terça-feira, 26 de agosto de 2014

Our mutual friends: sobre a mediocridade e a falta de originalidade

Mais um artigo do nosso correspondente no estrangeiro que tem analisado a "avaliação" da FCT, no qual disseca a teoria de Coutinho de "abate" de unidades de investigação:

A maior parte dos erros factuais do texto de opinião de António Coutinho no semanário Expresso de 9 de Agosto intitulado “A favor da avaliação das Unidades de Investigação” já foram apontados aqui.

Nomeadamente, os “factos” apresentados por António Coutinho ou não dizem respeito à presente discussão (“foi a primeira vez que (1) todas as Unidades de Investigação (UI) foram avaliadas competitivamente no mesmo processo”) ou estão errados (“os resultados são idênticos aos da última avaliação (2007)” e “a FCT não se intrometeu no processo de avaliação”).

Sendo as premissas subjacentes falsas, o artigo de António Coutinho torna-se completamente irrelevante a não ser para ilustrar o que sucede quando alguém escreve sobre um assunto com ideias pré-concebidas, sem ter feito o devido estudo da literatura existente, comparando escalas em unidades diferentes, não ficando surpreendido (nem “agitado”!) quando os resultados experimentais não batem certo com a sua teoria, etc.

Mas há ainda um outro pecado capital em ciência que falta mencionar: a utilização de ideias e argumentos de outros, sem incluir as devidas referências.

O caso britânico

Um facto (daqueles a sério), que temos a certeza já ter sido constatado por todos com um interesse nesta avaliação é o desequilíbrio entre as nacionalidades dos membros dos painéis. Um pouco mais de 23% dos membros são do Reino Unido, seguido de 17% da Itália e depois temos uma queda abrupta para a França e a Alemanha com pouco menos de 7%. A lista termina com 15 países com apenas um elemento (cerca de 20%). Além disso, quatro dos seis coordenadores dos painéis são britânicos. Estes são factos que a FCT deveria explicar.

Haverá alguma semelhança entre esta avaliação e o financiamento da investigação no Reino Unido?

Recuemos a 8 de Setembro de 2010, à primeira intervenção de Vince Cable, o Secretário de Estado do Comércio britânico (em inglês, Secretary of State for Business, Innovation and Skills), sobre ciência.

Com a intenção declarada de preparar cortes no financiamento na ciência da ordem dos 20-25%, Cable afirmou que

"It is worth noting in the last Research Assessment Exercise 54 per cent of submitted work was defined as world class and that is the area where funding should be concentrated."

Soa familiar? Mais interessante, numa entrevista que deu depois desta apresentação, Cable fez aquilo que Robert McCredie May, Barão May de Oxford, OM, AC, FRS, FAA, FTSE, FRSN, HonFAIB, num artigo na revista New Scientist intitulado “Don't let Britain's politicians ruin science” classificou como uma inversão deste argumento, declarando que 45% da investigação não era excelente. Daqui a afirmar que não se deve financiar a mediocridade correspondente a esses 45% foi um pequeno passo.

Para além deste aspecto, nessa intervenção Cable introduziu também novamente a questão do tipo de investigação que deve ser financiada, divagando ao longo de várias frases, afirmando que por um lado é importante apoiar a investigação fundamental, mas que por outro é preciso ter em conta o retorno imediato e a crise, etc.

As reacções

Será certamente interessante saber como reagiram os cientistas e comentadores britânicos ao discurso de Cable, o qual nos é extremamente familiar no contexto da corrente avaliação.

De facto as reacções da comunidade científica britânica não se fizeram esperar. Para além de uma série de argumentos que foram avançados mostrando que as medidas que se anteviam seriam devastadoras para a ciência no Reino Unido, os britânicos não têm problemas em chamar as coisas pelos nomes ou em ridicularizar o que é ridículo em público, mesmo (ou particularmente) no caso de discussões importantes como esta.

