domingo, 7 de julho de 2013

Matemática como embrulho de uma tragédia


O teorema de Bayes é uma peça importantíssima da matemática. Ele estabelece a forma como o conhecimento nos ajuda a eliminar as incertezas. Formalmente, define o conceito de probabilidade de um evento condicionada ao conhecimento da probabilidade de um outro evento. Por exemplo, se soubermos que um bebé vai nascer daqui a um minuto, temos um valor de probabilidade de ele nascer louro. Mas se ambos os pais forem louros, a probabilidade condicionada a esse conhecimento já nos dá um valor "mais certo".

O que é que isto tem a ver com o embrulhos e tragédia? Primeiro temos que entender a gestão de crédito. Para os bancos emprestarem dinheiro para pequenos créditos, como crédito à habitação, a conta que fazem é relativamente simples. Juntam os créditos numa carteira em que sejam mais ou menos iguais em montante e destino. Sabem que desses clientes vão existir alguns que não vão conseguir pagar o empréstimo até ao fim, faz parte do negócio. Importante é que o lucro obtido com os demais clientes que pagam seja suficiente para cobrir o empréstimo daqueles que não pagam e pagar o serviço (é daqui que se define a taxa de juro do empréstimo).

Assim, torna-se particularmente importante saber quanto é que se prevê perder em empréstimos cujos clientes não têm possibilidade de pagar. Matematicamente, fazem-se algumas simplificações. Primeiro, admite-se que a probabilidade de um cliente incumprir é uma distribuição normal com um dado desvio padrão(*).

Depois, admite-se que a distribuição do montante perdido em cada incumprimento é independente do evento do incumprimento em si. A perda no incumprimento é a razão entre aquilo que se consegue cobrar ao cliente ( hipotecas, outras garantias) e aquilo que o cliente deve. A média da distribuição do incumprimento, multiplicado pela perda no incumprimento, dá-nos a perda esperada e esta dá o spread que peço aos clientes que se segmentem nessa carteira(**).

Fácil, não é? Ora vamos pegar na segunda componente do risco, a perda no evento do incumprimento. Como os clientes entregam a casa como garantia do empréstimo, é só conhecer quanto vale a casa, isto é, a distribuição dos preços. Ora, vamos aplicar uma técnica chamada de inferência bayesiana, ou estatística bayesiana. Então partimos de uma distribuição uniforme, i.e., a probabilidade de perdermos tudo, parte ou nada é exactamente igual. E chamamos a essa distribuição de probabilidade "a priori" . Vem um novo evento de preço que nos traz mais conhecimento que tínhamos antes e vamos obter uma probabilidade de perda condicionada a esse novo conhecimento, a chamada probabilidade "a posteriori".

E assim sucessivamente, acumulando conhecimento e tento uma avaliação cada vez mais correcta. Certo? Errado! Quando assumimos que a a distribuição "a posteriori" é uma medida de probabilidade, isto é, com soma total igual a um, quando subimos a probabilidade de um evento, baixamos a probabilidade dos outros. Como nos Estados Unidos a evolução do preço das casas foi sempre a subir durante décadas, a probabilidade de descida era, na práctica, zero. Ora se a perda no incumprimento é zero, a probabilidade de incumprir pode ser tendencialmente um.

Ou seja, pode-se emprestar a quem se quiser que não há maneira de se perder dinheiro! Matematicamente, a crise do subprime nunca aconteceu. Então, saber nada era menos gravoso que saber alguma coisa? Na verdade, a validade da inferência bayesiana é tão apertada em pressupostos que a sua aplicabilidade fica reduzida a quase nada, mas é um papel de embrulho fantástico. E, como diz com propriedade o filosofo matemático trader NN Taleb, nós comemos tudo desde que venha embrulhado em sofisticação matemática. Hoje pensamos como é que é possível que se assuma tamanha estupidez, mas a verdade é que a matemática era "imbatível".

