Roubo o título a Eugénio Lisboa. Ele haveria de compreender e de me desculpar.
2) em reunião plenária da Assembleia da República os mesmos nomes, ainda que não referindo os apelidos.
e que
A natureza das coisas
Roubo o título a Eugénio Lisboa. Ele haveria de compreender e de me desculpar.
"Temos de usar evidência (informação científica), temos de usar os estudos [...]
Depois da avaliação e com a evidência que se vai somando, também em outros países,
faremos essa avaliação e se houver evidência nesse sentido [de proibição],
não teremos problemas nenhuns [em fazê-la] [...].
É natural que no próximo possa haver uma alteração política".
Fernando Alexandre, Ministro da Educação, Lusa/Expresso, 2024.
O Conselho de Ministros do passado dia 3 aprovou um Decreto-Lei que regula a utilização, em contexto escolar, de equipamentos digitais com acesso à internet. Entre eles estão os telemóveis.
Nesse normativo, que há-de sair, o Governo proíbe, a partir do próximo ano lectivo, o uso dos mencionados equipamentos nos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico. Na base da decisão estará um estudo encomendado, em setembro de 2024, pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), ao Centro de Planeamento e de Avaliação de Políticas Públicas (PLANAPP), com o objectivo de conhecer a utilização dos telemóveis nos recintos escolares.
Não consegui encontrar o estudo (nem no sítio do mencionado Centro), mas presumo que seja sério. Reproduzo as principais conclusões (julgo que derivadas da auscultação de directores de escolas onde os telemóveis foram proibidos) que estão disponíveis online:
"... mais de metade das escolas que proibiram o uso de smartphones registaram uma diminuição do bullying e da indisciplina do 2.º ciclo para o ensino secundário, e a esmagadora maioria dos alunos passou a conviver mais nos intervalos, a fazer atividade física e a utilizar os espaços de recreio durante o recreio".
[Luís Afonso dedicou ao estudo um episódio d´A mosca]
Ora, estas conclusões coincidem com as de uma infinidade de outros estudos que têm sido amplamente divulgados, pelo que faz sentido perguntar: o MECI precisava deste para legitimar a proibição? Terá ele maior fiabilidade do que a muito conhecida e reconhecida revisão exaustiva de estudos que Desmurget realizou (ver, por exemplo, aqui ou aqui)? Não bastaria que alguém no MECI recolhesse e sintetizasse informação credível?
Além disso, apesar de os políticos poderem (e em alguns casos deverem) ter em conta estudos científicos para tomarem decisões, a verdade é que há outros factores nesse processo, tão ou mais importantes, que são omitidos.
E porque é que isso acontece? Porque os políticos sabem que as suas decisões serão mais bem acolhidas se forem invocadas "evidências" para as mesmas, e isto apesar da desvalorização do conhecimento científico, que tende a grassar. Não invocam, por exemplo, fundamento filosófico ou ético (que precede sempre o científico) porque a este ninguém está disposto a dar crédito...
Os estudos passaram a ser os "tira-teimas" da política educativa. O raciocínio é algo como: não podemos apresentar uma decisão sem termos um estudo específico; encomenda-se e ele aparece feito; se indica tal, é tal que decidimos, e decidimos bem porque era o que o estudo indicava. Isto é a política a esconder-se atrás de estudos e, eventualmente, a desculpar-se com eles.
Acontece que em Educação (mas não só) há estudos para todos os gostos (e são várias as entidades, com as suas agendas, que os assinam): uns vão num sentido e outros no sentido contrário, pelo que todas as decisões que se tomem podem ser justificadas.
O filósofo espanhol Daniel Innerarity, numa entrevista a propósito do seu livro A sociedade do desconhecimento, nota que a política não deve limitar-se a transladar as verdades científicas para as decisões. Não é verdade que os políticos decidam melhor se derem ouvidos àquilo que especialistas lhes dizem, entre outras razões porque há muitos especialistas que se contradizem entre si.
À margem desta reflexão, e na linha do que tenho dito neste blogue, entendo que a decisão de inibir o uso de telemóveis na escola, está certa. Mas isto se partirmos do princípio que os alunos vão à escola para desenvolverem as suas capacidades, para serem educados.
“Há um interesse global em estupidificar as pessoas”
1.
