sexta-feira, 16 de julho de 2021

DESPEJAR O SACO

Novo texto do escritor Eugénio Lisboa: 

(Publicado, em tempos, na revista LER, parece-me refrescante trazer aqui de novo este acto de coragem de um grande actor).

A grande tentação da velhice é a de se poder, finalmente, despejar o saco. Poder, at last, acabar com as pretensões mais ou menos snobs, mais ou menos provincianas que nos atrapalham a vida. Desapertar o cinto. Respirar de alívio… Mandar pelo dreno abaixo toda a tralha pesada que nos atravanca o espírito. Confessar tudo. Falar, por fim, verdade! 

No Evening Standard de 11 de Abril de 1994, o prestigiado actor inglês John Gielgud, considerado um dos maiores intérpretes de Shakespeare, concedeu àquele jornal uma entrevista, por ocasião de fazer 90 anos. Empertigado na glória engomada de ser o mais nobre intérprete do bardo de Stratford, Gielgud resolveu desapertar o colarinho (e o cinto…) e despejar o saco.

Que detestava Shakespeare; que o achava um chato; que não entendia uma parte substancial da obra do dramaturgo; e que, quando lhe apetecia ir à estante buscar um livro para leitura, nunca lhe ocorria escolher uma obra de Shakespeare. Que o não aborrecessem, pois, com a egrégia importância do bardo: ele, Gielgud, jamais lera, com alguma minúcia, uma obra do autor do Hamlet. Actuara sempre por intuição e era, em suma, completamente frívolo. 

Ali estava, estatelado pelas próprias mãos, o grande guru do teatro de Shakespeare!

Que levou Gielgud àquela confissão dilacerante? Provocação? Coquetterie? Ter o copo cheio até aos bordos? Querer, por fim, despejar o saco? Velhice, o grande momento de se largar lastro? 

“Bastou: preciso falar!”, diz Régio, num verso célebre de um poema do seu primeiro livro de poesia. 

Chegados à idade provecta, muitos sentiram uma irresistível necessidade de se confessarem.

Já contei muitas vezes a história de Lope de Vega, mas não me importo de repeti-la. O grande dramaturgo espanhol encontrava-se no seu leito de morte e, aflito, pediu que lhe trouxessem, não um padre, antes, um médico. Chegado este, o dramaturgo explicou-lhe que precisava de saber, com segurança, que tempo tinha de vida. Precisava, antes de morrer, de fazer uma confissão terrível, mas era uma confissão de tal ordem que não concebia que, depois de fazê-la, pudesse continuar a viver e a encarar o seu semelhante… 

O médico examinou-o com cuidado e informou-o de que, se queria desabafar, o fizesse depressa, porque tinha, efectivamente, muito pouco tempo de vida. “Ah!”, despejou Lope de Vega, com alívio, “o que tenho a confessar é isto: acho o Dante tão chato…” E, logo a seguir, morreu. Conseguira o seu intento: despejar o saco. Desobrigar-se.

Quantos não morrem entupidos, sem terem tido a coragem de se confrontarem com um dilacerante desabafo final? Aqui deixo dois exemplos de personagens que, na hora da verdade, souberam municiar-se com a coragem suficiente para atirarem cá para fora tudo quanto tinham a dizer.
Eugénio Lisboa

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