Numa entrevista no seguimento das declarações iniciais de Cable, Robert May, declarou que

He was clearly badly briefed, and it's a shame he didn't care to get all the facts beforehand. In particular, his claim that public money should not be made available to research that 'is neither commercially useful nor theoretically outstanding' is just plain stupid."

Talvez valha a pena repetirmos esta última frase, agora em bold e em vermelho, para que não restem dúvidas:

[H]is claim that public money should not be made available to research that 'is neither commercially useful nor theoretically outstanding' is just plain stupid."

No dia 9 de Setembro saiu no Times um artigo de Mark Henderson, na altura editor de ciência nesse jornal e presentemente chefe de comunicação do Welcome Trust, com o título “Underrating our scientists isn't clever, Dr. Cable” onde escreveu que

His claim that 45 per cent of research fails to pass muster is as credible as Blair’s claim that Iraq could launch WMDs in 45 minutes.

Por sua vez, o Presidente da Academia das Ciências Médicas, John Bell, afirmou que

"A long term commitment to publicly funded research is vital if we are to harness the competitive advantage previous investment has generated."

Vários comentadores, como William Cullerne Bown no blog Research Fortnight, referiram também que uma libra investida numa instituição de excelência como Oxford teria provavelmente um menor retorno que a mesma libra investida em universidades mais pequenas e de menor qualidade, mas onde os investigadores têm bastante mais necessidades financeiras para conseguir realizar o seu potencial de investigação – aquelas universidades onde, em Portugal, António Coutinho quer forçar a migração dos bons investigadores e pôr os restantes apenas a dar aulas.

Este último argumento é um exemplo da lei dos rendimentos decrescentes e é extremamente importante no contexto da avaliação em curso. Chama à atenção que a partir de certa altura investir mais nas unidades que já têm um financiamento alto terá um retorno mais baixo que investir noutras unidades com um financiamento mais baixo, mesmo que estas últimas tenham menor qualidade.

Quanto ao ridículo, mencionamos apenas um pequeno sketch ao estilo de “Yes, Minister escrito pelo físico Jon Butterworth e que apareceu no Guardian (ainda no dia 8 de setembro!), de onde extraímos o seguinte diálogo:

Minister: Oh well, we clearly should only fund excellence. It is inexcusable surely that we are funding anything that is below average?
Civil servant: Quite right minister. We should only fund the top half I would say. We should monitor it annually and if any of it is below the top half we should cut it.

Os modelos a seguir

Na parte final do texto, António Coutinho menciona um facto que até agora tem sido negado por todos, desde o ministro à direcção da FCT (a linha oficial é que há pelo menos tantos fundos para a ciência como anteriormente):

Sendo manifestamente incomportável financiar todas as UI que livremente se constituem (particularmente quando o país abriu falência)

Comecemos por notar que, na prática, as unidades não se constituem livremente (nem crescem como cogumelos), sendo o resultado de um processo evolutivo de vários anos, condicionado pelas avaliações anteriores. A título de exemplo, concorreram a esta avaliação menos 82 unidades que em 2007.

Coutinho explica em seguida o que se deve fazer com as unidades de investigação que considera menos competitivas, com a ideia que já mencionámos acima sobre a grande migração dos melhores investigadores enquanto que os outros ficariam a dar aulas.

E acrescenta:

O ensino superior em países dos mais competitivos é maioritariamente feito em instituições e por professores que não fazem investigação.

A este respeito, voltemos mais uma vez a Robert May num artigo de 1997 na revista Science,The Scientific Wealth of Nations.” Um dos pontos principais desse artigo está relacionado com questões de escala e com o facto de não se dever comparar a produção científica de diferentes países sem ter em conta não só o investimento feito como a dimensão desses países.

Ou seja, estamos a falar de questões de eficiência, as quais são tão mais importantes quanto menores são os países e os recursos disponíveis, que é precisamente a situação de Portugal. Reproduzimos aqui uma tabela desse artigo, onde se tem em conta o número de artigos e citações por habitante, normalisados em relação aos EUA.

