quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

CÉDRIC VILLANI, O GRANDE EMBAIXADOR DA MATEMÁTICA


A última crónica de Jorge Buescu na Ingenium, revista da Ordem dos Engenheiros, é tão interessante que não resisto aqui a transcrevê-la, alargando o público que a pode ler:

Cédric Villani jamais passa despercebido. A sua imagem singularmente retro remete-nos para um outro tempo: cabelo comprido, cortado a direito abaixo das orelhas, e risco ao meio, fato de três peças, relógio de bolso cuja corrente lhe cruza o colete, laço ou plastron ao pescoço, e na lapela um enorme alfinete em forma de aranha (da vasta colecção que possui, conforme o atestam as suas incontáveis imagens disponíveis nos media). A mochila preta onde transporta o portátil é a nota dissonante neste look de aristocrata do século XIX. Este inesperado e excêntrico conjunto leva-nos, num primeiro olhar, a supor estar perante um músico ou um actor –  certamente alguém ligado às artes.

Dificilmente diríamos, contudo, estar diante de dos mais brilhantes matemáticos da actualidade. E seguramente do mais famoso. Mas quem é Cédric Villani?

Nascido em França há 42 anos, Cédric Villani  já atingiu tudo aquilo que um matemático pode sonhar na sua vida profissional: descobriu resultados profundos e importantes; goza de reconhecimento mundial, sendo convidado pelas melhores Universidades para expor as suas ideias; publicou mais de uma centena de artigos nas mais prestigiadas revistas científicase livros considerados marcos nas matérias que tratam. São muitos e impressionantes os prémios e distinções que até ao momento ganhou: prémio da European Mathematical Society, Prémio Henri Poincaré, Prémio Fermat, Prémio J. Doob da American Mathematical Society, pertença à Academia Francesa das Ciências,…e, é claro, a maior distinção na área da Matemática: a medalha Fields, que lhe foi atribuída em 2010 e lhe mudou a vida,  elevando-o ao papel de  incansável embaixador da Matemática junto do grande público e transformando-o  em “pop star” à escala planetária – de tal forma que ele próprio se intitulou “Lady Gaga da Matemática”.

Em termos científicos, o seu resultado mais espectacular é (até hoje!) a demonstração matemática da existência de um fenómeno físico desconhecido. A história conta-se brevemente: o físico russo Lev Landau tinha previsto em 1946 a existência de um fenómeno de amortecimento exponencial de ondas em plasmas, que ficou conhecido como amortecimento de Landau. Mas, apesar da previsão teórica, este fenómeno permaneceu inobservado: os plasmas existem no núcleo do Sol, a 2 milhões de graus, e não são propriamente reprodutíveis em laboratório, como bem sabem os físicos que trabalham em fusão nuclear. Por outro lado, a própria teoria de Landau era discutível: todos estes fenómenos são por natureza altamente não-lineares, e as equações utilizadas eram já resultado de aproximações e simplificações. Poderia o amortecimento de Landau não passar de um efeito espúrio  destas aproximações? Existiria ou não o amortecimento de Landau?

Estava-se, pois, numa situação de total bloqueio: as equações prevendo o fenómeno não passavam de um modelo, de validade não comprovada na região em que estava a ser aplicado (citando o estatístico George Fox, “todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”). Sendo ponto assente a impossibilidade, para todos os efeitos práticos, da sua confirmação experimental,  a existência do amortecimento de Landau apresentava-se, pois, como uma quimera inatingível.

É aqui que entra em cena Villani. Constatando a analogia de princípio das questões matemáticas em que trabalhara anteriormente (transporte óptimo e equações cinéticas do tipo de Boltzmann) com o problema de princípio do amortecimento de Landau, desafiou o seu antigo aluno Clément Mouhot a colaborar no estudo deste problema. Ao fim de quase dois anos de esforços, Villani e Mouhot conseguiram um resultado notável: demonstraram matematicamente a existência de amortecimento de Landau nas equações completas da magnetohidrodinâmica. Aquilo que Landau deixara como conjectura relativa às equações aproximadas, Villani e Mouhot demonstraram como teorema relativo às equações completas!

