"É incisivo o texto do Manifesto em Defesa do Multiculturalismo Científico, promovido por professores universitários do Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Espanha e Portugal (aqui dinamizado por José d’Encarnação).
Sintetizo os principais argumentos: não pode confundir-se uma língua franca de vocabulário escasso, para uso coloquial e serviços, que é hoje o inglês, com a língua da Ciência. Dentro desta, não é equiparável a mestria linguística necessária às Ciências Naturais e Técnicas com a que é indispensável às Humanidades e Ciências Sociais, nas quais “os matizes do pensamento apenas podem evidenciar-se mediante um amplo conhecimento das palavras e dos seus sinónimos” e de “toda a estrutura gramatical e conceptual”. “O empenho dos administradores da ciência europeia em reduzirem toda a comunicação científica a uma só língua está, pois, a provocar uma rápida deterioração das Ciências Sociais e Humanas”. E há também consequências nefastas no que respeita à credibilidade dos investigadores porque “no nosso mundo, associa-se, automaticamente, a qualidade de expressão à capacidade de pensamento”. Por fim, chamam a atenção para a crescente qualidade das traduções automáticas, o que torna “menos necessário obrigar alguém a exprimir-se numa língua diferente da sua”.
Conto um episódio pessoal para infletir a argumentação. Tendo assistido à minha prova de doutoramento, disse-me alguém da área das Engenharias: “Agora percebi a importância do que fazem nas Letras! Se não forem vocês, mais ninguém o faz. Na minha área, é indiferente que a investigação se faça aqui ou noutro qualquer país. A vossa é que devia ser prioritária nos apoios”.
Pois é. Mas mandam-nos escrever em inglês. Para quem trabalhamos, afinal? É assim que cumprimos a nossa missão de serviço à comunidade, a tão exigida (e bem) “transferência de conhecimentos”? É assim que fornecemos os instrumentos de autocompreensão, as ferramentas que permitem intervir para melhorar, exercer a cidadania? A quem forma e interessa prioritariamente a História de Portugal, a sua Literatura, a sua Geografia, as suas Artes e Cultura, a compreensão da sua vida social? Aos portugueses, como é óbvio, e aos leitores dos países lusófonos que connosco partilham parte das suas raízes. E como pode pedir-se a um filósofo que pense e escreva num idioma que não é o seu?
É escandaloso valorizar mais uma investigação pelo simples facto de estar publicada em inglês.
Desgosta-me que portugueses se menorizem de tal forma que aceitem publicar em inglês, no seu próprio país, investigações sobre realidades portuguesas.
O que é diferente de proferir uma conferência ou publicar noutra língua em países estrangeiros (já o fiz em inglês, castelhano, francês e italiano). Só que esse tipo de trabalhos é em geral distinto, como direi. Nós exprimimo-nos numa língua neolatina, riquíssima (para quem a sabe usar), que é o terceiro idioma ocidental mais falado no mundo, ocupando a mesma posição entre as línguas de pesquisa na Internet. Apesar disso, subvaloriza-se o português face ao francês ou ao alemão. O que se faz, precisamente, porque, embora mais falado, se menospreza enquanto língua de Ciência.
Ser internacionalizado – ou melhor, ser cosmopolita, como diríamos se o nosso léxico não andasse desvirtuado por tecnocratas – é estar aberto às culturas e ciências que se praticam noutros países e dialogar com elas. Não é, por contrassenso nos seus próprios termos, ser monolingue.
O monolinguismo revela e acentua o provincianismo, a tacanhez de perspetivas – o que se aplica a todos, incluindo os nativos de língua inglesa. Porque é na língua-mãe que conseguimos exprimir melhor assuntos complexos e subtilezas de pensamento, os académicos ocidentais da área das Humanidades e Ciências Sociais dignos desse nome têm de ser capazes de ler os colegas que escrevem em línguas românicas.
