segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

COMO VEJO O MUNDO


O Professor Adriano Moreira proferiu no dia 6 de Dezembro no Rómulo- Cdentro Ciência Viva da Universidade de Coimbra uma palestra com o título de cima, que aqui transcrevemos com os devidos agradecimentos ao autor:


A visão solicitada, como testemunho, neste ano de 2017, implica ter presente o que representa o mundo, como memória, na minha lembrança, e ter uma ambição sobre o modelo para o qual a minha escala de valores – o meu eixo da roda aponta. Quanto ao primeiro ponto, tal como esclarece um africanista de origem europeia, que é Agualusa, o tempo é o grande construtor do passado, mas não explica que o imprevisto está sempre à espera de uma oportunidade. Tal função do tempo é reduzida na nossa evolução pelo esquecimento incontrolável, e a visão do mundo futuro, sempre em mudança, sujeito à incapacidade da esperança ser preservada de impedimentos. Com esta convicção da nossa debilidade, começarei por afirmar que o valor principal para o qual gostaria que a evolução fosse orientada, é a regra de que o mundo é “a casa comum dos homens”. E assim procurarei apontar algumas das circunstâncias atuais, que implantaram a incerteza na esperança. Em primeiro lugar porém, começo por lembrar o primeiro dos obstáculos a transpor, o qual tem referência bíblica no castigo infligido aos que intentaram construir a Torre de Babel, tal como vem descrito na Bíblia Sagrada: “em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras… Depois disseram: vamos construir uma cidade e uma Torre, cujo cimo atinja os céus… O Senhor porém disse… Se principiarem dessa maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros”. O resultado, para apenas referirmos este século XXI, foi que a não compreensão implicou um trajeto, por vezes milenário, de confrontos culturais, étnicos, religiosos, que implicaram identificações pelos mitos raciais, negação da igual dignidade dos homens, divisões regionais por fronteiras, organizações políticas competitivas, uma história com períodos sanguinários frequentes, com os que seriam chamados ocidentais, estes a avançarem no domínio da ciência e da técnica, mas também da hegemonia e superior riqueza, sem que isso impedisse que os seus próprios conflitos armados também marcassem a luta interna pela hegemonia. O século XX talvez possa ser considerado o ponto alto de referência para a meditação do futuro: primeiro pelo avanço científico e técnico que avançou até à ambição de criar a inteligência artificial, festejada com fausto e regozijo no Portugal de hoje; este festejo não enunciou, mas não conseguiu esconder que se propunha para o futuro uma ciência sem consciência; deste modo ferindo o recurso a uma “lei internacional”, função atribuída à meditação de Bentham (1780), um pensamento que inclui as cogitações de Aquino, Grotius, Pufendorf, Vattel, e Kant, todos procurando ultrapassar a punição da Torre de Babel, legitimando uma jurisdição internacional, no século XX, depois de duas Guerras Mundiais, que finalmente levou à criação da ONU, e ao paradigma do “Mundo Único” como premissa do estatuto da organização, e à Declaração de Direitos do Homem, tudo escrito por ocidentais. Mas se as duas guerras conduziram a esta organização, também incluíram os efeitos colaterais: que o Ocidente perderia o domínio do Império Colonial Euromundista, e com ele a posse das matérias primas, o controlo dos mercados dos produtos acabados, e o terrível poder de estabelecer o regime do trabalho, que incluiu a escravidão, o trabalho forçado, o indigenato, o salário, e a privação dos direitos da cidadania. A criação da ONU implicou a aurora de um novo futuro sonhado, mas foi surpreendida pela voz livre das áreas culturais libertadas, pela primeira vez na história da Humanidade, confrontando na Assembleia Geral a cultura ocidental plasmada no texto, e colocando a ONU na presidência de um Mundo de Ruturas. Durante meio século a Ordem Internacional da ONU foi limitada e constrangida pela Ordem dos Pactos Militares – NATO e VARSÓVIA –, pelo confronto