No final do século passado, "foi êxito estrondoso na Alemanha" o livro do professor de literatura Dietrich Schwanitz intitulado Cultura — tudo o que é preciso saber, tradução portuguesa de 2004, edições D. Quixote. Logo a abrir, numa "Introdução sobre o estado das escolas", o autor, lembrando o naufrágio de Robinson Crusoe, escreve:
"No que à cultura diz respeito, encontramo-nos na situação de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos determinação e persistência suficientes para nos reorganizarmos."
E continua:
"O ensino transformou-se num reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objetivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma."
2.
O escritor Afonso Cruz, no seu mais recente livro, sugestivamente intitulado O vício dos Livros II (Companhia das Letras, Maio de 2025), reflecte, em textos curtos, sobre os problemas inerentes à relação entre os livros e os leitores, na procura de resposta a questões: como tornar a leitura apelativa? como levar os jovens a ler? como levar os adultos a ler? O escritor deve escrever para o leitor?
São questões de sempre que estão intimamente ligadas a outras — literacia, conhecimento, educação e cultura. É na escola que tudo começa...
Num desses capítulos, o autor, cita John Carey, professor emérito de Literatura Inglesa, que num livro publicado em 1992, no qual analisa a relação entre a literatura e as massas entre 1880-1939, escreveu:
"Os intelectuais não poderiam, evidentemente, impedir a alfabetização das massas. Mas podiam impedi-las de ler literatura, tornando-a extremamente difícil de ser compreendida — e foi isso que fizeram. O início do século XX assistiu a um esforço deliberado, por parte da intelectualidade europeia, de excluir as massas da cultura. Em Inglaterra, o movimento ficou conhecido como modernismo. Noutros países europeus, recebeu nomes diferentes, mas os ingredientes eram essencialmente os mesmos, revolucionando as artes visuais e também a literatura. O realismo do tipo que se supunha que as massas apreciavam foi abandonado. O mesmo aconteceu com a coerência lógica. A irracionalidade e a obscuridade foram cultivadas."
Os escritores não estavam sozinhos... Este elitismo faz parte das políticas culturais da época e de uma determinada definição de cultura, defendida e apoiada pelas determinações oficiais, em termos de educação, de divulgação do livro. Cultura era, então, a alta cultura... Havia, assim, os intelectuais cultos e o povo inculto.
3.
Lembremos:
— Entre nós, o Estado Novo, criou, em 1936, o Instituto Alta Cultura, designado Instituto para a Alta Cultura a partir de 1952, com o fim de apoiar a investigação científica e a divulgação da cultura portuguesa.
— Este Instituto só foi extinto em 1976. Deixou de ter funções na área da Investigação Científica, funções que passaram para o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), agora Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), um I.P. que iniciou a sua actividade em 1997.
Perdeu-se, entretanto, o termo "Cultura", ficando apenas "Investigação"...
Mas os Programas de Governo iam manifestando a sua preocupação com as questões culturais:
— no primeiro governo após o 25 de Abril de 74, havia o Ministério da Educação e Cultura
— em 1983, surge, pela 1.ª vez, um Ministério da Cultura.
E a CULTURA foi passando de Secretaria de Estado a Ministério, e vice-versa.
Significativamente, ou não, no actual governo a designação passou a ser "Ministério da Cultura, Juventude e Desporto".
Isaltina Martins
Não sei se entendi bem: há poucos dias, o Ministro da Educação, Ciência e Inovação, reconheceu a impossibilidade de saber quantos alunos, quantas turmas não tiveram aulas, na escolaridade obrigatória, por falta de professores nos últimos dois anos lectivos. Isto depois de, antes, ter apresentado números que validavam o sucesso de medidas tomadas pela sua equipa, números que se viu não corresponderem à verdade. A verdade, tão óbvia que é, parece querer esconder-se...
Talvez haja quem se recorde de, nos anos oitenta do passado século, certa professora, chamada Maria do Carmo Vieira, e os seus alunos do 11.º ano da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, terem redigido uma carta aberta em defesa do café Martinho da Arcada, frequentado por Fernando Pessoa e que, à altura, estava destinado a "mudar de ramo". A carta deu origem à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), cujas solicitações tiveram acolhimento político e governamental (ver aqui e aqui).
O texto acima é formado por extractos de uma breve crónica de Fernando Alves, na qual incluiu extractos do discurso de Lídia Jorge, preparado para o passado dia 10 de Junho. Tanto o radialista como a escritora tiveram o cuidado de notar que os elementos particularmente inquietantes aqui registados acompanham a aventura humana, mas há momentos em que eles põem em causa essa mesma aventura. Aquele em que estamos é, por certo, um deles. "O que passará a ser o humano?" num futuro próximo ou já neste presente?