Cuntry
Papers per person
Country
Citations per person
Sweden
147
Israel
105
Denmark
127
Denmark
103
Canada
127
U.S.A.
100
the Netherlands
109
the Netherlands
96
Finland
107
Canada
95
U.K.
104
U.K.
88
U.S.A.
100
Finland
85
New Zealand
99
Iceland
76
Norway
96
Norway
63
Austrália
93
Australia
61
France (15)
72
France (15)
51
Germany (17)
67
Germany (16)
49
Japan (19)
49
Japan (19)
31
Italy (21)
41
Italy (20)
28

Tabela 1. Medidas de performance relativa, normalizadas por referência aos Estados Unidos. Os primeiros 10 países encontram-se indicados nas posições correspondentes. Os últimos quatro têm a posição relativa indicada entre parêntesis.

Esta tabela contrasta grandemente com a que May cita anteriormente no mesmo artigo contendo os números absolutos e que é liderada pelos Estados Unidos, seguidos pelo Reino Unido, Japão, Alemanha, França, Canadá e Itália – ou seja, os países do G7.

Que modelos é que Portugal deve seguir? Um dos dos países do G7, onde o menor deles tem mais do triplo da população de Portugal e uma grande capacidade para atrair emigrantes especializados, para já não falar na muito maior capacidade financeira, ou apontar para países com uma população semelhante à portuguesa e que, não se podendo dar ao luxo de desperdiçar recursos humanos, tentam aproveitar o que têm da forma mais eficiente?

A esse propósito, e notando que em termos de eficiência os países do G7 são ultrapassados por pequenos países com muito menos recursos em termos absolutos, escreve May que

My view—and it is no more than a guess—is that a large part of the difference in performance between the top dozen or so countries in [the above t]able and the lower ranking of the G7 countries arises from differences in the nature of the institutional settings where the scientific research is done. Germany and France have superb scientists who do outstanding work, but a large proportion do this work in dedicated research institutes: Max Planck and CNRS Institutes. By contrast, most basic research in North America, United Kingdom, the Scandinavian countries, and others among the top countries in [the above t]able, is done in universities (19). The nonhierarchical nature of most North American and northern European universities, coupled with the pervasive presence of irreverent young undergraduate and postgraduate students, could be the best environment for productive research. The peace and quiet to focus on a mission in a research institute, undistracted by teaching or other responsibilities, may be a questionable blessing.

Ou seja, mesmo em países como a Alemanha e a França, não é boa ideia separar de forma muito dramática a investigação do ensino.

Como escreve May, trata-se de um palpite, e já muita água correu debaixo das pontes do Tamisa desde 1997. Mas pelo menos é uma hipótese feita com base em dados que se está a tentar explicar, e não apenas uma opinião não fundamentada.

Podemos afirmar, por exemplo, que dinheiros públicos não devem financiar a ciência feita em instituições privadas, mesmo que sem fins lucrativos, mas isso não passa de uma opinião – que poderá, no entanto, ser seguida pelo próximo governo português.

Conclusões

Uma vaga declaração de intenções da parte do ministro Vince Cable, juntamente com o pseudo-argumento que o que não é excelente é mediocre, foi suficiente para despoletar toda uma cadeia de reacções da parte dos cientistas e comentadores britânicos.

O tipo de problemas levantados por cientistas e comentadores eminentes de um dos países que certamente esta direcção da FCT pensa ser um bom exemplo a seguir, devia fazer quem tem o poder de decisão pensar duas vezes na aventura em que querem lançar um país como Portugal com uma rede de investigação que ainda é frágil – incluindo na sua dita excelência.

Suspender a avaliação de todas as unidades de investigação de um país é uma medida radical. Mas pode ser necessária para evitar consequências muito piores.


No caso britânico, Vince Cable ainda tem a desculpa de não ser um cientista e saber pouco sobre aquilo de que está a falar, como foi apontado por várias pessoas na altura. Qual é a desculpa da linha que vai da direcção da FCT até ao Ministro da Educação e Ciência, passando por António Coutinho?