Todas as agências de rating(***) classificaram estas carteiras com AAA, não há risco mais baixo. Todos os reguladores do mundo as consideraram sem risco, incluindo o banco de Portugal e todos os auditores consideraram-nas excelentes investimentos. É possível então enganar toda a gente ao mesmo tempo, só precisamos de um embrulho fantástico e não há embrulho como a matemática. Com má matemática vende-se de tudo. A desonestidade, a causa que toda a gente gosta de apontar no caso do subprime, só serve para enganar alguns durante algum tempo e mesmo assim andam a enganar-se uns aos outros.

E não digo isto apenas por causa dos acontecimentos nacionais da semana.

(*) que deveria ter a ver com a correlação entre os vários devedores, mas isso é demais para o regulador/auditor típico, mas a normalidade já é um erro suficientemente grande
(**) decisões do tribunal contra os bancos vão cair inteirinhas nos spreads do novos clientes. Ou pensavam que saiam de borla?
(***) Aquelas de quem os professores de Coimbra fizeram queixa ao ministério público. Como andarão as investigações?

19 comentários:

Armando disse...

Taleb, no seu livro "Anti-fragile", refere esta situação e fala da necessidade de criar sistemas "robustos". Contudo, acho que estamos a criar sistemas cada vez mais frágeis, sobretudo com o advento do Big Data e a ilusão que podemos conhecer tudo e prever comportamentos dos individuos e das empresas.

Unknown disse...

João Pires,


Se calhar explicou isto tudo muito bem (mas a mim soa-me algo metafisico)

"E assim sucessivamente, acumulando conhecimento e tento uma avaliação cada vez mais correcta. Certo? Errado!"

Como "Errado", como?

"Como nos Estados Unidos a evolução do preço das casas foi sempre a subir durante décadas, a probabilidade de descida era, na práctica, zero. Ora se a perda no incumprimento é zero, a probabilidade de incumprir pode ser tendencialmente um."

e o que é que o valor da perda no incumprimento tem a ver com a probabilidade de incumprir?

João Pires da Cruz disse...

É uma probabilidade. A probabilidade de perder um euro condicionada ao evento do devedor incumprir. Associado ao evento de incumprimento está a tomada da casa pelo banco, a probabilidade de perder um euro de casa era zero, quando avaliado pelo histórico.

Claro que a questão é substancialmente mais complexa por ser não-linear, há um limite de oferta a partir do qual o preço vai descer e vai descer em avalanche porque os incumprimentos são só um detalhe da economia envolvente mas parte da economia envolvente, pelo que a descida das casas vai gerar mais incumprimentos pela perda de valor.

A acumulação de conhecimento neste sentido, só é válida em sistemas muito bem comportados, dos quais a economia não é um deles. O clima, por exemplo também não, senão não estava eu aqui a pensar em dar um tabefe naqueles meteorologistas franceses da treta...

João Pires da Cruz disse...

Que estamos a criar sistemas mais frágeis, ele tem toda a razão. Que o Big Data seja parte dessa criação é uma escolha nossa. Na verdade, tudo indica que se vá nesse sentido, no sentido de fazer exactamente a mesma coisa mas com mais dados (passado o conceito de infinito da Matemática Aplicada de "é p'ra aí 10" para "é p'ra aí 1000") e tens razão. Mas isso depende da métrica que se está a seguir e é para essa escolha que existem físicos como tu :)

João Pires da Cruz disse...

(se aparecer uma resposta parecida com esta não ligue, eu tinha a impressão que já tinha respondido...)

O valor da perda no incumprimento é outra forma de dizer "probabilidade de perder um euro condicionada ao evento do incumprimento". A probabilidade de perder um euro num crédito é dada por "probabilidade de perder um euro condicionada ao evento do incumprimento" vezes "probabilidade de incumprir".

