domingo, 28 de abril de 2024

25 DE ABRIL, A CONQUISTA DA LIBERDADE

Texto de António Valdemar, publicado no Jornal do Fundão (número especial dos 50 anos do 25 de Abril):

Um novo ciclo da história, em todos os domínios, uma data simbólica exaltada pelos poetas, escritores, músicos e artistas plásticos. Decorridos 50 anos, qual o cenário que se depara no presente e qual a continuidade no futuro?

O 25 de Abril restituiu a liberdade de informação, de reunião e de crítica. Cerrou as grades das prisões políticas de Caxias, do Aljube e de Peniche. Extinguiu o campo de morte do Tarrafal. Poetas, escritores, músicos e artistas plásticos celebraram esta data histórica que aboliu a censura. O “Jornal do Fundão” foi dos órgãos de comunicação social mais atingidos. Foi suspenso durante seis meses em consequência de um texto de opinião acerca do Grande Prémio de Novela da Sociedade Portuguesa de Escritores.

Na edição de 23 de maio, de 1965, o suplemento literário, a cargo de Alexandre Pinheiro Torres, noticiou os prémios e os membros dos júris. Contemplava o escritor Luandino Vieira, um dos presos políticos no Tarrafal, reaberto pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira. O Jornal do Fundão, além da suspensão, foi multado, a caução aumentou significativamente, sendo exigida a apresentação das provas à delegação de Lisboa dos Serviços de Censura em vez da delegação em Castelo Branco. Entretanto, a Sociedade Portuguesa de Escritores foi encerrada pelo ministro Inocêncio Galvão Teles, titular da pasta da Educação que incluía as áreas da cultura.

A Constituição Política da República, na sequência do 25 de Abril, estabeleceu as regras para a consolidação do Estado de Direito. Ficaram consagrados os objetivos fundamentais para governar em Democracia. Reconheceu as autonomias regionais e deu início à descolonização possível, mas tardia e com as inevitáveis consequências que daí resultaram. Milhares e milhares de portugueses encontravam-se dilacerados com a ferocidade da guerra colonial em três frentes de combate. Dia após dia, intensificaram-se os pressentimentos, as insónias, o espectro da morte, os pesadelos que nunca mais esquecem. José Craveirinha (1922-2003) Prémio Camões da Literatura, com pleno conhecimento de realidade — preso político da Cadeia Central de Machava — retratou a situação que se vivia: 

“Suam no trabalho as curvadas bestas/E não são bestas, são homens, Maria!/ Corre-se a pontapé os cães na fome dos ossos - e não são cães, são homens, Maria!/Pisam-se as pedras na raiva dos tacões/E não são pedras, também não são bichos, são homens, Maria!/Feras matam velhos, mulheres e crianças/ E não são feras, são homens, Maria!/Crias morrem à míngua de Leite/ Vermes nas ruas esperam caridade/E não são crias nem vermes/ São fi lhos dos homens, Maria!/ Bichos espreitam nas cercas de arame farpado/ E também não são bichos, são homens, Maria!/ Do ódio e da guerra/ cresce no mundo o girassol da esperança…”

Era a realidade crua e nua, que espalhou o terror, durante 14 anos, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde e na Guiné. Implantada a ditadura militar, em 1926 e a ditadura autoritária de Salazar em 1932, o regime instituiu a censura prévia à Imprensa, a polícia política e os tribunais especiais que viriam a denominar-se Tribunais Plenários constituídos por magistrados de carreira.

Multiplicaram-se os protestos que o poeta João de Barros (1881-1960) assinalou nestes versos: “Que voz repele, e afronta, e cala /Este tumulto de ódios cegos, /Que ruge e clama e ofende em vão?”. Ou a Ode à Liberdade de Jaime Cortesão (1884- 1960) que resumiu o repúdio ao “ódio fanático dos bonzos”, o “ciúme vil dos fariseus”, para louvar “a cada novo dia e duro preço”, o “sopro e a lei da criação”. Era a ambição irreprimível para transpor a violência e estabelecer uma cultura de tolerância e diálogo.

Contudo, passava, de mão em mão, numa cópia datilografada, em papel químico, outro poema de Jaime Cortesão visando diretamente Salazar: 

“Por ti, pelo teu ódio à Liberdade, à Razão e à Verdade,/ a tudo o que é viril, humano e moço,/ a fome e o luto apagaram os lares/ e os homens agonizam aos milhares/ no exílio, no hospital, no calabouço./Por ti raivoso abutre, cujo apetite sôfrego se nutre/ de lágrimas, de gritos, de aflições/ gemem nas aspas da tortura/ ou baixam em segredo à sepultura/ os mártires que atiras às prisões.

