O Professor Adriano Moreira proferiu no dia 6 de Dezembro no Rómulo- Cdentro Ciência Viva da Universidade de Coimbra uma palestra com o título de cima, que aqui transcrevemos com os devidos agradecimentos ao autor:
A visão solicitada, como testemunho, neste ano de 2017,
implica ter presente o que representa o mundo, como memória, na minha
lembrança, e ter uma ambição sobre o modelo para o qual a minha escala de
valores – o meu eixo da roda aponta. Quanto ao primeiro ponto, tal como
esclarece um africanista de origem europeia, que é Agualusa, o tempo é o grande
construtor do passado, mas não explica que o imprevisto está sempre à espera de
uma oportunidade. Tal função do tempo é reduzida na nossa evolução pelo
esquecimento incontrolável, e a visão do mundo futuro, sempre em mudança,
sujeito à incapacidade da esperança ser preservada de impedimentos. Com esta
convicção da nossa debilidade, começarei por afirmar que o valor principal para
o qual gostaria que a evolução fosse orientada, é a regra de que o mundo é “a
casa comum dos homens”. E assim procurarei apontar algumas das circunstâncias
atuais, que implantaram a incerteza na esperança. Em primeiro lugar porém,
começo por lembrar o primeiro dos obstáculos a transpor, o qual tem referência
bíblica no castigo infligido aos que intentaram construir a Torre de Babel, tal
como vem descrito na Bíblia Sagrada: “em toda a Terra, havia somente uma
língua, e empregavam-se as mesmas palavras… Depois disseram: vamos construir
uma cidade e uma Torre, cujo cimo atinja os céus… O Senhor porém disse… Se
principiarem dessa maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem
todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem
deles que não consigam compreender-se uns aos outros”. O resultado, para apenas
referirmos este século XXI, foi que a não compreensão implicou um trajeto, por vezes
milenário, de confrontos culturais, étnicos, religiosos, que implicaram
identificações pelos mitos raciais, negação da igual dignidade dos homens,
divisões regionais por fronteiras, organizações políticas competitivas, uma
história com períodos sanguinários frequentes, com os que seriam chamados
ocidentais, estes a avançarem no domínio da ciência e da técnica, mas também da
hegemonia e superior riqueza, sem que isso impedisse que os seus próprios conflitos
armados também marcassem a luta interna pela hegemonia. O século XX talvez
possa ser considerado o ponto alto de referência para a meditação do futuro:
primeiro pelo avanço científico e técnico que avançou até à ambição de criar a
inteligência artificial, festejada com fausto e regozijo no Portugal de hoje;
este festejo não enunciou, mas não conseguiu esconder que se propunha para o
futuro uma ciência sem consciência; deste modo ferindo o recurso a uma “lei
internacional”, função atribuída à meditação de Bentham (1780), um pensamento
que inclui as cogitações de Aquino, Grotius, Pufendorf, Vattel, e Kant, todos
procurando ultrapassar a punição da Torre de Babel, legitimando uma jurisdição
internacional, no século XX, depois de duas Guerras Mundiais, que finalmente
levou à criação da ONU, e ao paradigma do “Mundo Único” como premissa do
estatuto da organização, e à Declaração de Direitos do Homem, tudo escrito por
ocidentais. Mas se as duas guerras conduziram a esta organização, também
incluíram os efeitos colaterais: que o Ocidente perderia o domínio do Império
Colonial Euromundista, e com ele a posse das matérias primas, o controlo dos
mercados dos produtos acabados, e o terrível poder de estabelecer o regime do
trabalho, que incluiu a escravidão, o trabalho forçado, o indigenato, o
salário, e a privação dos direitos da cidadania. A criação da ONU implicou a
aurora de um novo futuro sonhado, mas foi surpreendida pela voz livre das áreas
culturais libertadas, pela primeira vez na história da Humanidade, confrontando
na Assembleia Geral a cultura ocidental plasmada no texto, e colocando a ONU na
presidência de um Mundo de Ruturas. Durante meio século a Ordem Internacional
da ONU foi limitada e constrangida pela Ordem dos Pactos Militares – NATO e
VARSÓVIA –, pelo confronto das ideologias – democracia e sovietismo –, pelo
