"A ideia de adaptar a Odisseia de Homero para Leitores jovens partiu de
uma situação muito concreta: o convite que me foi endereçado por
duas escolas secundárias (...) para falar aos alunos de Homero e da Guerra de Tróia.
Percebi (...) que a minha tradução integral dos poemas homéricos não era
apropriada para um público constituído por jovens. Era necessário adaptar o texto
para que ele surgisse aos seus ouvidos com mais vida, menos redundâncias
e menos contradições internas (...). No português utilizado, procurei a simplicidade,
mas achei anti-pedagógico infantilizar o vocabulário e as estruturas frásicas.
Penso que é um dever de todos nós estimular nos mais jovens o gosto e a competências
linguística na língua portuguesa. Se, ao mesmo tempo, esta leitura fizer nascer a
curiosidade pela Antiguidade Clássica, dar-me-ei por plenamente realizado e satisfeito."
Frederico Lourenço, 2005, 327-328.
A primeira tradução que li de Frederico Lourenço foi A Odisseia de Homero adaptada para jovens, quando ela saiu.
Os olhos correm velozmente pelo texto como se alguém o dissesse de viva voz. As personagens ganham vida e movimentam-se em volta.
Não, não é apenas uma adaptação para jovens; é para todas as idades. É uma adaptação que leva pela mão, pelo menos a mim levou-me, à tradução integral.
Por isso, não fiquei nada admirada quando Frederico Lourenço ganhou, agora, mais um prémio - o prémio Pessoa.
Que este prémio tenha, entre outros méritos, o de chamar a atenção para a importância da cultura clássica na formação das pessoas que os jovens são. Cultura que tem de ser inequivocamente integrada no currículo académico e ser assumida pela escola pois é lá que está, ou deve estar, quem a conhece e a sabe dar a conhecer.
O livro começa assim:
Uma visita inesperada (do Livro I - Telémaco no rasto do pai).
"Mil e duzentos anos antes do nascimento de Jesus Cristo, vivia na ilha grega de Ítaca um jovem príncipe chamado Telémaco. Seu pai tinha partido para a guerra quando ele ainda era bebé. Agora Telémaco era crescido, quase adulto - mas o pai ainda não tinha voltado. Já se sabia, em Ítaca, que a guerra acabara; todos sabiam que Tróia, a cidade inimiga, havia sido conquistada e destruída. Dando embora o desconto para as dificuldades de navegação e os perigos do mar, parecia estranho para os habitantes da ilha que Ulisses, o pai de Telémaco, não tivesse voltado para casa.
Tão estranho que se espalhou o boato de que Ulisses tinha morrido. Em Ítaca, toda a população passou gradualmente a aceitar essa realidade. O palácio onde Telémaco vivia com Penélope, sua mãe, encheu-se de pretendentes, que queriam à força que a rainha Penélope voltasse a casar. Mas ela resistiu sempre, embora sem a certeza de que Ulisses estivesse vivo. Só havia uma pessoa em Ítaca que acreditava, no seu íntimo, que Ulisses haveria ainda de voltar. Era Telémaco, seu filho, que sonhava dia e noite com o pai.
Na verdade, Ulisses não tinha morrido. Muitas tinham sido as aventuras e peripécias que tivera de enfrentar após a partida de Tróia. Mas, graças à sua extraordinária inteligência, conseguiu sempre sobreviver. O que a mulher e o filho não sabiam era que ele perdera a nau e todos os companheiros num naufrágio. Salvara-se a nado, sozinho, conseguindo chegar a uma ilha onde vivia uma deusa solitária, Calipso. Essa deusa afeiçoou-se de tal forma a Ulisses que não o deixou partir: queria que ele casasse com ela. Queria fazer dele um deus. Mas Ulisses, sempre pensando na mulher e no filho, nunca aceitou.
Ora houve um dia em que os deuses, reunidos em concílio no Olimpo, a mais alta montanha da Grécia, decidiram resolver esse impasse. Atena, a deusa da sabedoria, protectora de Ulisses, convenceu Zeus, o pai dos deuses. Este decidiu mandar o deus Hermes, seu mensageiro, à ilha onde Ulisses estava retido, para que ele comunicasse a Calipso que chegara a hora de deixar partir Ulisses.
Mas Atena lembrou-se ainda de outro mortal que lhe causava pena: o jovem Telémaco. E calçou nos pés as belas sandálias, sandálias mágicas, douradas e imortais, que com as rajadas do vento a levavam sobre o mar e sobre a vastidão da terra. Pegou numa forte lança de bronze, pesada, imponente, enorme: era a lança com que Atena vencia fileiras inteiras de heróis na guerra. Pois, além de deusa da sabedoria, era também uma deusa guerreira.
Lançou-se veloz dos píncaros do Olimpo e logo chegou a Ítaca, à porta do palácio de Ulisses, à entrada do pátio. Segurando na mão a lança de bronze, a deusa alterara a sua aparência, para que ninguém a conhecesse. Transformou-se num homem de meia-idade, com aspecto nobre e tranquilo.
Encontrou de imediato os pretendentes, que nesse momento se divertiam a jogar aos dados, sentados em peles de bois que, em sua arrogância, eles mesmos haviam morto. Escudeiros e criados misturavam em grandes taças água com vinho (pois os gregos não bebiam o vinho puro). Outros criados lavavam as mesas com esponjas porosas; e outros ainda serviam carnes em grande abundância.
O primeiro que avistou o homem estranho (na verdade a deusa disfarçada) foi Telémaco, que estava sentado no meio dos pretendentes com tristeza no coração, imaginando no seu espírito o pai achegar ali naquele momento para expulsar aqueles homens arrogantes. Se isso acontecesse (imaginava Telémaco), teria finalmente em seu próprio palácio a honra que lhe era devida. É que os pretendentes faziam troça dele e tratavam-no como criança.
Estava então Telémaco sentado no meio dos pretendentes a pensar estas coisas, quando avistou o homem desconhecido. Levantou-se logo e dirigiu-se a ele, pois achava vergonhoso que um hóspede ficasse parado à entrada sem ninguém lhe dar as boas-vindas. Aproximou-se do estranho e deu-lhe a mão, recebendo dele a lança de bronze. E foi com estas palavras, que faziam parte da tradicional boa educação na Grécia, que Telémaco o cumprimentou:
- Sê bem-vindo, ó estrangeiro! Será estimado em nossa casa! E, depois de ter comido, dir-me-ás no que poderei ajudar-te.
Falando assim, indicou o caminho; e a deusa disfarçada seguiu-o. Quando já se encontravam dentro da alta casa, Telémaco encostou contra uma coluna a lança do hóspede, colocando-a no bem polido guarda-lanças, aí onde estavam muitas outras lanças, até algumas que tinham pertencido a Ulisses. Levando o hóspede pela mão, Telémaco sentou-o num belo trono trabalhado e estendeu uma toalha de linho; sob os pés, pôs um pequeno banco. Para si próprio, colocou ali perto outro assento, longe dos pretendentes, não fosse o estrangeiro levado a recusar a refeição por causa do barulho..."
Edição consultada: Cotovia, 2005, pp. 13-16.
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