A este claro Povo, herói dos povos,/ que deu ao mundo mundos novos,/ mais estrelas ao Céu, mais luz ao dia;/ a este livre e luminoso Apolo/ atas as mãos, os pés e o colo,/ e encerras numa lôbrega enxovia./Falas do Céu, como um doutor no templo/ mas tu encarnação e vivo exemplo/ da hipocrisia vil dos fariseus,/ pelos sagrados laços que desunes,/ pelos teus crimes, até hoje impunes/ roubas ao mesmo crente a fé em Deus.

Passas... e mirra a erva nos caminhos,/ as aves, com terror, fogem aos ninhos,/ e ao ver-te o vulto gélido e felino,/ mulheres mães, lembrando os lastimosos/ casos de irmãos, de filhos ou de esposos,/ bradam crispadas as mãos: Assassino! Assassino! /Passas... e até os velhos, cujos anos/ têm costumado a monstros e tiranos/ dizem, com a boca cheia de ira e asco:/ Sobre esta Pátria mísera que oprimes,/ jamais alguém foi réu de tantos crimes.

Vai-te! Basta de vítimas! Carrasco!/ Passas... e ergue-se, vai de vale a cerro/ dos hospitais, do fundo das masmorras/ às inóspitas plagas do desterro,/ um coro de ais, de imprecações, de morras. São multidões que rugem num só brado:/ Maldita a hora em que tu foste nado!/ Que se malogre tudo quanto almejas;/ Conturbem-se os teus dias de aflição;/ Neguem-te as fontes água, a terra pão/ e as estrelas a luz - Maldito sejas!”

A tortura da escrita

O escritor Ferreira de Castro (1898-1974) consagrara-se na criação literária e também exercia uma intensa atividade cívica. Concedeu ao Diário de Lisboa, a 17 de novembro de 1945, uma entrevista publicada ao abrigo dos vinte dias da chamada «liberdade sufi ciente». Denunciou as feridas e as pústulas que alastravam nas áreas políticas, culturais e sociais. Mas, de imediato, observou: «A falta de liberdade de pensamento é a causa fundamental, a única mesmo, de tudo quanto se tem passado. O resto são simples consequências».

Citou exemplos: 

«Desde 1935 em diante, uma obra como «Os Lusíadas» talvez não pudesse ser publicada (…). A primeira ou uma das primeiras circulares da censura, enviada aos jornais em 1926, e que eu li, proibia, entre outras coisas, a transcrição de páginas de Alexandre Herculano, de Ramalho Ortigão, de Eça de Queiroz e, se bem me lembro, de Oliveira Martins. Herculano está no panteão e se os outros três escritores não estão lá, não é porque não o mereçam também.»

Aludiu a três casos concretos: «Aquilino Ribeiro, a pedido do seu editor, que temia represálias, mandou um livro seu à censura. E a censura proibiu o livro de Aquilino. Alves Redol, tem outro livro também proibido. José Régio, viu um romance seu retirado da circulação»

O censor imaginário

«Escrever assim — continuou Ferreira de Castro — é uma verdadeira tortura. Porque o mal não está apenas no que a censura proíbe mas também no receio do que ela pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor imaginário sobre a mesa de trabalho — e essa invisível, incorpórea presença tira-nos toda a espontaneidade, obriga-nos a mascarar o nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela obsessão: «Eles deixarão passar isto?».

«O regime ditatorial de Salazar — salientava noutro passo — construiu estradas, portos, edifícios escolares, mesmo hospitais, tão bons como os de Nova York. Mas, ao mesmo tempo, tirou (aos portugueses) toda a liberdade de exprimir a sua opinião. Persegue-os, deporta-os e deixa-os serem injuriados. Criou (estávamos em 1945) durante 20 anos, um regime de medo».

«Não sou político» – insistia Ferreira de Castro – «Sou apenas um intelectual que deseja, que luta por uma Humanidade menos infeliz do que ela é. Mas confesso que não compreendo esse patriotismo que não cessa de clamar, perante os povos livres do Mundo, que nós, portugueses, somos tão inferiores a eles que só podemos viver como um rebanho de escravos».

