domingo, 2 de agosto de 2015

É PRECISO ELEVAR A CULTURA GEOLÓGICA DOS PORTUGUESES

Novo texto de Galopim de Carvalho:


Mapa Geológico de Portugal simplificado (LNEG)

 É preciso elevar a cultura geológica dos portugueses e isso começa na escola. De há muito que venho alertando, em textos escritos e em conversas públicas, para a pouca importância dada ao ensino da Geologia nas nossas escolas do ensino básico e secundário. Até parece que quem decide (leia-se o Ministério da Educação) sobre o maior ou menor interesse das matérias curriculares, desconhece a real importância deste domínio da ciência na sociedade moderna. Assim, não se compreende a relativamente pouca importância desta disciplina nos nossos curricula de ensino. 

A vida profissional permitiu-me, ao longo de décadas, conviver, algumas vezes de muito perto, com as mais altas figuras nacionais, dos chefes de estado aos dos governos central e local, com ministros da educação e outros, com parlamentares e figuras gradas dos partidos políticos, com os mais prestigiados jornalistas e comentadores dos jornais, da rádio e da televisão (tudo gente do direito, da economia e finanças e das humanidades), e pude, salvo uma ou outra excepção, constatar a falta de cultura geológica desta elite que, neste domínio, não difere do comum dos cidadãos. Para além do seu interesse utilitário na procura, exploração e gestão racional de matérias-primas minerais metálicas e não metálicas indispensáveis no mundo actual, a geologia ensina-nos, ainda, a encontrar águas subterrâneas e recursos energéticos, como são, entre outros, o carvão, o petróleo, o gás natural e os campos geotérmicos. Essencial no estudo da natureza dos terrenos sobre os quais temos de implantar grandes obras de engenharia (pontes, barragens, aeroportos), a geologia dispõe dos conhecimentos necessários à utilização do solo, à defesa do ambiente natural, numa política de desenvolvimento sustentado, e à preservação do nosso património mais antigo. Para além destas potencialidades, a geologia dá resposta a muitas preocupações de carácter filosófico. Na história do pensamento científico, da Antiguidade aos dias de hoje, são muitos os exemplos de filósofos, alquimistas, naturalistas e, por último, geólogos que se destacaram nas referidas preocupações. Exceptuando aqueles que, por formação académica e profissional, possuem os indispensáveis conhecimentos deste interessante e útil ramo da ciência, a generalidade dos nossos concidadãos não conhece nem a natureza, nem a história do chão que pisa e no qual assentam as fundações da casa onde vive. Uns mais, outros menos, sabem algo do que aqui se passou desde o tempo em que o primeiro humano pisou estas terras, milhares de anos atrás, mas, muitíssimo pouco ou nada sabem do que aqui aconteceu há milhões e milhões de anos. 

 Marcados por um ensino, livresco, tantas vezes desinteressante e fastidioso, são muitos os cidadãos deste nosso país que frequentaram disciplinas do âmbito da geologia e que, terminada esta fase das suas vidas, esquecem o pouco que lhes foi ministrado sem entusiasmo nem beleza.

Através das rochas, dos minerais e dos fósseis ou, por outras palavras, através da Geologia pudemos conhecer grande parte da história deste “ponto azul-claro” (como lhe chamou Carl Sagan), incluindo a da vida a que deu berço e, por enquanto, suporta. 

 De imensa e inesgotável que parecia, ao tempo de Colombo, Gama e Cabral, a Terra tornou-se pequena e frágil aos nossos olhos. Podemos vê-la, parcialmente envolta nos farrapos brancos das nuvens, numa única imagem fotográfica obtida a partir de um dos muitos satélites que a rodeiam. Constante e progressivamente agredida pelas imensas e incontroladas forças do mundo dos cifrões, este nosso condomínio, que nos transporta através da imensidão do espaço, está a dar sinais preocupantes de esgotamento de recursos e de degradação ambiental. Há, pois, que defendê-la e, para tal, é imperioso conhecê-la.

