domingo, 13 de março de 2016

O modelo do «capital humano»

Não vi a cerimónia de entrega dos "óscares" deste ano. Apesar do meu gosto pelo cinema, o acontecimento não me interessou nada, nem sequer a polémica, real ou construída, sobre discriminação racista dos artistas, de que ouvi vagamente falar. Há muito que deixei de dar atenção à atribuição de prémios seja em que instância for.

No entanto, ontem ou anteontem parei para ouvir na rádio alguém (não consigo identificar quem) que dizia o seguinte: um responsável máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (não fixei o nome) no discurso que fez (e que chegou ao mundo inteiro) nunca pronunciou a palavra "arte" para se referir à "sétima arte" nem palavras a ela ligadas; a palavra que mais pronunciou foi "indústria" e palavras a ela ligadas.

A afirmação era baseada numa "análise de conteúdo" que me pareceu exemplarmente realizada e cuja conclusão deveria inquietar tanto como a polémica que marcou a "narrativa" da dita cerimónia, porém pouca gente a terá notado. Eu não a teria notado se não tivesse ligado o rádio naquele momento.

Isto significa pelo menos duas coisas.

Uma é que o jornalismo, cuja função é informar, deve ser o que ouvi: facultar análises profundas dos acontecimentos, questões ou temas de modo que as pessoas comuns possam fazer juízos objectivos e diversos dos que lhe são impostos.

Outra coisa é que os juízos que nos são impostos nada têm de inocente: neste como noutros casos são propositadamente concebidos para, por exemplo, manter e ampliar o modelo do «capital humano». Caso não tenhamos alternativas de pensamento é nele que nos situaremos até para nos definirmos como pessoas.

Transcrevo uma excelente apresentação desse modelo, feita por José Morais no livro Alfabetizar em democracia.
“O modelo do «capital humano» refere-se ao conjunto de habilidades, qualificações e experiências que influenciam a produtividade e o rendimento do indivíduo na economia capitalista. Walsh (1935) formulou-o como um «investimento realizado nas capacidades profissionais» (isto é, na educação) e comparou-o ao investimento no «capital material» (…).
O saber e a habilidade contribuem, sem dúvida, para aumentar o valor de uso dos bens e a qualidade dos serviços em que intervêm. Já a sua repercussão na retribuição da força de trabalho é muito limitada (…)
Quais são as consequências da aceitação do modelo do capital humano e do domínio que ele exerce actualmente sobre a educação? Primeiro a imagem que dá dos seres humanos é a de produtores económicos e de cidadãos consumidores, movido pelo seu autointeresse, racionais, calculadores do melhor ratio benefício/custo, com padrões de preferências relativamente homogéneos e comportamentos previsíveis (Walker, 2012). O indivíduo assume-se como um valor económico e procura optimizá-lo (…)
Recetáculo do capital humano, o indivíduo torna-se mercadoria, objecto de transacção. Julga-se ator num mercado (o de trabalho), investidor dele mesmo, possuidor de valor e de meios para se afirmar (…)
A educação deixa de ser orientada para a formação de indivíduos livres, sujeitos e criadores de conhecimento, com valores éticos e capacidade crítica, para se tornar «investimentos no capital humano».
Na perspectiva do capital humano, os objectivos da educação das crianças e dos adolescentes são o crescimento económico, a competitividade, o rendimento e a empregabilidade, isto é, os valores instrumentais do trabalho.
A educação para a empregabilidade, única via para se alcançar uma vida boa, cria indivíduos sem outra dimensão, à parte o refúgio em consumos de luxo ou lazer.
Os jovens das classes baixas são educados para a aceitação das normas sociais e a adaptação ao mercado, e os das elites para serem «indomáveis lobos solitários sem necessidade de mais ninguém do que deles mesmos» (Baptiste, 2001), ativos, empregadores e flexíveis. Estes podem escolher os melhores empregos da sociedade internacional global, orgulhosos de serem presas na caça realizada pela nova meritocracia aos cérebros e aos talentos (Brown e Tannock, 2009).
A linguagem da produtividade, da competitividade, dos ganhos de eficiência, da criação de mais-valia, das metas, dos indicadores de desempenho, das auditorias, da inovação, da tomada de riscos, que se infiltra em todos os sectores, incluindo o da educação (…) passou a ser aceite como este modelo fosse o único possível.
Ouvida constantemente afeta a maneira como pesamos e conduzimos as nossas vidas (Rose, 2009).”
José Morais, 2013, 21-24

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