O poeta Sidónio Muralha, (1920-1982) não podia sufocar este grito 

“Já não há mordaças, nem ameaças,/ nem algemas que possam impedir/ a nossa caminhada,/ em que os poetas são os próprios versos dos poemas”. O mesmo aconteceu com o poeta Joaquim Namorado (1914-1986): “Abafai-me os gritos com mordaças,/ maior será a minha ânsia de gritá-los; /amarrai-me os pulsos com grilhetas,/ maior será a minha ânsia de quebrá-las;/ rasgai a minha carne, triturai os meus ossos,/ o meu sangue será a minha bandeira;/ meus ossos o cimento de uma outra humanidade,/ que aqui ninguém se entrega./ Isto é vencer ou morrer!”.

Do outro lado do mar, Jorge de Sena (1919- 1978 ) enviava este poema repleto de ansiedade, de inquietação e de algumas réstias de esperança: 

«Eu não posso senão ser/ desta terra em que nasci./ Embora ao mundo pertença/ e sempre a verdade vença,/ como será ser livre aqui, / não hei-de morrer sem saber./ Trocaram tudo em maldade,/ É quase um crime viver./ Mas, embora escondam tudo/ e me queiram cego e mudo,/ Não hei-de morrer sem saber/ Qual a cor da liberdade».

O 25 de Abril interrompeu 50 anos de ditadura imposta por Salazar e continuada por Marcelo Caetano. O testemunho de José Cardoso Pires (1925-1998) assistiu ao que se passou e transpôs para a literatura nestes parágrafos de referência: 

“A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparamos com colunas de militares inundadas de sol; o povo, logo a seguir, muito povo, tanto que não nos cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo exatamente não sabendo para onde, mas de certo para a Liberdade”.

“Sem medo, nem roteiro” – acrescenta José Cardoso Pires – "fizemos desta Lisboa um horizonte aberto, uma cidade de cravos nas pontas dos fuzis e e havia um arcanjo de pedra a guardar-nos a cada esquina. Era o estrondo final da catedral do medo, cinquenta anos, meio século, vencidos num só dia, e para onde se olhasse só se viam lágrimas e cravos e abraços que passavam de pessoa em pessoa, de rua em rua e se prolongavam de Norte para o Sul, até ao mar.”

O Movimento das Forças Armadas que surgiu na madrugada do 25 de Abril, transmitiu-se com a poesia e a música de José Afonso. O inventário da contribuição da música e dos seus intérpretes tem sido analisado por Nuno Pacheco que evidencia o significado da intervenção desempenhada, logo de início, por José Afonso, Carlos Alberto Moniz, Fernando Tordo, Carlos Mendes, entre muitos outros.

Um pouco por todo o país, os cravos vermelhos logo se transformaram num dos símbolos vivos da revolução. Os poemas de Manuel Alegre (1936) converteram -se na voz da nossa própria voz: 

“Foram dias, foram anos a esperar por um só dia./ Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía/ Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia/ Na esperança de um só dia. Foram batalhas perdidas. Foram derrotas e vitórias./ Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)/ Mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)/ Por um só dia vivida./ (…) Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantávas/ A canção que se vestia com bandeiras nas palavras:/ Armas que o tempo tecia. Minha vida, toda a vida/ Por um só dia vivida”.

Sophia de Mello Breyner (1919-2004) num poema ilustrado por Vieira da Silva, acerca do 25 de Abril escreveu: 

“Esta é a madrugada que eu esperava /O dia inicial inteiro e limpo /Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo.”

Mas é ainda noutro poema que Sophia enalteceu Salgueiro Maia (1944-1992), o militar que permanece como símbolo entre os militares de Abril: 

“Aquele que na hora da vitória/respeitou o vencido/ Aquele que deu tudo e não pediu a paga/ Aquele que na hora da ganância/ Perdeu o apetite/ Aquele que amou os outros e por isso/ Não colaborou com a sua ignorância ou vício/ Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»/ como antes dele mas também por ele Pessoa disse”.

Enquanto vivo, Fernando Salgueiro Maia pertenceu aos «heróis marginalizados». Ficou sepultado, em campa rasa, no cemitério de Castelo de Vide. Mas Salgueiro Maia faz parte da História: 

“A figura vai ganhando relevo com o tempo, à medida que sopra o vento, expulsa as folhas caídas e a rocha firme fica despida e limpa, os alicerces sobre os quais se levanta o país, um Portugal livre, dono do seu destino, enriquecido por uma revolução na qual a união do Povo com as suas Forças Armadas deram uma lição ao mundo”.