das ideologias – democracia e sovietismo –, pelo processo que, no antigo chamado Terceiro Mundo, de facto adotou o modelo do Estado Extrativo, que era uma nova versão interna do Poder Colonial expulso: a Europa, antiga “Luz do Mundo”, a interrogar-se sobre se o projeto da União tem futuro, sem conceito estratégico e hesitante entre a União ou a Federação, atingida pela crise económica e social que fez reduzir a protetorado os países pobres do Sul – Grécia, Chipre, Itália, Espanha, Portugal, com as liberdades de circulação, o progresso científico, a criatividade, não conseguindo capacidade de enfrentar com êxito a perda de ligação e confiança entre os eleitorados, e os governos dos Estados membros com a instituição globalizante, mostrando o todo dominado pelo fenómeno da inidentidade, que o progresso do Estado Espetáculo, do emaranhado dos meios de comunicação, implica que seja a criada imagem dos dirigentes que se apresenta ao voto, e não a autenticidade visível de homens como foram os dirigentes vitoriosos da II Guerra Mundial, os fundadores da União que esqueceram os sacrifícios a favor de uma solidariedade futura, o turbilhão muçulmano com a consequência da anarquia mortífera das migrações: o resultado visível, não só no Ocidente, é o renascimento da Memória do passado, (Alemanha, Reino Unido, China, Rússia) como solução para os efeitos negativos da situação na sua definição particular de interesses, os “micronacionalismos” (Espanha, Itália, Reino Unido), o enfraquecimento da solidariedade atlântica com o lema “America First”; e, quanto à hierarquia das potências, que afeta o também pressuposto da ONU que é o do “mundo único”, isto é, sem guerras, a questão do “Desafio dos Emergentes”. Neste preocupante aspeto do mundo em que vivemos, é evidente a diferença de conteúdo da palavra “soberania” que foi dominante no período do domínio ocidental. Critério dominante na questão da sempre presente hierarquia das potências, começou por ter como fator dominante de referência, a capacidade militar de responder com êxito às tentativas exteriores contra o interesse dos Estados, ou apoio vitorioso da expansão do mesmo Estado. A evolução levou a que, sem perda, como veremos, da capacidade militar, fatores como a ciência, a técnica, a cultura, implicassem com o conteúdo diferenciado da tal soberania, e portanto com a alteração da hierarquia das potências. Deste modo, ao contrário do imaginado a Norte por homens como Churchill, (que l’Europe se léve), os chefes dos governos antes adversários, guiados pelo saber de Jean Monnet, e no antigo Terceiro Mundo, por idealistas ativos como Gandhi e Mandela, verdadeiramente tocados de santidade, o mundo de 2017 é um “Mundo de Ruturas”, e, ao contrário de “mundo único”, isto é sem guerras, é um mundo de incertezas, em que se destacaram, para além de uma espécie de “outono ocidental”, com os EUA a perderem o fulgor de “Casa no alto da Coluna”, o projeto francês da Euráfrica anulado por um Mediterrânio transformado num cemitério, a guerra do Cabo ao Cairo envolvendo umas trezentas ou quatrocentas mil crianças, com o Sudão a servir de referência, e a crise Europeia e Ocidental, com todas as facetas que já indiquei, com o avanço da técnica e da ciência sem consciência, com presença terrível na rutura da paz, desafiando quer a hierarquia das potências, esta com a evolução que mencionei, mas a provocar as “guerras em toda a parte”, expressão usada por analistas da estratégia militar. Com um primeiro lugar para a evolução do “terrorismo”, que antes da guerra de 1914-1918, tinha em vistas as lideranças políticas para desafiar os regimes detestados, e, depois da guerra de 1939-1945, se transformaram num “terrorismo” que ataca a sociedade civil, sobretudo invocando valores religiosos maometanos, para destruir a vida habitual, e a confiança na estrutura do Estado, conseguindo a “vitória do fraco contra o forte” como o primeiro exemplo aterrador no ataque às torres de Nova York. Confere-se isto com a série de atentados que antecederam ou acompanharam o ambiente da Guerra de 1914-1918.