O pessoal das finanças chama-lhe LGD (Loss given default) e PD (probability of default) mas são ambas probabilidades. Só assumem um valor monetário quando multiplicadas pelo montante em dívida no incumprimento, o EAD (Exposure at Default). Mas isto é metalinguagem.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Gostaria de ter estudado mais matemática. Embora defenda a propriedade que o homem tem esta capacidade (o que) melhor diria ao dom especial na lide com algarismos.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

quê*

João Jarego disse...

A parte matemática da história está impecavelmente contada. Resta a económica. Espera-se que à frente dos bancos/casas de investimento esteja gente com sensibilidade para perceber que, independentemente do que um modelo possa dizer, o cenário de valorização contínua das casas (ou túlipas, aço ou bacalhau) é uma impossibilidade económica ... (óbvia para qualquer um que tenha estudado física ou história ... economia já não digo nada).
Em suma: a ignorância sob a forma de fé cega em modelos (veja o clássico caso do LTCM) ajuda a explicar o que se passou, mas a ganância explica o resto (sendo que o resto, na minha opinião, é a maior parte).

bom texto!

João Pires da Cruz disse...

A ganância é uma constante a todos os casos da economia, João. Os bem sucedidos e os mal sucedidos. Faz parte do problema.

lino disse...

O que é verdade é que as coisas começaram a correr mal quando os superespertos (a que os americanos chamaram "quants") começaram a invadir Wall Street no fim dos anos setenta. A Reaganomics e a Tatchernomics apenas legalizaram a fraude da auto-regulação dos mercados. Aos midas (vulgo agências de rating) que transformaram e transformam a a merda em ouro ninguém controlou nem controla agora-

João Pires da Cruz disse...

O facto de estarmos a falar do mercado mais regulado da história e do planeta não o afasta desta visão?

Anónimo disse...

Não tenho nada ideia que os mercados tenham a regulação de que fala. Desde , sobretudo, os tempos de Reagan e Thatcher que a desregulamentação veio sendo defendida e a machadada final foi dada no tempo de B. Clinton que pôs fim ao Glass-Steagall Act, dos tempos de Roosevelt. Até à actual crise era uma heresia falar de regulamentação que, a existir efectivamente, não se vem notando muito.

Ivone Melo

João Pires da Cruz disse...

Conhece isto www.bis.org Ivone? Define a lei que regulamenta os bancos do mundo inteiro tirando as credit unions americanas ( desde há dias) . Está acima dos estados e até das uniões dos estados. É imposta directamente sobre os bancos centrais que impõem sobre os membros do seu mercado. Nunca na história nada foi regulado com tanta intensidade nem com esta abrangencia geográfica. Falar-se de mercado financeiro desregulado é quase anedótico.

Anónimo disse...


O BIS reúne bancos centrais de todo mundo , faz levantamento e divulgação de dados , monitoriza e faz "avisos à navegação", tem já uma história longa. Foi criado para regular o pagamento das compensações da 1ª Guerra e sob a sua alçada já houve muitas crises, por exemplo, previu mas não evitou a crise dos derivados porque não tem poderes para tanto. Ou seja, não regula o mercado dá , como já disse, "avisos à navegação" .

Ivone Melo

João Pires da Cruz disse...

Não, o BIS não regula o mercado. Quem faz o Comité de Basileia, que se aloja no BIS, que determina tudo no mercado financeiro, incluindo a forma como avaliar risco. O que é emanado do Comité tem força de lei em todos os país do mundo e não tenho grandes dúvidas do papel do Comité na crise que vivemos.

Anónimo disse...

O comité , tanto quanto sei, também não é supranacional faz apenas recomendações. Reguladores nós também temos e foi o que foi....


Ivone Melo

João Pires da Cruz disse...

Sim, não obriga ninguém só quem nao cumprir fica fora do mercado interbancário.

Anónimo disse...

Então quem é que já foi punido , além de nós O Povo? É que, várias crises depois, já vamos no Basileia III.

Ivone Melo

João Pires da Cruz disse...

E há mais alguém?

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...