Nesta defesa, cabe à escola um papel fundamental.

 Por exemplo, os habitantes da cidade que me acolheu há mais de seis décadas, desconhecem que o lioz (a pedra calcária, repleta de história, usada na cantaria e na estatuária de Lisboa e arredores) nasceu há cerca de 92 a 96 milhões de anos, num mar muito pouco profundo e de águas mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do verão. Desconhecem que o basalto das velhas calçadas da cidade brotou, como lava incandescente, de vulcões que aqui existiram há uns 70 milhões de anos, nem imaginam que o Tejo já desaguou mais a Sul, por uma série de canais entrançados, numa larga planura entre a Caparica e a Aldeia do Meco. Ainda como exemplo, os naturais de Sintra ignoram que, por pouco, não rebentou ali um grande vulcão (há uns 85 milhões de anos) nem sabem explicar porque é que o belo mármore de São Pedro, quando percutido, liberta um odor a ovos podres.

E o mesmo se passa com a generalidade dos portugueses, governantes e governados. Não sabem que grande parte do Ribatejo e do Alto Alentejo foi uma área lacustre e pantanosa há poucas dezenas de milhões de anos. Ninguém lhes explicou como e quando surgiram e evoluíram as serras e os rios de Portugal. Desconhecem porque é que se fala do Barrocal algarvio, da planície alentejana e do Norte montanhoso. 

Portugal, de Norte a Sul, e nas Ilhas dos Açores e da Madeira dispõe de uma variedade de terrenos que cobrem uma grande parte do tempo geológico, desde o Pré-câmbrico, com mil milhões de anos, aos tempos recentes (Holocénico). No que se refere à diversidade litológica, o território nacional exibe uma variedade imensa de tipos de rochas, entre ígneas, metamórficas e sedimentares e, no que diz respeito aos minerais, a diversidade de espécies aqui representadas é, igualmente, muito grande, e o número de minas espalhadas pelo território e hoje abandonadas, ultrapassa a centena. Temos, muito bem documentadas, as duas últimas grandes convulsões orogénicas. A orogenia Hercínica ou Varisca, que aqui edificou parte da vasta e imponente cadeia de montanhas de há mais de 300 milhões de anos e hoje quase completamente arrasada pela erosão, e a orogenia Alpina que, nas últimas dezenas de milhões de anos, entre outras manifestações, elevou, entre falhas, o maciço da Serra da Estrela, à semelhança de uma tecla de piano que se levanta acima das outras, e dobrou o espectacular anticlinal tombado para Sul, representado pela serra da Arrábida. Dispomos de múltiplos aspectos de vulcanismo activo e adormecido (nos Açores) e extinto, de um passado recente (na Madeira e Porto Santo) e antigo de cerca de 70 milhões de anos (entre Lisboa e Mafra). Temos fósseis de todos os grandes grupos sistemáticos e de todas épocas. Temos dinossáurios em quantidade e algumas das pistas com pegadas destes animais estão entre as mais importantes da Europa e do mundo.

Os portugueses sabem dizer granito, basalto, mármore, calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo, feldspato de mica, mas ignoram a origem, a natureza e o significado destes materiais como documentos da longa história da Terra.

Páginas desta história, conservadas nas rochas, nos minerais e nos fósseis, estão à disposição dos professores e dos alunos nos terrenos que rodeiam as suas escolas. Conhecer esses terrenos e os processos geológicos aí envolvidos, desperta a curiosidade dos alunos, abrindo-lhes as portas a múltiplos domínios desta disciplina, constantes de um programa convenientemente elaborado. Tais conhecimentos, mais sentidos e interiorizados do que, simplesmente, decorados (empinados), para debitar em provas de avaliação, conferem dimensão cultural à geologia, formam cidadãos mais conscientes da sua posição na sociedade e defensores activos do nosso património natural. À semelhança de um velho pergaminho, de um achado arqueológico, ou de uma ruína, as rochas, com os seus minerais e os seus fósseis, são documentos que a geologia ensina a ler e a interpretar.