O Conselho de Segurança foi, na estrutura acordada para a ONU, o organismo consagrador da desigualdade dos Estados, pela criação do direito de veto, numa data em que o poder militar era o critério da hierarquia. Não faltaram motivos para a intervenção do Conselho, até, como aconteceu com a tentativa vetada de dois membros desse Conselho, com tal privilegiado direito, a França e a Inglaterra, impedirem a nacionalização do Suez pelo jovem Nasser, dirigente do Egito. Mas nesta data em que, em ritmo crescente, as iniciativas do governo de Pyongyang, que teve a última exibição com o lançamento do míssil que atingiu a zona económica exclusiva do Japão, não parece inquietar o Conselho de Segurança, que parece ter esquecido o comentário de Bismark, demonstradamente validado por duas guerras mundiais, de que “qualquer coisa insensata leva a uma guerra devastadora da Europa”, com a diferença de que agora trata-se da devastação do mundo. Que o Ocidente, a viver uma época de outono, seja considerado pelo antigo “terceiro mundo” como o maior agressor dos tempos modernos, tem outras advertências, como a agressividade com que o Presidente Macron foi recebido em Burkina Faso, quando parecia dar passos para ressuscitar a ideia francesa do século passado, que pareceu esperançosa para os interesses da Europa, e para apaziguar a memória do colonialismo, quando recebeu o nome de Euráfrica. Neste caso não chegou a humildade das palavras de Macron afirmando, na sua “prova oral africana” como a imprensa a assinalou, que “os crimes da colonização europeia são incontáveis”, salvaguardando embora que “também se fizeram grandes coisas e houve histórias felizes”, para amenizar a hostilidade. Mas este facto não é apenas sintoma de que ainda há muito trabalho a desenvolver para que a confiança reciproca apoie uma nova época de cooperação amiga, com esquecimento possível dos agravos: também acentua que a agressividade orientadora do governo da Coreia do Norte tem pelo menos salpicos de eventual apoio no antigo “terceiro Mundo”. E tais ensaios não podem ser bem contestados, e sobretudo contidos, pelos modelos de resposta do atual Presidente dos EUA. A consistência dos repetidos ensaios da Coreia do Norte, reveladores de que está suficientemente habilitada no sentido de conduzir à catástrofe mundial, não dispensam que a leviandade verbal das respostas, mal dirigidas a uma suposta recetividade e pacificação mal prevista do adversário inquietante, seja substituída pela meditação séria, concertada, e autêntica, que é dever do Conselho de Segurança, quando não são ocasionais interesses de cada membro que estão em causa, é até mais do que a ordem jurídica mundial: é sim a eventual suficiência de “qualquer coisa insensata” para desencadear um conflito de dimensões que nenhuma experiência histórica permite avaliar. No fim da segunda guerra mundial, bastou uma intervenção de Churchill – “que a Europa se levante” – para desencadear o movimento que, chamado pelos resultados “guerra fria”, evitou o pior. Mas a ausência de resposta do Conselho de Segurança, talvez atingido pela diminuição da capacidade da ONU para ser escutada, e seguramente porque a desorganização da governança do globalismo dificulta a conjugação de esforços para uma resposta de pacificação ou defesa mundial, aponta para facilitar o desastre sem precedente. Mas seguramente com destruições que ameaçam serem irreparáveis. Perante estes riscos, não pode, qualquer que seja a orientação do governo, haver governo atento e responsável ao qual passe despercebido que as palavras, mesmo cuidadas, são alternadamente perigosas ou animadoras de esperança. A primeira via é a que aparece mais evidente neste diálogo de irreconciliáveis, situação de incidentes crescentes, com uma passividade excessivamente abrangente de vozes que deviam ser ouvidas, tendo por exemplo a autenticidade e clareza da intervenção de Spaak, no plenário da ONU, quando o ambiente já exigia o que depois, com limitação da liberdade da organização, teria o nome de guerra fria durante meio século. Nesta data, o pessimismo, com fundamento, parece presidir a uma guerra surda, que ameaça justificar a mudança semântica que se verificou quando se passou a servir por números, e não por nomes, as duas guerras mundiais do século passado, como se estivesse anunciada uma série a definir-se com improbabilidade de precisão. Porque as palavras também podem ser poderosas no sentido de servir os valores do humanismo, que inspirou os princípios das Declarações de Direitos, seria tempo de finalmente por em vigor a Declaração Universal de Deveres Humanos, proposta do Inter-Action Council, em 1 de Setembro de 1997, e que continua por aprovar, animando o Conselho de Segurança a intervir com solidariedade geral, porque é o futuro de todos que está ameaçado, não são os interesses de poderes isolados no entendimento do que é a essência do poder de governar em globalismo.

