domingo, 27 de dezembro de 2015

POSFÁCIO A “EPISÓDIOS DA VIDA DE UM PÓLIO”


Meu posfácio ao livro com o título acima da autoria de Ilídio Barbosa Pereira (edição de autor, com prefácio do médico José Apolónio), vítima de poliomelite (uma doença debelada por uma vacina que agora faz 50 anos em Portugal; na imagem vacina oral anti-polio).

Conheço o Ilídio há muitos anos, em primeiro lugar por o ter encontrado no campus universitário principal de Coimbra, não sei se ainda no Arquivo da Universidade, paredes meias com o Departamento de Física onde eu trabalho há décadas, ou já depois no Serviço de Publicações e Documentação da Universidade, onde ele entrou em 1992, e em segundo lugar, circunstância bem mais importante, por ter convivido com ele na Associação de Pais da Escola EB2/3 Dr.ª Maria Alice Gouveia em Coimbra, onde o meu filho frequentou o segundo e terceiro ciclos da escolaridade básica. Com efeito, o meu filho Luís, nascido em 1993, é da mesma idade de um dos filhos do Ilídio, o Duarte, e os dois não só foram colegas naquela escola como ficaram amigos. De facto, a relação é mais íntima: quando o Luís, já numa idade escolar, pediu para ser baptizado, escolheu para padrinho de baptismo precisamente o Ilídio. Fui eu que transmiti o convite e lembro-me bem que, do outro lado, do fio telefónico, não houve a mínima hesitação. Pois foi com gosto recíproco e fortalecido nos nossos encontros que ficámos compadres. A casa do Ilídio era contígua à escola da EB2/3 Dr.ª Maria Alice Gouveia e acontecia muita vezes, na primeira década deste século, que o Luís ficava em casa do padrinho para almoçar, sendo tratado como um dos seus quatro filhos.

Entre as actividades da Associação de Pais ficaram-me na memória as festas do fim do ano lectivo, nas quais os infantes aproveitavam os primeiros calores do estio para se refrescarem na praia fluvial do rio Mondego, no Zorro, para depois o encontro acabar, em convívio das várias famílias, à volta do jantar composto de iguarias trazidas e partilhadas por todos. A Lua estava alta sobre as águas do rio e os nossos espíritos estavam também alto por os nossos petizes terem completado com êxito mais um ano escolar.

O Ilídio é portador de deficiência, que vem, como tão bem conta neste livrinho, de uma infecção de poliomielite que apanhou na infância, pouco antes dos dois anos, quando começava andar. Só soube da história completa após a saborosa leitura desta obra. É uma história exemplar, não só pela coragem e determinação do próprio, como pela ajuda por parte de uma família numerosamente fraterna (o Ilídio tem uma dúzia de irmãos) e de amigos. Este livro é um agradecimento muito sentido do autor à família e aos amigos, tendo como pretexto os 50 anos do Plano Nacional de Vacinação, que permitiu erradicar o flagelo da poliomielite entre nós. Mas este posfácio não pode deixar de ser um agradecimento ao Ilídio por ele ser quem é, por sempre me ter honrado com a sua amizade e por ele ter mantido, embora o Luís esteja neste momento e estudar Engenharia em Lisboa enquanto o Duarte está a estudar Arquitectura em Paris, um contacto assíduo com o afilhado. Os filhos cresceram e a nossa amizade foi crescendo com eles. Depreende-se do livro, mas, se for preciso um testemunho de alguém que conhece o autor, só posso dizer que o Ilídio venceu – aliás, vence todos os dias – a deficiência de infância. Vindo jovem da aldeia de Lagares, Penafiel, fez o seu curso de História na Universidade de Coimbra, com pós-graduação em Ciências Documentais, ao mesmo tempo que trabalhava na Biblioteca Municipal de Coimbra. Depois tornou-se técnico superior da Universidade, onde está há 29 anos, no Arquivo, no Serviço de Documentação e Publicações e, mais recentemente, no Centro de Serviços Comuns da Administração - SGA. Tudo isto com dificuldades notórias de locomoção que nunca o esmoreceram, pois vejo-o sempre bem disposto. O Ilídio, graças em primeiro lugar a ele e depois à sua família, mas também à sociedade que fomos formando e em que felizmente hoje vivemos, é um belo exemplo de inclusão. Ser diferente não significa que ele não se considere e que não seja considerado igual. Estou certo que, para o meu filho, que também teve como madrinha uma extraordinária mãe de um rapaz deficiente (não relacionada familiarmente com o padrinho), o convívio com o padrinho tem sido uma lição de vida.