Se há matérias que têm características passíveis de serem ministradas numa política de regionalização do ensino e que muito conviria considerar, a maioria das incluídas na disciplina de Geologia satisfaz esta condição. De tudo o que atrás se referiu e, ainda, o sílex intercalado nos calcários do Cretácico da região de Lisboa, o urânio da Urgeiriça, o cobre e o zinco de Neves Corvo, as hipóteses de petróleo, em Torres Vedras, e de ouro, em Montemor-o-Novo, se há disciplinas científicas onde a regionalização faz sentido, a Geologia é, certamente, um delas. Neste panorama tenho vindo a propor aos responsáveis uma reformulação dos programas de Geologia visando uma adequada informação sobre a geologia regional, a definir pelas escolas, em complemento de um bem pensado programa de base comum a todas elas. Deveria dar-se às escolas e aos professores desta disciplina liberdade e tempo curricular para, em cada local e em cada oportunidade, escolherem a melhor via formativa, o que não exclui a obrigatoriedade de cumprir um programa mínimo, criteriosamente escolhido, por quem tenha competência, não só pedagógica, mas também científica e cultural, para o fazer.xxxx Assim e a título de exemplo, as escolas das regiões autónomas, aproveitando as condições especiais que a natureza lhes oferece, deveriam privilegiar o ensino da geologia própria do vulcanismo, incluindo a geomorfologia, a petrografia, a mineralogia, a geotermia (nos Açores) e a sismologia. Do mesmo modo, o citado vulcanismo extinto, entre Lisboa e Mafra, o maciço subvulcânico de Sintra, o mar tropical pouco profundo que aqui existiu, durante uma parte do período Cretácico, deveriam ser objecto de estudo dos alunos destas regiões. A orla mesocenozóica algarvia e a serra de Monchique, as pegadas de dinossáurios da Serra d’Aire, de Carenque (Sintra) de Vale de Meios (Alcanede) e do Cabo Espichel, o termalismo em Chaves, São Pedro do Sul e em muitas outras localidades, os vestígios de glaciações deixados nas serras da Estrela e do Gerês, o complexo metamórfico e os granitos da foz do Douro, os “grés de Silves”, os quartzitos das Portas do Ródão e da Livraria do Mondego (Penacova), o Pulo do Lobo, no Guadiana, e a discordância angular da Praia do Telheiro (em Vila do Bispo e hoje mundialmente conhecida), os mármores em Estremoz, as areias brancas de Coina e Rio Maior, as pirites de Aljustrel, o volfrâmio da Panasqueira e o caulino da Senhora da Hora (Porto) deveriam constar dos programas das escolas das redondezas.

 A Geologia, já o tenho afirmado e não é de mais repetir, não pode deixar de ter uma dimensão cultural ao dispor do cidadão comum. Os professores devem ter consciência desta realidade quando se dirigem aos seus alunos. Não estão só a fornecer bases para eventuais licenciados em Geologia (sempre raros ou inexistentes numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na maioria dos casos, a formar cidadãos para quem essas bases são fundamentais em termos de preparação global. Assim, o ensino deveria ser tornado atraente com elementos culturais ligados ao quotidiano dos alunos. As amarras do programa oficial e o obediente e acrítico manual escolar contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o ensino vivo da disciplina

.E porque não ligar estes conhecimentos às nossas origens, onde e em especial o sílex e o barro foram alvo de procura e utilização, e à sucessiva ocupação do território por outros povos e civilizações (fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes), em busca do ouro, do cobre e do estanho? E porque não associar a nossa História à realidade física (leia-se geológica, geomorfológica, mineira, sismológica) do país?

1 comentário:

Ana Paula Horta disse...

O que eu aprendi aqui. Obrigada! No que se refere ao ensino estou completamente de acordo.

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