O mais inquietante é o avanço, tão celebrado em Lisboa neste ano de 2017, do progresso e do enunciado papel da inteligência artificial. Trata-se do avanço de uma atitude que talvez possa ter o seu ponto de primeira afirmação na descoberta da utilização militar da energia atómica. Lembre-se que o grupo científico encarregado pelo governo dos EUA de estudar a questão, logo depois do primeiro ensaio com êxito na Califórnia, avisou o governo de que tal poder não poderia ser usado por qualquer Estado. Indiferente ao aviso, os EUA foram o primeiro, e até agora único, Estado a ter experiência de que a posse da Bomba apaga a relutância de a usar: o Japão ficará para sempre com o símbolo do desastre que hoje enfrenta a humanidade: a dispersão da posse desse poder, hoje sempre em evidência pelo comportamento reciproco dos EUA e da Coreia do Norte, isto é, do Ocidente a entrar no seu Outono, e o antigo Terceiro Mundo a ameaçar a Ordem definida pelos ocidentais que fundaram a ONU, mostra que pela primeira vez na História da Humanidade, dois homens afetados de “moral insenity”, podem destruir o pequeno planeta em que nos aconteceu viver. Um facto que torna uma evidência sem reserva, que se agrava, com o entusiasmo pela inteligência artificial, o domínio da ciência sem consciência. Por isso, escritores como Yuval Noah Harari, no seu Homo Deus (História Breve do Amanha – 2015) sugerem que caminhamos para uma “Religião dos Dados”, escrevendo: “o Dataismo afirma que o Universo consiste em fluxos de dados e que o valor de qualquer fenómeno ou entidade é determinado pela sua contribuição para o processamento de dados. Esta poderá parecer-lhes uma noção excêntrica e marginal, mas a verdade é que já conquistou uma grande parte do sistema científico. “Desta forma, o Dataismo derruba as barreiras entre animais e máquinas e espera que os algoritmos eletrónicos acabem por decifrar e obter um desempenho superior ao dos algoritmos bioquímicos”. O que significa o desaparecimento da relação da ciência com a consciência, que presidiu ao desenvolvimento do que chamamos a nossa cultura, a uma defesa da dignidade do homem, a “terra casa comum dos homens”, o “mundo único”. Saber que esta é a circunstância de risco em que nos encontramos neste ano de 2017, talvez tenha sido aprendido pela própria ONU, que por cinco vezes chamou o Bispo de Roma, Papa da Igreja Católica, a falar à Assembleia Geral. Primeiro Paulo VI, que ali pregou que o desenvolvimento sustentado é o novo nome da paz, depois por duas vezes o Santo João Paulo II o pregador contra o sovietismo, depois o Papa Emérito que ali pediu o regresso à autenticidade dos princípios, e finalmente Francisco, o Bispo de Roma que foram procurar no fim do mundo. Este disse, em 1 de Janeiro de 2017, na Mensagem para o 50.º Dia Mundial da Paz: “A violência não é o remédio para o nosso mundo dilacerado. Responder à violência com a violência leva, na melhor das hipóteses, a migrações forçadas e atrozes sofrimentos, porque grandes quantidades de recursos são destinados a fins militares e subtraídos às exigências do dia a dia dos jovens, das famílias em dificuldade, dos idosos, dos doentes, da grande maioria dos habitantes da terra. No fim dos casos, pode levar à morte física e espiritual de muitos, se não mesmo de todos”. Vejo por isso o mundo numa circunstância de exigência de mobilização para repor a via de uma ciência com consciência, para que as humanidades, tão enfraquecidas de apoio nas próprias Universidades e Academias, mantenham a dignidade igual dos homens e mulheres como o eixo da roda que nos conduz, ainda na incerteza da origem e da duração da vida “na terra casa comum dos homens”.

ADRIANO MOREIRA
Presidente do Instituto de Altos Estudos
da Academia das Ciências de Lisboa
Professor Emérito
da Universidade Técnica de Lisboa

Universidade de Coimbra

06/12/2017

1 comentário:

Anónimo disse...

Senhor Professor Adriano Moreira, não lhe parece que o Kim consegui livrar-se duma espécie de "civilizados" que o Ocidente imperialista lhe queria impor. Á semelhança daqueles "civilizados" que cuidaram do Kaddafi. Sabe certamente qual foi o fim do Kaddafi, o mesmo que queriam para o Assad, mas aí Rússia não deixou, fizeram mal as contas!!. O Kim consegui á sua maneira salvar-se, e consegui-o, onde é que está o mal nisso, não devia proteger-se, não era isso que uma pessoa inteligente tentaria fazer. Quanto à Europa parece que esta agora está irremediavelmente com vergonha de quem lhe tem segurado na trela, e a tem arrastado para onde quer e lhe apetece.

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