Por A.M. Galopim de Carvalho
Tenho dias em que o espelho da casa de banho e, sobretudo, o corpo físico me dizem, sem rodeios, os anos que já vivi. Não tenho qualquer problema em falar sobre um fim que se aproxima. Sinto-o, serenamente, todos os dias, como a areia a fugir por entre os dedos. Quero e procuro festejar a vida em felicidade e é neste sentimento que, antes que seja tarde, faço questão de deixar a todos os que amo, esta reflexão com o sabor de uma despedida natural, racional, tranquila e, direi mesmo, sorridente.
Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar e trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já disse tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm Domingos nem feriados, nem férias) em Blogues, jornais online e, em especial, no Facebok, para mais de 40 000 seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância e me encoraja a continuar.
Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.
Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento mais dois prestes a sair, Os Homens não Tapam a Orelhas, em segunda edição, com prefácio do General Pedro Pezarat Correia, e Por Caminhos de Pedra Solta, com prefácio de Helena Roseta.
Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei não irei concluir e, isso, sim, já me incomoda. E esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho.
Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: A Professora, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68, e Do Laboratório à Cozinha, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página no Facebook.
Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida.
Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape.
Tenho em mãos o que se deverá intitular Nós e as Pedras, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal, dá sabor aos meus dias.
Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toda a documentação escrita e fotográfica existente e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras”.
Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas…
Todavia, sempre disse, escrevi o mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade."
Lisboa, dia de São João de 2025
Jeff Seibert (Ex-produtor executivo do Twitter). Estamos aqui em Silicon Valley, o centro do ecossistema tecnológico, a casa das grandes empresas tecnológicas mundiais e a sede da inovação tecnológica nas últimas décadas. Estou no setor da tecnologia há quase 20 anos. Criei três empresas diferentes e fui diretor de produtos de consumo no Twitter. Percebi que não havia alternativa. Deixei o Twitter e jurei nunca voltar a trabalhar numa empresa baseada em anúncios porque não queria roubar o tempo das pessoas. A partir de meados da década de 2000 em Silicon Valley começaram a perceber que era possível aplicar truques e técnicas de psicologia social para tornar as aplicações ainda mais viciantes. E começou a haver aulas em Stanford sobre como o fazer. Os funcionários destas empresas tornaram-se especialistas nisto.
Anne Lemke (Psiquiatra responsável pela Unidade de Medicina Dual no Diagnóstico Clínico de Dependências na Universidade de Stanford): Essas empresas contrataram neurocientistas que têm um conhecimento elevado sobre os padrões de recompensa e aplicam esse conhecimento para manter as pessoas agarradas. E fazem-no de muitas maneiras. O constante e interminável scroll é uma delas, porque nunca chegamos a sentir que já terminámos.
Jeff Seibert. A economia da atenção está basicamente a tornar-nos num produto. O que estas empresas estão realmente a vender é a nossa atenção. Um algoritmo é uma série de instruções que os computadores seguem com um certo objetivo. O algoritmo subjacente aos produtos das redes sociais está predefinido com o objetivo de ser o mais lucrativo possível.
Carissa Véliz (Doutorada em Filosofia pela Universidade de Oxford e autora de Privacidade é Poder”). E esse é um dos problemas que estamos a enfrentar, o facto de estes algoritmos não serem concebidos para melhorar a qualidade de vida das pessoas. São concebidos para fazer as empresas enriquecer e para tornar os jovens dependentes.
Jeff Seibert. O conteúdo (…) que as novas plataformas oferecem é cada vez mais simples. O Twitter usa texto e isso é demasiado difícil, é preciso energia para escrever e ler. Depois o Instagram é fotografia, é mais fácil de tirar e ver. E quanto ao vídeo? O Snapchat lançou vídeos de dez segundos. Agora, com o TikTok, é um fluxo interminável de conteúdo em vídeo. É tão hiponotizante que se torna muito atrativo para as crianças.
Anne Lemke. O vídeo vai diretamente para o nosso córtex visual. Combinando-o com música estimula-se o nosso sistema límbico ou cérebro emocional. Combinando estas coisas (…) temos uma droga muito potente e muito ativa nas nossas mãos. E esta nova droga digital chama-se TikTok. E ao contrário da cocaína que acaba, o TikTok é infinito.
