Vivemos tempos conturbados. Se por um lado
vivemos numa época onde a informação e educação são cada vez mais acessíveis,
por outro vivemos num tempo onde podemos escolher confirmar as nossas ideias do
mundo, fechando-nos sobre as nossas ideologias e preconceitos. O grande
problema dos preconceitos é que tendem a focar-se em minorias, geralmente
ostracizando-as e retirando-lhes direitos. Nestas semanas assistimos às
declarações de António Gentil Martins acerca da “anomalia” da homossexualidade.
De uma fonte de preconceito semelhante, chegam-nos as notícias dos EUA – o
afastamento dos transsexuais das operações militares estadunidenses.
Parte das discussões envolvem argumentos
biológicos. Em algumas discussões, transsexualidade, homossexualidade são
consideradas desvios da norma, doenças, anomalias, abominações. Mas o que
sabemos da biologia da identidade de género e das preferências sexuais?
Identidade de género: Género biológico? Género
cultural?
Em Janeiro de 2017 a National Geographic dedicou
a edição mensal da revista à “revolução do género” – Gender Revolution. Na capa
surge o caso de Avery, uma menor transsexual. Com base em evidências
científicas, o editorial lança a declaração de guerra à imposição de género à
nascença:
“The most enduring label, and arguably the most influential, is the first one most of us got: “It’s a boy!” or “It’s a girl!” [O mais definitivo rótulo, e talvez o mais influencial, é o primeiro que é dado à maioria de nós: “É um rapaz!”, “É uma rapariga”.]
Na revista discutem-se as bases culturais e
biológicas atrás da noção actual de género. As bases científicas sugerem que
devemos continuar a desenvolver o conceito de género além da dualidade
Masculino/Feminino. Os géneros, sendo melhor retratados como um contínuo, devem
incluir minorias transexuais, cissexuais, não conformistas, não-binários, sem
género. Ressalvo os principais pontos retirados deste artigo, mas com o devido aviso - é de elevada relevância ler
completo.
O “género”, como o pensamos, é uma amalga
de conceitos biológicos que incluem a anatomia interna e externa, hormonas e
cromossomas sexuais, alicerçados a conceitos culturais. Focando-nos na
biologia, é natural que indivíduos que sejam diagnosticados com base apenas nos
órgãos sexuais à nascença possam não se sentir confortáveis, com o passar dos
anos, com a construção e expectativas sociais associada ao seu género. A
determinação “XX” / “XY” não é perfeita e a dualidade Masculino/Feminino é
insuficiente em certas situações. A título de exemplo, existem casos onde o
gene SRY - normalmente presente no cromossoma Y e responsável pela
diferenciação sexual masculina - se torna disfuncional através de uma mutação,
resultando com que uma pessoa “XY” seja diagnosticada como rapariga à nascença.
Noutros casos, o gene aparece num cromossoma X e surge um rapaz com os
cromossomas “XX”. Outras alterações incluem os Síndromes de Insensibilidade a
andrógenos e o Síndrome de insensibilidade completa a andrógenos onde a
resposta a sinais hormonais é insuficiente e surge uma rapariga “XY”. Neste
sentido, a determinação biológica do sexo é complexa e não deve ser submetida a
expectativas ou preconceitos de funcionamento pseudobiológico.
Identidade e preferência sexual:
Homossexualidade, terceiro género – um paradoxo evolutivo?
Existem diversas comunidades espalhadas pelo
mundo onde a existência do terceiro sexo é considerado um evento normal. No Sul
da Ásia existem os <hijra>, na Nigéria os <yan daudu>, no México os
<muxe>, em Samoa os <fa‘afafine>, na Tailândia os <kathoey>,
em Tonga os <fakaleiti>, no Hawai os <mahu> e na República
Dominicana existem os <guevedoce>.
Em relação à dimensão científica, ocorre a
discussão do “paradoxo evolutivo” do terceiro sexo e da homossexualidade. Este
paradoxo baseia-se no seguinte raciocínio: se o objectivo biológico de uma
espécie é reproduzir-se, os genes associados ao terceiro sexo [geralmente infértil]
e à homossexualidade, não teriam sido purgados através da selecção natural?
Existem algumas hipóteses que exploram esta questão:
1. A
hipótese do gene de antagonismo sexual (sexually antagonistic gene hypothesis)
postula que certos genes podem ter efeitos negativos quando presentes num sexo,
porém esse efeito negativo é contrabalançado por benesses consideráveis no sexo
oposto. Por exemplo um gene que “impeça” a reprodução de um homem mas que
aumente a fertilidade quando expresso nas suas irmãs manter-se-à no fundo
genético (gene pool) da espécie.
2. A
segunda hipótese é a hipótese da selecção dos parentes (kin selection
hypothesis) que postula que o investimento em termos de tempo, dinheiro e
protecção dos indivíduos que não se reproduzem é investido nos sobrinhos e
sobrinhas, aumentando assim as chances de sobrevivência e reprodução destes.
3. Uma
terceira hipótese discutida é a da “sobre dominância” (overdominance
hypothesis) onde os heterozigóticos terão vantagens sobre homozigóticos,
perpectuando a existência de um gene no fundo genético de uma espécie.
Preconceito e sociedade
Da próxima vez que discutir este tema e ouça as
palavras “aberrações” ou anomalias” biológicas, não se conforme com a pretensão
de facto científico alternativo. Existe um contínuo sexual de género e
fenómenos como a homossexualidade ou o terceiro sexo foram descritos em muitas espécies que não a
nossa. Se há algo que se evade da lógica do natural é a construção social feita
pelo ser humano. Rotular alguém de anormal nunca auxiliou ninguém. Pelo
contrário, apenas se geram injustiças, violências pessoais e estruturais e se
bloqueia o funcionamento saudável da sociedade. Anormal é escolher ser-se
intolerante na era da informação.
José Cerca de Oliveira -
Doutorando em Genómica Evolutiva e Zoologia
Paulo Nogueira Ramos -
Licenciado em Relações Internacionais, estudante de Psicologia