É difícil exagerar a importância deste resultado. Para se ter uma ideia, note-se por exemplo que as equações de Navier-Stokes, que regem a dinâmica de fluidos, são para a Matemática terra incognita: quase duzentos anos depois de formuladas, está ainda em aberto a demonstração matemática da existência de soluções no caso geral (é, aliás, um dos problemas do Milénio, com prémio de um milhão de dólares atribuído pelo Clay Institute). E, no entanto, todos nós comprovamos experimentalmente no dia-a-dia a existência de soluções: a água flui como se espera, o ar da atmosfera circula como previsto pelas equações, o fumo de um cigarro sobe aceleradamente, passando o escoamento de laminar a turbulento. Como é natural, nesta, como noutras matérias, a Física está séculos à frente da Matemática.

Ora, Villani foi contra a ordem natural das coisas: fez a Matemática ultrapassar a Física, ao demonstrar matematicamente que o amortecimento de Landau existe. Mais do que um fenómeno físico, o amortecimento de Landau é, graças a ele, um teorema, tão verdadeiro como o de Pitágoras.
Foi este o grande resultado que deu a Cédric Villani a medalha Fields em 2010. E foi a partir daqui que a sua vida se alterou radicalmente.

As medalhas Fields são atribuídas de quatro em quatro anos no Congresso Internacional de Matemática, que reúne milhares de matemáticos de todo o Mundo e são frequentemente comparadas aos prémios Nobel. A ocasião da sua entrega evoca, contudo, mais a dos Óscares em Hollywood do que a que decorre na austera Academia Sueca. Cria-se grande expectativa, estão presentes chefes de Estado, são convidadas centenas de jornalistas e a cerimónia é planeada e ensaiada ao segundo. É propositadamente um momento de public relations, marketing excepcional numa disciplina conhecida por não ter propriamente boa imagem pública. Nos dias subsequentes, os matemáticos galardoados são assediados por todo o tipo de media para declarações e entrevistas. 

Um matemático típico ambiciona tudo menos este tipo de fama efémera. Sente-se desconfortável sob os holofotes, tem dificuldade em comunicar aos leigos em que consiste o trabalho que o fez ganhar o prémio, e deseja secretamente  que tudo aquilo passe para poder regressar às suas equações. E em regra esta agitação em torno dos premiados cessa ao fim de algumas semanas, retomando estes a sua vida normal.

Mas Villani não é um matemático típico. Profundo mas comunicativo, erudito mas acessível, e com um enorme desejo de partilhar com o resto do Mundo a beleza da Matemática, Villani aceitou e chamou a si, com enorme empenho e contagiante joie de vivre, essa inesperada tarefa de comunicação da Matemática.

Os media ficaram de imediato fascinados por Villani – e com boas razões. Nele descobriram um dos representantes máximos da ciência provavelmente menos conhecida e mais incompreendida, não apenas a aceitar os seus pedidos de entrevistas, mas a revelar-se uma personalidade transbordante de energia, de inteligência, de erudição, de sofisticação  – e de graça. Um verdadeiro esprit de finesse. Alguém que pulveriza todos os estereótipos que ditam que a Matemática é aborrecida e os matemáticos enfadonhos. Alguém que brilha em todo o lado, na rádio, na TV, na imprensa escrita – e brilha por ser genuíno. Alguém que nos enriquece pelo mero facto de o ouvirmos, que tem um enorme gozo em comunicar e que fala, com profundidade e clareza extraordinárias, sobre tudo o que lhe perguntarem.

Tudo? Não. Como os irredutíveis gauleses da aldeia de Astérix, há um assunto tabu para Villani: as aranhas que usa na lapela. Recusa-se a falar desta sua idiossincrasia, que se materializa numa colecção de quase meia centena de alfinetes provenientes de todo o Mundo, a maioria feitos especialmente para si. Villani diz que todas as pessoas devem ter algo de misterioso, e que o seu segredo são as aranhas. Tem mesmo uma tarântula empalhada no seu gabinete do Institut Henri Poincaré (de que é director).

Villani gosta da projecção mundial que a medalha Fields lhe trouxe e aproveita-a para comunicar ao Mundo as razões da sua paixão pela Matemática. Diverte-se a fazê-lo. E o Mundo quer ouvi-lo. É também, literalmente, uma estrela de cinema, figurando como protagonista do filme Comment j’ai detesté les Maths, de Olivier Peyon, e da curta metragem La main de Villani, de Jean-Michel Alberola. E é autor de livros singulares, como Théoreme Vivant ou o recente Les rêveurs lunaires, banda desenhada em que surge também como personagem.