processo que, no antigo chamado Terceiro Mundo, de facto adotou o modelo do
Estado Extrativo, que era uma nova versão interna do Poder Colonial expulso: a
Europa, antiga “Luz do Mundo”, a interrogar-se sobre se o projeto da União tem
futuro, sem conceito estratégico e hesitante entre a União ou a Federação,
atingida pela crise económica e social que fez reduzir a protetorado os países pobres do Sul – Grécia, Chipre, Itália,
Espanha, Portugal, com as liberdades de circulação, o progresso científico, a
criatividade, não conseguindo capacidade de enfrentar com êxito a perda de
ligação e confiança entre os eleitorados, e os governos dos Estados membros com
a instituição globalizante, mostrando o todo dominado pelo fenómeno da
inidentidade, que o progresso do Estado Espetáculo, do emaranhado dos meios de
comunicação, implica que seja a criada imagem dos dirigentes que se apresenta
ao voto, e não a autenticidade visível de homens como foram os dirigentes vitoriosos
da II Guerra Mundial, os fundadores da União que esqueceram os sacrifícios a
favor de uma solidariedade futura, o turbilhão muçulmano com a consequência da
anarquia mortífera das migrações: o resultado visível, não só no Ocidente, é o
renascimento da Memória do passado, (Alemanha, Reino Unido, China, Rússia) como
solução para os efeitos negativos da situação na sua definição particular de
interesses, os “micronacionalismos” (Espanha, Itália, Reino Unido), o
enfraquecimento da solidariedade atlântica com o lema “America First”; e,
quanto à hierarquia das potências, que afeta o também pressuposto da ONU que é
o do “mundo único”, isto é, sem guerras, a questão do “Desafio dos Emergentes”.
Neste preocupante aspeto do mundo em que vivemos, é evidente a diferença de
conteúdo da palavra “soberania” que foi dominante no período do domínio
ocidental. Critério dominante na questão da sempre presente hierarquia das potências,
começou por ter como fator dominante de referência, a capacidade militar de
responder com êxito às tentativas exteriores contra o interesse dos Estados, ou
apoio vitorioso da expansão do mesmo Estado. A evolução levou a que, sem perda,
como veremos, da capacidade militar, fatores como a ciência, a técnica, a
cultura, implicassem com o conteúdo diferenciado da tal soberania, e portanto com
a alteração da hierarquia das potências. Deste modo, ao contrário do imaginado
a Norte por homens como Churchill, (que l’Europe se léve), os chefes dos
governos antes adversários, guiados pelo saber de Jean Monnet, e no antigo
Terceiro Mundo, por idealistas ativos como Gandhi e Mandela, verdadeiramente
tocados de santidade, o mundo de 2017 é um “Mundo de Ruturas”, e, ao contrário
de “mundo único”, isto é sem guerras, é um mundo de incertezas, em que se destacaram,
para além de uma espécie de “outono ocidental”, com os EUA a perderem o fulgor
de “Casa no alto da Coluna”, o projeto francês da Euráfrica anulado por um
Mediterrânio transformado num cemitério, a guerra do Cabo ao Cairo envolvendo
umas trezentas ou quatrocentas mil crianças, com o Sudão a servir de
referência, e a crise Europeia e Ocidental, com todas as facetas que já
indiquei, com o avanço da técnica e da ciência sem consciência, com presença
terrível na rutura da paz, desafiando quer a hierarquia das potências, esta com
a evolução que mencionei, mas a provocar as “guerras em toda a parte”,
expressão usada por analistas da estratégia militar. Com um primeiro lugar para
a evolução do “terrorismo”, que antes da guerra de 1914-1918, tinha em vistas as
lideranças políticas para desafiar os regimes detestados, e, depois da guerra
de 1939-1945, se transformaram num “terrorismo” que ataca a sociedade civil,
sobretudo invocando valores religiosos maometanos, para destruir a vida habitual, e a confiança na
estrutura do Estado, conseguindo a “vitória do fraco contra o forte” como o
primeiro exemplo aterrador no ataque às torres de Nova York. Confere-se isto
com a série de atentados que antecederam ou acompanharam o ambiente da Guerra
de 1914-1918.
O Conselho de Segurança foi, na estrutura acordada para a
ONU, o organismo consagrador da desigualdade dos Estados, pela criação do
direito de veto, numa data em que o poder militar era o critério da hierarquia.