Jeff Seibert. Esses algoritmos prestam atenção a tudo. O conteúdo das pesquisas, as fotografias em que clica, ao tempo que olha para essas fotografias. Tudo, cada interação é cuidadosamente monitorizada, registada e utilizada pelo algoritmo (…). Estão a tentar encontrar formas de cativar o mais cedo possível as crianças para que fiquem obcecadas por estas plataformas. Preocupa-me muito que as crianças cresçam a ver estas plataformas. A maioria das pessoas que conheço das tecnologias não permitem que os seus filhos passem tempo em frente aos ecrãs.
Está disponível na RTP Play o documentário Young Addictions, que foi dirigido por Alejandra Andrade e Tomás Ocaña, e escrito por Mónica Palomero. Nele recolhi mais uma contribuição, a somar a outras que disponibilizei aqui e aqui, para ilustrar um problema ético de primeira grandeza e de escala global para o qual continuamos cegos, incluindo aqueles de nós que têm responsabilidades educativas.
Refiro-me às estratégias das grandes empresas tecnológicas para tornar os jovens e, mais recentemente, as crianças dependentes dos ecrãs, ao mesmo tempo que os seus donos e funcionários colocam os seus filhos em escolas onde eles não entram.
Essas escolas, cuja imagem de marca é a pedagogia Waldorf, encaixam na ideia comum de escola tradicional e para pobres: salas de aulas convencionais com as mesas dos alunos viradas para a secretária do professor e para o quadro de giz; livros, papel, lápis e outros recursos que se podem manusear; espaço exterior de terra e verde; experimentação de ofícios e artes manuais.
Mas não é só a escola que veda o acesso a ecrãs, também as amas têm de o fazer.
Mais recentemente, a China limitou dentro de portas, para a sua populaçáo o uso de uma rede social que criou, incentivando-a fora.
Passo a palavra a alguns dos intervenientes que participaram no documentário
Em 2017 enquanto os gurus da tecnologia admitiram proibir as crianças de usar ecrãs, doaram 300 milhões de dólares à Administração Trump para equipar tecnologicamente as escolas New York TimesRobin LeGrand (Diretora da Nanny Connection). Ganhei protagonismo graças aos trabalhadores tecnológicos de Silicon Valley. Eles tendem a ser muito restritivos relativamente aos dispositivos tecnológicos, tanto que no contrato que fazem com a ama há sempre uma cláusula restritiva (…). Estão mais preocupados porque conhecem as coisas viciantes que acompanham os dispositivos. Têm câmaras em casa para poder vigiar tudo, o que também consta no contrato (…). Considero controverso que os funcionários da indústria tecnológica não permitam que os seus filhos usem os dispositivos que desenvolveram. Se sabem que o uso pode ter consequências para os filhos, porque é que estão a desenvolver estas aplicações e dispositivos?
A transformação do currículo escolar, sobretudo a partir da última década do passado século, assenta em pressupostos (aparentemente) simples. Entre eles contam-se os seguintes:
1) ele, o currículo, é demasiado "obeso", "gordo", "comprido"... em termos de conteúdos disciplinares pelo que se torna necessário centrá-lo no fundamental, no essencial (leia-se mínimo), até porque, nas palavras de um alto dirigente da OCDE na área da educação escolar, "o google sabe tudo"; aos alunos cabe "pesquisar" por lá e "aplicar" o que recolherem...;
2) o núcleo do currículo deve ser a "área de cidadania", onde se colocam as emoções, o bem-estar, a felicidade. Logo, a selecção das disciplina e dos seus conteúdos não se prende com o "valor que têm por si mesmos", mas pela funcionalidade que se lhes vê para desenvolver "competências de cidadania";
3) e diz-se serem as STEM ou STEAM (ciência, tecnologia, engenharia - artes - e matemática), requeridas no mercado de trabalho, que mais concorrem para tal fim porque podem conduzir ao "sucesso". As humanidades (a cultura e línguas clássicas, a história, a literatura, a geografia e as artes, em geral), tidas como uma lamentável perda de tempo, são acantonadas, reduzidas, extintas...
Estes pressupostos têm feito "engordar" a "educação para a cidadania", prevendo-se que assim continue. Em Portugal, aproxima-se dos vinte domínios (ver aqui).