O seu livro Teorema Vivo, editado em 2015 pela Gradiva e traduzido pelo autor destas linhas, é uma obra verdadeiramente ímpar. Não é um livro de divulgação científica no sentido clássico. É uma espécie de diário de bordo, de mapa da actividade mental de Villani durante os quase dois anos de trabalho e colaboração com Mouhot sobre o amortecimento de Landau. Lá estão os avanços e os recuos, as trocas de emails inflamados e as grandes frustrações. Lá estão também solilóquios sobre música ou literatura, associações de ideias mais ou menos conscientes, e páginas e páginas de equações, curiosamente com propósito sobretudo decorativo. Uma viagem que nos leva de Paris a Princeton, de Lyon a Tóquio e termina em Hyderabad, com a entrega da medalha Fields. Teorema Vivo é acima de tudo um testemunho pessoal único sobre  a singularidade do processo criativo em Matemática.

Em Novembro de 2014 Cédric Villani esteve em Lisboa, no LEFFEST (Lisbon and Estoril Film Festival), convidado pelo organizador Paulo Branco como mais uma estrela, lado a lado com John Malkovich ou Willem Dafoe. Numa noite mágica, o público presente assistiu aos seus filmes e teve o privilégio de participar num debate com Villani (disponível no youtube). Foi uma estadia breve, pois nessa mesma madrugada seguiu para o Canadá, onde era esperado para mais uma conferência.

Em 10 e 11 de Novembro de 2015 Villani regressa a Portugal: desta vez, além de participar no LEFFEST, virá ainda lançar a edição portuguesa do Teorema Vivo e proferirá, em Coimbra, a conferência “Matemática, Cultura e Criação”, no âmbito do Mês da Ciência, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Duas excelentes ocasiões para privar de perto com esta mente brilhante.
Jorge Buescu
Outubro de 2015


3 perguntas a Cédric Villani

JB: Livros, filmes, TV, BD, entrevistas… como arranjas tempo para ser o “embaixador da Matemática”?
É verdade que explorei muitos caminhos… seria necessário falar também das centenas de conferências que dei nestes últimos anos, do meu papel de presidente de associações, da minha cooperação com África, e do dinheiro de que foi necessário ir à procura para o meu instituto. No entanto, todos estes “chapéus” participam da mesma lógica “pública” e reforçam-se uns aos outros: um contacto criado num contexto pode revelar-se importante noutro; os progressos realizados num papel podem ser úteis para outro. É portanto uma questão de integração. Alguns pontos-chave da minha organização são: (1) A minha secretária faz um trabalho extraordinário, nunca me desembrulharia sem ela; (2) Qualquer que seja o projecto que se prossegue, o êxito é sempre uma questão humana: descobrir as boas pessoas, ter a boa compreensão, a boa empatia; (3) um grande rigor na gestão das comunicações, por exemplo os emails.

JB: A investigação exige total concentração, como se vê no teu “Teorema Vivo”. Não sentes essa exposição pública por vezes como um entrave ao teu trabalho matemático?
É claro que a exposição mediática e o trabalho matemático não se dão bem em conjunto: as restrições que pesam sobre a utilização do tempo, e o facto de ele ser tão esquartejado, não são muito compatíveis com o ritmo prolongado da investigação. Tive de pôr de lado assuntos que me eram caros; e, acima de tudo, sofro por não poder trabalhar nos meus projectos de livros. Mas não há milagres: se se pretende atingir objectivos em comunicação, administração, contacto com a sociedade, é necessário investir nessas áreas durante anos. E é como em investigação: quando a oportunidade se revela, é preciso aproveitá-la a fundo. Dito isto, eu conservei a minha actividade de ensino: cursos de Doutoramento, um MOOC[1] no ano passado e outros em preparação; e a minha actividade como editor permite-me ainda estar bem informado sobre as tendências actuais da investigação. Enfim, as conferências públicas foram preciosas para me permitir compreender o meu próprio trabalho e as suas relações com o resto da investigação.

JB: E o que pensam os teus colegas matemáticos do teu envolvimento público?
Os meus colegas têm, seguramente, sentimentos diversos: alguns acham que é muito bom desencarcerar a disciplina, outros devem dizer-se que faço demasiadas coisas. Mas (quase) ninguém me censurou. E creio que todos eles vêem que eu trabalho enormemente no assunto, e que isso tem efeitos muito positivos para a disciplina: a publicidade feita à profissão e às nossas universidades; os grandes financiamentos públicos obtidos para o desenvolvimento do Institut Henri Poincaré; a nossa influência política acrescida em decisões importantes.





[1] MOOC: Massive Online Open Course.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...