Não faltaram motivos para a intervenção do Conselho, até, como aconteceu com a
tentativa vetada de dois membros desse Conselho, com tal privilegiado direito,
a França e a Inglaterra, impedirem a nacionalização do Suez pelo jovem Nasser,
dirigente do Egito. Mas nesta data em que, em ritmo crescente, as iniciativas
do governo de Pyongyang, que teve a última exibição com o lançamento do míssil
que atingiu a zona económica exclusiva do Japão, não parece inquietar o
Conselho de Segurança, que parece ter esquecido o comentário de Bismark,
demonstradamente validado por duas guerras mundiais, de que “qualquer coisa
insensata leva a uma guerra devastadora da Europa”, com a diferença de que
agora trata-se da devastação do mundo. Que o Ocidente, a viver uma época de
outono, seja considerado pelo antigo “terceiro mundo” como o maior agressor dos
tempos modernos, tem outras advertências, como a agressividade com que o
Presidente Macron foi recebido em Burkina Faso, quando parecia dar passos para
ressuscitar a ideia francesa do século passado, que pareceu esperançosa para os
interesses da Europa, e para apaziguar a memória do colonialismo, quando
recebeu o nome de Euráfrica. Neste caso não chegou a humildade das palavras de
Macron afirmando, na sua “prova oral africana” como a imprensa a assinalou, que
“os crimes da colonização europeia são incontáveis”, salvaguardando embora que
“também se fizeram grandes coisas e houve histórias felizes”, para amenizar a
hostilidade. Mas este facto não é apenas sintoma de que ainda há muito trabalho
a desenvolver para que a confiança reciproca apoie uma nova época de cooperação
amiga, com esquecimento possível dos agravos: também acentua que a
agressividade orientadora do governo da Coreia do Norte tem pelo menos salpicos
de eventual apoio no antigo “terceiro Mundo”. E tais ensaios não podem ser bem
contestados, e sobretudo contidos, pelos modelos de resposta do atual
Presidente dos EUA. A consistência dos repetidos ensaios da Coreia do Norte,
reveladores de que está suficientemente habilitada no sentido de conduzir à
catástrofe mundial, não dispensam que a leviandade verbal das respostas, mal
dirigidas a uma suposta recetividade e pacificação mal prevista do adversário
inquietante, seja substituída pela meditação séria, concertada, e autêntica,
que é dever do Conselho de Segurança, quando não são ocasionais interesses de
cada membro que estão em causa, é até mais do que a ordem jurídica mundial: é
sim a eventual suficiência de “qualquer coisa insensata” para desencadear um
conflito de dimensões que nenhuma experiência histórica permite avaliar. No fim
da segunda guerra mundial, bastou uma intervenção de Churchill – “que a Europa
se levante” – para desencadear o movimento que, chamado pelos resultados
“guerra fria”, evitou o pior. Mas a ausência de resposta do Conselho de
Segurança, talvez atingido pela diminuição da capacidade da ONU para ser
escutada, e seguramente porque a desorganização da governança do globalismo
dificulta a conjugação de esforços para uma resposta de pacificação ou defesa
mundial, aponta para facilitar o desastre sem precedente. Mas seguramente com
destruições que ameaçam serem irreparáveis. Perante estes riscos, não pode,
qualquer que seja a orientação do governo, haver governo atento e responsável
ao qual passe despercebido que as palavras, mesmo cuidadas, são alternadamente
perigosas ou animadoras de esperança. A primeira via é a que aparece mais
evidente neste diálogo de irreconciliáveis, situação de incidentes crescentes,
com uma passividade excessivamente abrangente de vozes que deviam ser ouvidas,
tendo por exemplo a autenticidade e clareza da intervenção de Spaak, no
plenário da ONU, quando o ambiente já exigia o que depois, com limitação da
liberdade da organização, teria o nome de guerra fria durante meio século.
Nesta data, o pessimismo, com fundamento, parece presidir a uma guerra surda,
que ameaça justificar a mudança semântica que se verificou quando se passou a
servir por números, e não por nomes, as duas guerras mundiais do século
passado, como se estivesse anunciada uma série a definir-se com improbabilidade
de precisão. Porque as palavras também podem ser poderosas no sentido de servir
os valores do humanismo, que inspirou os princípios das Declarações de
Direitos, seria tempo de finalmente por em vigor a Declaração Universal de
Deveres Humanos, proposta do Inter-Action Council, em 1 de Setembro de 1997, e
que continua por aprovar, animando o Conselho de Segurança a intervir com
solidariedade geral, porque é o futuro de todos que está ameaçado, não são os
interesses de poderes isolados no entendimento do que é a essência do poder de
governar em globalismo.
O mais inquietante é o avanço, tão celebrado em Lisboa
neste ano de 2017, do progresso e do enunciado papel da inteligência
artificial. Trata-se do avanço de uma atitude que talvez possa ter o seu ponto
de primeira afirmação na descoberta da utilização militar da energia atómica.