Da leitura deste livro (onde além da capacidade do historiador ressaltam os conhecimentos de artes gráficas do autor), não pode deixar de resultar a rejeição do “preconceito do coitadinho”, tão arreigado na nossa antiga sociedade rural, mas hoje, tal como a poliomielite, erradicado no nosso país. Custou mais terminar com o preconceito do que com a doença, porque contra o preconceito não há vacina. E é, por isso, que o preconceito ainda hoje por vezes assoma. É nossa obrigação preveni-lo através da educação inclusiva.

Por falar de vacina, não posso deixar, como praticante da divulgação da ciência, de aproveitar o espaço que o Ilídio generosamente me concede na sua obra, por repetir aqui o que afirmo amiúde nas minhas palestras de divulgação da ciência: o incremento da longevidade, que pressupõe a eliminação de causas de morte prematura como certas epidemias graves, é um dos grandes triunfos da ciência moderna. Na segunda metade do século XX, assistimos todos ao fim, em quase todo o globo, de doenças que costumavam ser fatais. Eu sou praticamente da idade do Ilídio (não chego a ser um ano mais velho) e podia, portanto, ter sido infectado, em tenra idade, pelo vírus da pólio. Mas os nossos filhos, o Luís e o Duarte, já não, porque engoliram as gotas “mágicas” da vacina anti-pólio. Os médicos virologistas Hilary Koprowski, de origem polaca, mas naturalizado estado-unidense, Jonas Salk, norte-americano, e Albert Sabin, de origem russa, mas também norte-americano, cujos primeiros ensaios vacínicos foram realizados respectivamente em 1950, em 1952 e em 1957, permitiram que a campanha alargada de vacinação anti-pólio tivesse começado em Portugal em 1965, depois de alguma experiência no início da década de 60. É curioso que o judeu Koprowski tenha passado por Portugal ao fugir da França ocupada pelos nazis, viajando para o Brasil antes de se fixar nos Estados Unidos. Por sua vez, Sabin, que também era judeu, emigrou para o Novo Mundo entre as duas guerras, tendo estado várias vezes no Brasil, o que lhe valeu o ensejo de casar com uma brasileira, a senhora Heloísa de Abranches.

Para reconhecer o grande triunfo sobre a doença que foi a vacinação, basta mencionar que a epidemia de 1952 foi horrível (58.000 casos, que resultaram em 1445 mortes e 21.269 paralisias permanentes), sendo o medo da poliomielite apenas comparável ao da bomba atómica, o espectro que pairava sobre o mundo no pós-guerra. As consequências primeiro do dessa grande epidemia e depois da prevenção através da vacina (a cura continua a ser um enorme desafio para a medicina) foram enormes, tanto no campo das ciências médicas, como na sociedade em geral: o progresso da medicina intensiva teve muito a ver com o combate à pólio, a fisioterapia desenvolveu-se associada ao tratamento dos pólios, a filantropia floresceu com a necessidade de assegurar a vacinação maciça e os direitos dos deficientes foram-se afirmando socialmente, com a criação de associações e a inclusão bem sucedida.
Jonas Salk recusou patentear a sua vacina, perguntando: “Acaso se pode patentear o Sol?”. E a vacina passou a ser, como o sol, para todos. Hoje em dias, graças à vacina anti-pólio, só existe poliomielite na Nigéria, no Afeganistão e no Paquistão, embora, devido às péssimas condições sanitárias em cenários de guerra, estejam a aparecer casos na Síria e no Iraque. A vacina anti-poliomielite representou o início de outras vacinas, que os cientistas foram descobrindo e disponibilizando. A recente campanha anti-vacinas que surgiu nalguns países desenvolvidos, designadamente ao associar de maneira fraudulenta a vacina tríplice (sarampo, rubéola e papeira) a casos de autismo, é um movimento anti-científico que tem de ser denunciado e combatido por todos os meios.

O livro do Ilídio é um depoimento, muito autêntico, de um tempo em que a humanidade passou de uma fase que certas doenças eram temidas fatalidades para um tempo em que elas não passam de impossibilidades, se conseguirmos que o conhecimento prevaleça sobre a ignorância. O seu escrito pode parecer apenas um depoimento pessoal. Mas é bem mais do que isso: é um documento histórico que importa divulgar e preservar, para que aprendamos com a experiência. Neste caso não apenas a experiência que a medicina proporciona, mas também a experiência das ligações humanas. Muito obrigado, Ilídio!

Coimbra, 15 de Novembro de 2015

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