terça-feira, 27 de julho de 2021

OTELO ANTES DA FAMA

Texto de João Boavida na sequência de texto de Eugénio Lisboa (aqui).


Muito se tem escrito sobre Otelo Saraiva de Carvalho, e muito continuará a escrever-se. Aqui, no De Rerum Natura, Eugénio Lisboa escreveu um dos melhores textos que li nos últimos dias sobre ele. Mas eu gostaria de falar sobre o Otelo Saraiva de Carvalho anterior ao 25 de Abril, desse tempo em que ninguém, fora da esfera militar, o conhecia. Penso que será a melhor maneira de encontrar a pessoa que ele foi.

Trabalhei com ele, diariamente, de setembro de 71 a setembro de 73, no Comando-Chefe do Quartel-General da Guiné. Muitas vezes pensei, nessa altura, como as suas qualidades estavam a ser mal aproveitadas, como se estava a gastar, ingloriamente, um homem daqueles. É certo que o mesmo estava acontecendo a muitos outros - toda uma geração foi sacrificada - mas de dentro da hierarquia, e ali, era porventura mais evidente ainda. 

Era então capitão de artilharia, arma onde as promoções eram lentas, o que de vez em quando lamentava, tornando mais evidente a injustiça da situação. Era, com toda a evidência, pessoa com qualidades para um posto e responsabilidades superiores. 

Otelo Saraiva de Carvalho era uma pessoa encantadora. Alegre, aprumado, despachado de gestos, era-o naturalmente e de forma espontânea, sem empáfia nem presunção. Criava à sua volta um ambiente de boa disposição e até de entusiasmo, mesmo quando as situações e as tarefas não eram nada entusiasmantes. Com uma voz forte e bem timbrada, tinha no entanto o cuidado de tratar os subordinados com delicadeza e sempre na perspetiva da pessoa concreta que estava à sua frente. Senhor de uma memória prodigiosa, tratava a todos pelo nome e não precisava de ir à lista dos números dos múltiplos telefones de toda aquela complexa engrenagem militar, para fazer a ligação que queria.
 
Pouco antes de eu chegar à Guiné tinha tido ele, e a esposa (Dina Alambre) o grande desgosto de lhes morrer uma filhita por umas febres brutais provocadas por um paludismo galopante. Mas, apesar disso, nunca deixou de cumprir com as suas tarefas nem se sentia isso nas formas de lidar, embora, por muito tempo, se lhe pressentisse o desgosto. 

Era, como se deve ter já percebido, uma pessoa delicada e gentil, não se lhe ouviam grosserias, e conseguia conciliar estas qualidades com elevadas qualidades militares. Era senhor de uma grande capacidade de comando, de planeamento e de supervisão, estava sempre atento aos pormenores e às situações imprevistas; previa-as, tanto quanto era possível, e integrava-as nos seus planos de ação. 

A organização, planeamento e execução do 25 de Abril demonstraram tudo isto, pelo que não estou a dar novidades a ninguém. Mas penso que é de alguma utilidade falar da pessoa que ele era, antes do que depois foi, ou do que dele fizeram ou quiseram fazer mais tarde. Com ele, e com outros, de resto, mudei a ideia dos militares que levava da Universidade. Reconhecendo embora que a desconsideração dos militares de carreira feita por nós era justa em relação a muitos, em relação à maioria daqueles com quem lidei de perto, não era. Havia na classe militar pessoas de elevada craveira intelectual e humana, e Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho era uma delas, e das melhores.

Que depois tenha sido capturado por forças radicais, só tenho a lamentar. Mas embora eu não tenha estado, nem de longe nem de perto dentro do processo judicial, custa-me muito a crer que ele tenha sido responsável pelos atentados que as FP 25 levaram a efeito. 
João Boavida

2 comentários:

Ildefonso Dias disse...

O professor João Boavida escreveu um texto dedicado a Otelo Saraiva de Carvalho que respeita o leitor. Separou aquilo que conhece a fundo, por conhecimento próprio, daquilo que não conhece senão superficialmente, e delimitou com consciência as suas deficiências. Não escreveu nada que não fosse necessário. Se houvesse a possibilidade, que não há, de Otelo ler este texto, ele certamente dar-lhe-ia um forte abraço, com aquela humanidade que o senhor lhe conheceu.

João Boavida disse...

Estou convencido que sim, e bem gostaria de lho dar agora, se pudesse. Esqueci-me de dizer que Otelo era uma pessoa de gargalhadas francas e espontâneas, o que é sempre bom sinal e diz muito sobre as pessoas.

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...