Lembre-se que o grupo científico encarregado pelo governo dos EUA de estudar a
questão, logo depois do primeiro ensaio com êxito na Califórnia, avisou o
governo de que tal poder não poderia ser usado por qualquer Estado. Indiferente
ao aviso, os EUA foram o primeiro, e até agora único, Estado a ter experiência
de que a posse da Bomba apaga a relutância de a usar: o Japão ficará para
sempre com o símbolo do desastre que hoje enfrenta a humanidade: a dispersão da
posse desse poder, hoje sempre em evidência pelo comportamento reciproco dos
EUA e da Coreia do Norte, isto é, do Ocidente a entrar no seu Outono, e o
antigo Terceiro Mundo a ameaçar a Ordem definida pelos ocidentais que fundaram
a ONU, mostra que pela primeira vez na História da Humanidade, dois homens
afetados de “moral insenity”, podem destruir o pequeno planeta em que nos
aconteceu viver. Um facto que torna uma evidência sem reserva, que se agrava,
com o entusiasmo pela inteligência artificial, o domínio da ciência sem consciência. Por isso,
escritores como Yuval Noah Harari, no seu Homo Deus (História Breve do Amanha –
2015) sugerem que caminhamos para uma “Religião dos Dados”, escrevendo: “o
Dataismo afirma que o Universo consiste em fluxos de dados e que o valor de
qualquer fenómeno ou entidade é determinado pela sua contribuição para o
processamento de dados. Esta poderá parecer-lhes uma noção excêntrica e
marginal, mas a verdade é que já conquistou uma grande parte do sistema
científico. “Desta forma, o Dataismo derruba as barreiras entre animais e
máquinas e espera que os algoritmos eletrónicos acabem por decifrar e obter um
desempenho superior ao dos algoritmos bioquímicos”. O que significa o
desaparecimento da relação da ciência com a consciência, que presidiu ao
desenvolvimento do que chamamos a nossa cultura, a uma defesa da dignidade do
homem, a “terra casa comum dos homens”, o “mundo único”. Saber que esta é a
circunstância de risco em que nos encontramos neste ano de 2017, talvez tenha
sido aprendido pela própria ONU, que por cinco vezes chamou o Bispo de Roma,
Papa da Igreja Católica, a falar à Assembleia Geral. Primeiro Paulo VI, que ali
pregou que o desenvolvimento sustentado é o novo nome da paz, depois por duas
vezes o Santo João Paulo II o pregador contra o sovietismo, depois o Papa
Emérito que ali pediu o regresso à autenticidade dos princípios, e finalmente
Francisco, o Bispo de Roma que foram procurar no fim do mundo. Este disse, em 1
de Janeiro de 2017, na Mensagem para o 50.º Dia Mundial da Paz: “A violência
não é o remédio para o nosso mundo dilacerado. Responder à violência com a
violência leva, na melhor das hipóteses, a migrações forçadas e atrozes
sofrimentos, porque grandes quantidades de recursos são destinados a fins
militares e subtraídos às exigências do dia a dia dos jovens, das famílias em
dificuldade, dos idosos, dos doentes, da grande maioria dos habitantes da
terra. No fim dos casos, pode levar à morte física e espiritual de muitos, se
não mesmo de todos”. Vejo por isso o mundo numa circunstância de exigência de mobilização
para repor a via de uma ciência com consciência, para que as humanidades, tão
enfraquecidas de apoio nas próprias Universidades e Academias, mantenham a
dignidade igual dos homens e mulheres como o eixo da roda que nos conduz, ainda
na incerteza da origem e da duração da vida “na terra casa comum dos homens”.
ADRIANO MOREIRA
Presidente do Instituto de Altos Estudos
da Academia das Ciências de Lisboa
Professor Emérito
da Universidade Técnica de Lisboa
Universidade de Coimbra
06/12/2017
1 comentário:
Senhor Professor Adriano Moreira, não lhe parece que o Kim consegui livrar-se duma espécie de "civilizados" que o Ocidente imperialista lhe queria impor. Á semelhança daqueles "civilizados" que cuidaram do Kaddafi. Sabe certamente qual foi o fim do Kaddafi, o mesmo que queriam para o Assad, mas aí Rússia não deixou, fizeram mal as contas!!. O Kim consegui á sua maneira salvar-se, e consegui-o, onde é que está o mal nisso, não devia proteger-se, não era isso que uma pessoa inteligente tentaria fazer. Quanto à Europa parece que esta agora está irremediavelmente com vergonha de quem lhe tem segurado na trela, e a tem arrastado para onde quer e lhe apetece.
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