Neste ponto, devemos colocar uma pergunta: que ideia de educação para a cidadania está subjacente à mencionada transformação?
Levando-nos ela para terrenos movediços e sem fim à vista, perguntemos de modo mais modesto: é possível que os alunos se pautem por valores (éticos) sem saberem história e geografia, sem conhecerem as raízes da cultura ocidental, sem lerem de modo compreensivo textos que veiculam dimensões e perspectivas diversas da vida, sem terem explorado a condição humana através da literatura, do cinema, da pintura?
Eu diria que não, pelo menos com a substância que esses requisitos permitem, ainda que tenha de reconhecer que, mesmo cumpridos, não são garantia da acção ética. Esta resposta levanta pelo menos três objeções:
1) E, as ciências? Não se pode menosprezá-las.
Claro que não: as várias disciplinas, se encaradas na sua essência e se devidamente exploradas, podem concorrer para essa acção consciente no mundo. E, reconheçamo-lo, as ciências (não as STEAM) também não estão de boa saúde, porque têm sido aligeiradas, desvirtuadas, subjugadas a uma ideia difusa de cidadania, que as secundariza, as torna objectos ao seu serviço;
2) Os valores éticos são universais? Se sim, isso é problemático pois "cada aluno tem o direito de "construir os seus próprios valores".
O dissenso é real pois nos mesmos documentos curriculares em que são enunciados valores éticos (sim, universais), como democracia e tolerância, consta essa afirmação subjectivista. Não parece, no entanto, muito credível que as crianças e os jovens consigam "construir" alguma coisa - e muito menos tais valores - sem educação deliberada;
3) De que adianta saber, por exemplo, muito de história se não se for um "bom cidadão".
Como acima notei, bem sabemos que não há uma relação directa entre o que se sabe e o que se faz, mas isso não significa que não haja alguma relação. Por outro lado, não será por deixarmos de ensinar história ou outra disciplina consagrada que obteremos "bons cidadãos".
O que acabo de dizer foi escrito, no século XVI, por um jovem com menos de vinte anos que se chamava Étienne de La Boétie. O livro que deixou e que Montaigne, seu cunhado e amigo, publicou após a morte, que o levou precocemente (Discurso sobre a servidão voluntária), é uma incisiva e corajosa crítica aos governantes que impõem interesses e loucuras próprias, arrastando aqueles que deveriam proteger, os quais, por diversos motivos, se tornam voluntariamente servos.
Há momentos, como os que atravessamos, em que, lamentavelmente, esta reflexão ganha particular actualidade. Por isso, como educadores, temos o dever de, primeiramente, indagar se a condição de servidão voluntária nos toca e o que precisamos de fazer para honrar a liberdade que nos assiste e, acima de tudo, levar os alunos, que estão ao nosso cuidado, a serem capazes de reconhecer tal condição e libertarem-se dela.
Atenção que liberdade, na vida pública, em comunidade significa ter a possibilidade de escolher o que é bem, o que é bom para todos. Este viver na cidade não se pode operacionalizar em soft skills treináveis e demonstráveis, antes exige conhecimento disciplinar alargado e profundo, trabalhado na escola em continuidade, com seriedade e empenho.
E, mesmo assim, os tiranos hão-de continuar a surgir pelos tempos fora. É que eles fazem parte do mais atávico que mora em nós e que, tanto quanto sabemos, só pela educação conseguimos superar.
_______________________________________
Nota: Sobre o livro citado, pode consultar, neste blogue, um texto de João Boavida (A desejada servidão, publicado em 2011 - aqui) e um meu (Assim são os tiranos, publicado em 2022 - aqui).
Uma iniciativa do Ministério da Educação designada por A Voz dos Alunos, surgida na década passada, teve dois momentos altos: a Conferência Currículo para o Século XXI: A Voz dos Alunos, em 2016, e o Dia do Perfil do Aluno, em 2018. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que, no seu projeto para o horizonte 2030, destaca a student agency, louvou-a muitíssimo e deu-lhe visibilidade em Paris.
O consenso pareceu-me, à altura, generalizado (ver aqui, aqui, aqui): a opinião livre dos alunos era dita como nada menos do que crucial para renovar as orientações para a educação no mundo e para aferir a legislação nacional. O grande entusiasta da iniciativa foi um secretário de estado da educação que se tornou ministro da pasta. As escolas aderiram e puseram-na em marcha, a comunicação social transmitiu-a sem fazer perguntas incómodas e a academia não lhe prestou grande atenção.
