valer esses valores, visto que o mundo manifesta prioridades pouco compatíveis com eles.
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