A grande surpresa

Mas, juntamente com as manifestações entusiásticas da maioria da população, acentuou-se o ceticismo militante e impetuoso de Miguel Torga (1907-1995). Proferiu em Arganil, num encontro do Partido Socialista um discurso que deixou todos, no mínimo, surpreendidos: 

“Hora angustiosa que nada fazia prever em Abril de setenta e quatro, quando uma manhã de esperança raiou no espírito de todos nós. Depois de meio século de negrura, o sol da liberdade brilhou inesperadamente em Portugal. E foi, como sabeis, uma festa universal. Depressa, porém, a tristeza voltou”.

“A palavra revolução – advertiu Miguel Torga – acolhida com benevolência até nos ouvidos, mais refractários, em vez de, como outrora, significar uma rotura promissora e fecunda, passou a evocar apenas a desordem à solta nas ruas, e o arbítrio e a prepotência, ensarilhados na parada dos quartéis. Creio que nenhum português consciente esquecerá até ao fim dos seus dias estes dois anos aziagos. Enganada na sua boa fé, a alma da Nação foi durante eles indelével e dolorosamente tatuada por todos os estigmas da desgraça.”

Já muito depois do PREC e do chamado Gonçalvismo, Miguel Torga também inseriu, no Diário, com data de 2 de janeiro de 1993 mais outro texto que aumentou a nossa perplexidade: 

“Abolição das fronteiras. Livre circulação de pessoas e bens. Ocupados sem resistência e sem dor. Anestesiados previamente pelos invasores e seus cúmplices, somos agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira”.

Contra a entrada na Europa

Para estupefação maior dos seus leitores, já havia escrito, a 11 de maio de 1992: 

“Tenho certo que Maastricht há-de ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária, e, nas próprias assembleias onde prega a boa nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. Só que as grandes potências podem dar-se ao luxo de todos os jogos malabares e safadezas e assinar até tratados ardilosos com abdicações aparentes da sua identidade. E as pequenas não. Se, por leviandade ou megalomania, arriscam um mau passo no caminho da independência, perdem-na de vez. Que é, infelizmente, o que, se o destino nos não acudir com um milagre, nos vai acontecer”.

Insurgiu-se contra o Tratado de Maastricht, que efetivou as bases da União Europeia e que nos permite residir e circular livremente; partilhando valores comuns, interesses primordiais de independência; e instituiu uma cooperação estreita nas áreas da justiça e de assuntos internos, a fim de assegurar a segurança e assegurar a segurança e a proteção dos cidadãos europeus.

A adesão Portugal à Europa, celebrada no cenário emblemático do claustro dos Jerónimos, levou Miguel Torga a mais estas afirmações categóricas: 

“1 de Novembro de 1993 – Entrada em vigor da União Europeia, eufemismo encontrado para nomear o negregado Tratado de Maastricht. Lá estamos, atentos à batuta do novo Bismark impante que tudo vai poder e dominar no seu teutónico quartel monetário. Lá estaremos, infelizmente, na condição de humildes súbditos agradecidos, sem autonomia e sem voz, a beber champanhe comprometidamente, como parentes pobres numa boda de nababos, e a estender a mão ávida, a pedir mais dinheiro para comprar votos. E o ricaço, e os parceiros incautos que arregimentou, prodigamente, abrem os cordões à bolsa. Quem quer bons serviçais, paga-lhes”.

A multiplicação de incógnitas

Que significa tudo isto escrito e reescrito até à exaustão por um escritor e poeta com a responsabilidade de Miguel Torga, diversas vezes indigitado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura? Regressar a um Portugal «orgulhosamente só», tal como proclamava Salazar? A Procuradora-Geral da República emitiu – a 7 de novembro de 2023, data que não se pode esquecer – um comunicado com um parágrafo final, ainda não devidamente esclarecido, e que desencadeou outra realidade política e social.

Os escrutínios alarmantes, os ódios à solta acentuam um quadro político e social suscetível de mais um desgaste eleitoral, com resultados imprevisíveis, e porventura, ainda mais preocupantes. Apesar das incógnitas que enfrentamos, neste momento, qualquer que seja a avaliação, o 25 de Abril e dos ciclos do processo governativo, colocam-nos perante o rosto de um Portugal diferente.

Falta muito para atingir o desejável; mas faltará sempre. Aqui e em muitos outros países livres e democráticos de todo o mundo. 

“Apesar das incógnitas que enfrentamos, neste momento, qualquer que seja a avaliação, o 25 de Abril e dos ciclos do processo governativo, colocam-nos perante o rosto de um Portugal diferente.”

*Jornalista, carteira profissional número UM

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