Nesta década, o Conselho Nacional de Educação publicou, em 2021, uma recomendação com o título A voz das crianças e dos jovens na educação escolar e, no site da Direção-Geral da Educação, vejo anunciada a 2.ª edição do Projeto Voz dos Alunos, que terá decorrido entre finais de Novembro de 2024 e Maio de 2025. A livre exposição de ideias e debate de opiniões mantêm-se como pressuposto básico.
Acontece que o referido secretário de estado e, depois, ministro publicou recentemente um longo artigo no jornal Expresso (ver aqui, está em acesso aberto), no qual se mostra apreensivo, indignado com opiniões que alunos do segundo ciclo do ensino básico expõem numa prova de avaliação nacional, alegando serem influenciadas por um certo clima político que se adensa no país,
Passando por cima da questão delicada que é a revelação de uma pergunta constante nessa prova bem como do uso de respostas de alunos sem o devido consentimento, e não podendo deixar de reconhecer que as transcrições são, de facto, muito preocupantes, a verdade é que "dar voz" aos alunos sem delimitação de barreiras ou estabelecimento de regras (barreiras e regras académicas, entenda-se) não é, ao contrário do que possa parecer, um procedimento educativo; é, realmente, o contrário pois faz passar a mensagem de que tudo se pode dizer no espaço público e, mais, tudo o que se diz tem o mesmo valor e legitimidade.
A solicitação da opinião dos alunos, sem mais, porque destacada em documentos curriculares, incluindo manuais, e solicitada em provas de avaliação passará, presumo, para o ethos pedagógico. Tenho visto, nesses documentos e provas, tornar-se abundante e soberana, valerá para justificar tudo o que os alunos digam - pois se é opinião... -, mesmo na ignorância ou negação do conhecimento que deveriam ser levados a aprender na escola.
Deduzo que, no caso, nem haveria conhecimento concreto a avaliar pois a pergunta em causa seria um "apelo à elaboração de um texto narrativo e à criatividade dos alunos". E eles (ou alguns deles) "criaram", que é como quem diz, reproduziram ipsis verbis o que o "contexto social" e as "redes sociais" lhes incutem ininterruptamente, sem qualquer respeito pela sua condição de menores, com direito a serem educados. E é isso que se sobrepõe ao que a escola ensina ou tem obrigação de ensinar.
Há, sem dúvida, um mérito no artigo em causa: levar-nos a indagar a efetiva importância da escola neste preciso momento. De modo mais claro, a importância que tem na formação humanista, tão destacada no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.
"O ódio cresce em escolas", escreveu um ex-ministro da educação (ver aqui). Deve estar informado, confio na sua avaliação, até porque ela é corroborada por professores sensatos que conheço.
Mas, há que perguntar: seria de esperar que o ódio crescesse nas escolas com tantos domínios de Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento previstos para aí serem tratados, desde a educação de infância até ao final da escolaridade obrigatória? São dezassete domínios ou mais, em cujos documentos curriculares abunda a referência a valores como a Paz, a Tolerância, a Democracia, a Empatia...
Para perceber melhor o espírito deste domínio, pode o leitor consultar um webinar explicativo aqui (que tem publicidade incluída!)
O texto abaixo reproduzido, escrito pelo jovem Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) e constante no seu Oratio de Hominis Dignitate, toca uma indignidade que atravessa os tempos: a secundarização, subalternização ou, mesmo, desconsideração do "valor em si" do conhecimento, valor que tem "por si mesmo", independentemente do valor utilitário que também tenha ou possa ter. E não é aos príncipes (com o poder de governar) que atribui tal indignidade, mas aos próprios filósofos (cujo dever é amar o conhecimento). Estes, sim, têm uma responsabilidade directa na preservação desse valor, mas, cedendo a tentações muito humanas, nem sempre cuidam dela com deveriam...
Se olharmos para os discursos dissonantes relativos à educação escolar, percebemos a actualidade deste breve texto, tendo de reconhecer que uma parte do que nele consta foi muito aperfeiçoada tendo-se tornado a "cartilha vigente".
O artigo abaixo identificado, que se encontra aqui, já não é propriamente recente. Na voragem da publicação académica, textos com mais de cinco anos estão, por princípio, "fora de prazo", podem ser referidos, mas só em circunstâncias excepcionais.