Investigador identificado pela redacção do blogue


4 comentários:

Anónimo disse...

De acordo. É tempo de alguém inverter o disparate criado por Mariano Gago, que consistiu em retirar todo o dinheiro às universidades e insuflar com financiamentos milionários meia dúzia de laboratórios associados.
Devolva-se a investigação à universidade e acabe-se com essas tetas que não pararam de jorrar dinheiro durante anos.

Anónimo disse...

Bravo! (Para este e todos os outros textos deste investigador anónimo aqui publicados).

Ildefonso Dias disse...

De acordo, caro anónimo.
O drama neste país é a quantidade, eu diria inesgotável, de indivíduos “sabichões” como Mariano Gago e António Coutinho que não sabendo "da poda" tem no entanto o atrevimento e o descaramento de se intrometerem e condicionarem os destinos do país, condenando-o à menoridade mental. Foi isso que o primeiro fez retirando a investigação às universidades. É isso que o segundo continuará a fazer ao não devolver a investigação às universidades. Deixo esta transcrição do Professor Sebastião e Silva, que já em 1968 chamava a atenção da necessidade do professor universitário ser também ele um investigador (entrevista publicada pelo jornal A Capital).


“A incompreensão dos leigos relativamente ao problema do professor universitário estriba-se em particular neste facto: para eles, o catedrático ( ou lente: etimologicamente “aquele que lê”) é ainda aquela figura veneranda que sabe muito e fala como um livro aberto, repetindo, sem nunca se enganar, o que os sábios inventaram em países e tempos remotos. Não é de admirar, portanto, que mesmo pessoas inteligentes e bem intencionadas continuem a sustentar que para ser professor universitário não é preciso ser investigador. Eu não digo que num período transitório, não seja necessário ( e é ) admitir realisticamente a existência de professores que, dadas as condições do meio, não puderam realizar se como investigadores, mas que conseguem, excepcionalmente, ser bons pedagogos. Porém, de futuro, a posição terá de ser muito diferente, pelo menos no que se refere aos cursos de carácter científico: se não se exigir ao professor, como mínimo, o hábito e o espírito de pesquisa, reveladores de um contacto permanente com o movimento científico internacional – mesmo que os resultados pessoais não sejam brilhantes – então o País será irremediavelmente condenado à situação de menoridade mental, com todas as consequências deploráveis que daí podem deduzir - se a priori.
Um dos argumentos que são invocados com mais frequência contra o princípio de que os professores devem ser investigadores é o do que a grande maioria dos alunos não irão ser investigadores. Certamente que não! Mas é preciso não esquecer em que época vivemos: a evolução rapidíssima da técnica e da ciência exige que todos adquiram um certo espírito de pesquisa, ou seja: maleabilidade intelectual, senso crítico, imaginação criadora, espírito de iniciativa, capacidade de adaptação. E quem poderá, em última análise, transmitir esse espírito de pesquisa aos jovens portugueses, se nem sequer os professores universitários forem providos de tal espírito?”

Ildefonso Dias disse...

… António Coutinho diz ainda “Ser docente-investigador mediano ou medíocre não é melhor do que ser “apenas” um excelente docente.”

Que retrato de horizontes diminutos e de extrema ignorância emana da figura de António Coutinho quando lhe sobrepomos as palavras sabias do Professor Sebastião e Silva.

Eu percebo que aquilo que António Coutinho diz é muito sério e tem serias implicações no futuro do País, por isso deixo aqui um pedido de esclarecimento público ao senhor Ministro Nuno Crato que é: Ou o senhor Ministro Nuno Crato se identifica com as palavras do Professor Sebastião e Silva ou se identifica com as do Professor António Coutinho. Não há duas escolhas.
Se concorda com Sebastião e Silva deve de imediato demitir António Coutinho. De outra forma o senhor Professor Nuno Crato ficará para a história como uma personagem vulgar no campo da investigação cientifica e no da pedagogia entre outros valores. É como eu penso.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...