domingo, 27 de março de 2016

TEMPOS DE LASER


Minha crónica no "Artes entre as Letras" que está prestes a sair:

A ideia de laser é uma das muitas ideias fecundas que Albert Einstein nos legou. Vai fazer cem anos em 2017 e é simples de descrever: podendo um átomo existir em vários níveis de energia, o físico suíço nascido na Alemanha pensou em promover por meio de luz um conjunto de átomos  para um estado excitado, que depois decairia para em estado de energia mais baixo, emitindo luz. A vantagem do processo consiste na emissão sincronizada por cada átomo de luz de um só comprimento de onda (no caso de luz visível de uma só cor), provocando um feixe que era coerente, no sentido em que a luz de cada átomo se associava para dar uma luz bastante forte e perfeitamente alinhada.

A concretização na prática do processo teórico demorou. Só em 1954, após a Segunda Guerra Mundial, com o grande desenvolvimento da radiação de microondas (que teve bastante a ver com a invenção do radar durante o conflito) foi possível construir o primeiro laser de microondas, chamado maser, e só em 1960 foi possível construir o primeiro laser de luz visível, que na altura se chamou maser óptico.  A diferença entre as microondas, que usamos hoje nos fornos de cozinha e nos telemóveis, e a luz visível, que é recolhida pelos nossos olhos, reside apenas nos comprimentos de onda, que são maiores para as microondas. Foi a 16 de Maio de 1960 que o físico norte-americano Theodore Maiman pôs a funcionar, no Hughes Research Laboratory, na Califónia, o primeiro laser, feito de rubi, activado por uma lâmpada de flash. A palavra laser, que hoje se tornou comum, era muito nesse tempo, muito recente e, portanto, quase desconhecida. Laser é a abreviatura de Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation, amplificação de luz por emissão estimulada de radiação (maser é o acrónimo da mesma expressão, com light substituído por microwave). O termo tinha sido criado em 1957 por Gordon Gould, um estudante de doutoramento na Universidade de Columbia, Nova Iorque, que esboçou num bloco-notas não só o nome como algumas ideias base da nova tecnologia. Gould haveria mais tarde de conduzir, com sucesso, uma batalha jurídica de trinta anos para obter os direitos da patente do laser. Um das coisas que o ajudou nesse processo foi a autentificação que fez numa loja comercial com data e carimbo nas folhas do seu bloco. O investigador, que trabalhou numa empresa privada, haveria de ficar milionário ao ver finalmente os seus direitos reconhecidos, embora tenha tido de pagar a advogados uma boa parte daquilo que recebeu.

Ainda hoje permanece em disputa entre os historiadores de ciência a autoria do aparelho emissor de laser: devem ser creditados Maiman, Gould, ou ainda um professor de Gould na Universidade de Columbia, o também norte-americano Charles Townes, que tinha sido um dos criadores do maser (trabalhou para a Bell Laboratories durante a guerra nio desenvolvimento de sistemas de radares). Em 1958, Townes escreveu, juntamente com o seu cunhado Arthur Schachlow, um artigo expondo em pormenor as bases teóricas do laser, que como foi dito remontam a Einstein. Os dois receberam o Prémio Nobel, o primeiro em 1964 e o segundo em 1981. Townes dividiu o seu prémio, atribuído “pelo trabalho fundamental no campo da electrónica quântica, que levou à construção de osciladores e amplificadores baseados no princípio maser-laser”, com dois físicos russos Nicalay Basov e Aleksandr Prokhorov, que, nesses tempos de Guerra Fria, trabalharam no mesmo assunto do outro lado do muro de Berlim sem contacto com o Ocidente. Curiosamente,  nem Maiman nem Gould foram distinguidos pela Academia Sueca. Todos esses investigadores já faleceram. De todos eles, Townes foi o que viveu mais tempo: faleceu em 27 de Janeiro de 2015, quando ia em breve completar a bonita idade de cem anos. Ainda viveu a tempo de ver o começo das celebrações de 2015 -  Ano Internacional da Luz.

A ciência, como foi o caso da ciência de Einstein, fornece tecnologia. Mas a tecnologia também fornece ciência. Foram numerosos os prémios Nobel da Física atribuídos após os anos 60 do século passado por invenções e descobertas baseadas em luz laser: em 1971 o Nobel foi atribuído pela ideia da holografia, assente no laser. Em 1981 o prémio Nobel foi dado pelo desenvolvimento da espectroscopia laser.  Em 1997, foi concedido pelo arrefecimento e aprisionamento em átomos com luz laser  E, em 2000, distinguiu os construtores de lasers de semicondutores. Actualmente os lasers tornaram-se mesmo instrumentos banais em laboratórios de física, química e engenharia.

Hoje vivemos em tempo de laser. Eles estão por todo o lado. De facto, é  impossível imaginar a nossa vida sem impressoras laser, sem apontadores laser, sem os CD e DVD com músicas e filmes que têm leitura laser, sem a leitura óptica dos códigos de barras nos supermercados, sem a transmissão de informação via laser por fibra óptica, sem as várias formas de cirurgia laser, sem cortes industriais a laser, sem fisioterapia ou depilação a  laser, sem espectáculos de luz laser, etc. Townes, Schachlow, Basov e Prokhorov, quando conceberam os primeiros aparelhos de maser e  laser, Gould, quando escreveu o novo nome e propôs a nova técnica, e Maiman, quando viu pela primeira vez a luz laser irradiada pelo rubi, não podiam imaginar a enorme quantidade de aplicações que, décadas volvidas, o laser teria.

Quando Maiman viu a luz laser, dizia-se que se tratava de “uma solução à procura de um problema”. Não encontrou apenas um, mas sim muitos problemas, tendo-os resolvido a todos, com proveito geral. O laser tornou-se um exemplo clássico de como a investigação científica pode ser feita sem interesses comerciais imediatos para depois, quase como um bónus inesperado, aparecer todo um conjunto de aplicações que ganham um mercado retumbante. Este exemplo tem de ser repetido, para que os políticas percebam o valor da investigação fundamental, proporcionado os meios para que ela se desenvolva. O lucro é, em primeiro lugar, a compreensão. Depois, pode também ser económico. Mas por esta ordem.

Carlos Fiolhais*
Professor de Física da Universidade de Coimbra e coordenador de 2005 – Ano Interancional da Luz (tcarlos@uc.pt)

Sem comentários:

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...