A verdade é que este artigo, publicado em 2016, mantém-se actual, esclarecendo, em poucas páginas, os passos que já demos e estamos a dar no sentido de ajustar os sistemas educativos públicos à "teoria do capital humano". Essa teoria que vingou em todos os continentes, que se entranhou em todas as instituições e dita todas as políticas ou, pelo menos, assim parece, constituiu-se no modo prevalecente de pensar a vida.
Cabe aos educadores, professores e formadores fazer o que Karl Popper sugeriu: discuti-la e conjecturar as suas consequências para os educandos, para o mundo...
"A teoria do capital humano tem origem desde as ideias desenvolvidas por economistas como Adam Smith (1776), na obra A Riqueza das Nações, e por Alfred Marshall (1920), no livro Os princípios econômicos do mais valioso investimento dos capitais, os seres humanos, sendo melhor estruturada na Escola de Chicago com os teóricos da economia Gary Becker, Jacob Mincer e Theodore Schultz.
Theodore Schultz, renomado professor da Escola de Chicago (1902-1998), foi quem cunhou a expressão e expôs sua teoria na década de 1960. A nova ideia de capital compreenderia então as aptidões e habilidades pessoais, que podem ser características naturais intrínsecas da pessoa ou adquiridas no decorrer do tempo. Isso levaria o indivíduo a auferir vantagens e a tornar-se mais produtivo. A teoria desenvolvida por Shultz dispõe de uma abordagem que nos permite identificar alguns pontos de convergência entre o discurso neoliberal e o discurso acatado e consolidado no âmbito da esfera educacional (...).
O termo capital humano afirmou que a melhoria do bem-estar dos menos favorecidos não dependia da terra das máquinas ou da energia, mas principalmente do conhecimento. Essa teoria sugere considerar que todas as habilidades são inatas ou adquiridas e devem ser aperfeiçoadas por meio de ações específicas que levam ao enriquecimento do capital intelectual. Desta forma, cada pessoa seria capaz de aumentar seu conhecimento através de investimentos voltados à formação educacional e profissional de cada indivíduo.
Portanto, o aumento do capital humano poderia representar as taxas de produtividade do trabalhador, favorecendo o desenvolvimento de um país.
Além de proporcionar o bem-estar individual, tal teoria também afirma que esse seria o caminho para o desenvolvimento das nações: investir em capital humano. Essa teoria teve impacto no então denomina-do Terceiro Mundo e apareceu aqui como alternativa para reduzir as desigualdades sociais.
Dentro dessa perspectiva, Schultz (1973) deixa claro (...) que, para ocorrer o crescimento do capital humano, era preciso a iniciativa do poder público, detentor da autoridade necessária para provocar um planejamento educacional que atendesse a tais objetivos. Ele ainda acreditava que mesmo que houvesse iniciativas privadas seriam em segunda ordem, pois atenderiam a um público mais reduzido e não estaria disponível a todos.
Neste processo, os professores assumem um papel central, como ‘peças fundamentais’ para moldar, configurar e ajustar os estudantes ao desenvolvimento econômico."
"Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o desemprego.
Seja como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a propaganda.
Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva – ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media.
Os poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um cidadão, pode despertar uma consciência individual. A Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de moda por alguma razão superiormente determinada foi.
Pensar pode ser um perigo. Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias decisórias.
Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em Portugal. E não só… o que é pior…
A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido com maior ou menor habilidade."
Por estes dias, realiza-se em Portugal MAIS uma "grande conferência" que se diz ser sobre educação, e cujo título é Educação e Transformação: Mobilizar ideias. Inspirar o futuro (ver aqui e aqui). Está anunciada a participação de "especialistas, alunos, educadores e líderes" (continuo a ter dificuldade em perceber o que é, em educação, liderança...).
Apresentando-se o semanário Expresso como media partner (curiosa designação) ou, talvez, impulsionador da mesma (Projeto Expresso), dá-lhe divulgação à sua escala, usando os meios que lhe estão afectos (ver aqui). Não é pouca coisa.
Anuncia este jornal que participarão mais de trinta especialistas, sendo de presumir, pelo título reproduzido abaixo e pelo textos relativos à conferência, que a sua especialidade é em educação escolar.
Roubo o título a Eugénio Lisboa. Ele haveria de compreender e de me desculpar. Dois deputados eleitos , de um partido político reconhecido...