Contudo, são hoje vulgares as obras inglesas e americanas sobre diferentes aspetos da história da Europa cujos autores só leram o que está produzido em inglês. O que de melhor e mais profundo se escreveu no continente escapou-lhes completamente. Um historiador dos impérios ibéricos incapaz de ler português e castelhano é uma fraude. Não aprendeu nem dialogou com os textos dos investigadores desses países e não leu os documentos da época, bastando isto para que a sua obra não possa ser classificada como historiográfica. Os estrangeiros incapazes de ler português não são especialistas da nossa cultura e o que lhes interessa é aceder a boas sínteses de investigação séria e cuidadosamente contextualizada. Para esses, sim, o inglês é o veículo.
Mas esse tipo de obra não é nem pode ser o nosso trabalho central. Apresentar em inglês, logo de raiz, investigação de ponta em Humanidades é inútil e, sobretudo, devastador para a Ciência e para a nossa identidade."
Maria Antónia Lopes
Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
1 comentário:
Li, creio que com muita atenção, o texto da Senhora Prof. Maria Antónia Lopes. As opiniões sobre este assunto dividem-se. Conto rapidamente uma 'história' que se passou com a minha pessoa: uma senhora brasileira estava comigo em Frankfurt am Main há uns 30 anos: como Odontóloga desejava ler alguma coisa sobre "mordida aberta" (termo técnico). Na altura, levei-a à Faculdade e lá ela dispôs de computadores e de bibliotecas especializadas. Na net encontrou cinco mil e tal artigos sobre 'mordida aberta' em inglês. Logo verificámos que os autores dos artigos, pelos nomes, tanto podiam ser alemães, como anglo-saxónicos ou franceses, japoneses, etc., mas todos davam a conhecer os resultados da sua pesquisa em Inglês. Havia em seguida 800 e tal artigos em alemão, mais de duzentos em francês, 80 e tal em espanhol e 18, se a memória não me falha,em português. Desde aí habituei-me a pensar que, de facto, as bibliografias em inglês sobre qualquer assunto ocupam sempre ou quase sempre uma posição hegemónica. O Inglês, como se sabe, não é uma língua,o inglês são duas línguas: o anglo-saxão (um dialecto alemão no fundamental: Mutter= mother; Vater= father, Brot= bread, etc., etc) entrosado com o francês normando (nation= nation, só mudando a pronúncia, e milhentos lexemas mais, além de especializações funcionais...); essa 'língua franca' dos tempos modernos, tal como o latim o foi em séculos transactos, pelo menos, entre os sábios, dispõe hoje da 'multimedia' para uma expansão permanente e galáctica. Ignoro como se pode resistir a tal força. Para lá de ser uma língua falada em países onde a investigação de ponta nas mais variadas disciplinas se realiza (EUA, GB, Canadá, etc), é falada por falantes de língua materna na ordem das centenas de milhão e, em seguida, falada pelo resto do mundo, mais ou menos bem. Creio que o mundo inteiro já está a interagir em "bad English". Em grego moderno (demótico) há uma interessante designação para um estrangeirismo, considerado empréstimo. Seja o caso da palavra telefone, composta por dois elementos gregos (que significam falar e a distância). Ora o instrumento surgiu nos EUA e foi lá que os americanos, socorrendo-se de elementos gregos, formaram a palavra após terem inventado o instrumento de comunicação. Os gregos receberam dos americanos o telefone e a sua designação com elementos da sua língua. Consideram então a palavra (tiléphono) como um anti-empréstimo. E assim ficou até hoje. Embora eu considere que todas as línguas são de cultura, há as ditas línguas de cultura (italiano, francês, inglês alemão, russo, espanhol, português...) que têm uma característica em comum: entraram em contacto com muitas outras línguas em vários continentes e foram incorporando elementos novos no seu léxico e a outros níveis. Enriqueceram-se e foram em muitos casos glotocidas. O Marquês de Pombal até legislou para o Brasil, a fim de assegurar a predominância, a hegemonia do Português e o definhamento das línguas da terra. As colonizações continuam de muitas maneiras e as identidades sofrem. Muitos jovens portugueses cantam em inglês em vez de, aos olhos de muita gente, deverem cantar na sua língua. Que fazer? Acho que a discussão só acaba de começar...
Luciano Caetano da Rosa, Lic. em Fil. Germ./Lisboa; Lic. ès Lettres/Neuchâtel; Doutor em Fil. Românica/Frankfurt a.M.
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