Espero que num aniversário futuro da Revolução de Abril, além dos discursos políticos, das comemorações sociais e das análises jornalísticas, sem dúvida importantes, possa haver lugar para um debate sereno, honesto e construtivo acerca da responsabilidade que a escola pública tem na preservação e melhoramento do valor que é a democracia, bem como dos valores que lhes associam, com destaque para a liberdade.
É preciso esse debate pois os desvios da escola pública em relação a tal responsabilidade são notórios e, por razões diversas, acentuam-se. Como educadores, ter-nos-emos esquecido que a nossa tarefa é levar, com base em conhecimento substancial, os mais jovens a desenvolverem uma estrutura de pensamento e de relacionamento que lhes permitirá fazer escolhas que serão as de adultos educados. Não quaisquer escolhas, portanto, mas aquelas que traduzem o bem, o bom, o verdadeiro, o certo, o justo...
O educador, sem impor escolhas axiológicas àqueles a quem caberá, no futuro, fazê-las, deverá formá-los para que possam fazê-lo em liberdade, ou seja, por si, de modo deliberado, sem coação. Formar para que possam exercer o livre arbítrio é tudo fazer, como diz Rómulo/Gedeão, para que cada um possa "escolher fatalmente o bem".
O leitor perceberá melhor o que pretendo dizer lendo o belíssimo poema do professor/poeta.
POEMA DO LIVRE ARBÍTRIOHá uma fatalidade intrínseca, insofismávelinerente a todas as coisas e nelas incrustada.Uma fatalidade que não se pode ludibriar,nem peitar, nem desvirtuar,nem entreter, nem comover,nem iludir, nem impedir,uma fatalidade fatalmente fatal,uma fatalidade que só poderia deixar de o serpara ser fatalidade de outra maneira qualquer,igualmente fatal.Eu sei que posso escolher entre o bem e o mal.Eu sei que posso fatalmente escolher entre o bem e o mal.E já sei que escolho o bem entre o mal e o bem.Já sei que escolho fatalmente o bem.Porque escolher o bem é escolher fatalmente o bem,como escolher o mal é escolher fatalmente o mal.O meu livre arbítrioconduz-me fatalmente a uma escolha fatal.António Gedeão, Obra poética, 2001, 211,
11 comentários:
Quem me dera saber o que é o bem, o bom, o verdadeiro, o certo, o justo, para escolher. Nenhuma escola ensina isso. E por muito que goste do poema de Gedeão, na verdade é maniqueísta, são tantas as gradações de luz e sombra entre bem e mal... foram sempre, mas agora temos mais consciência disso. Por isso não sei se concordo com a Helena Damião nas escolhas de adultos educados que elenca.
Há escolas que robustecem o livre arbítrio de um indivíduo - outras, como as escolas EB 1,2,3 + S + JI, não!
Há poucos anos, frequentei uma dessas ações de formação inúteis, onde se têm vindo a derreter milhões de euros, desviados de aplicações, mesmo dentro do vasto campo da educação, que poderiam ter contribuído para o desenvolvimento cultural, económico e social de Portugal. Nessa ação, subordinada ao tema do aquecimento global, meia dúzia de jornalistas ensinavam a meia centena de professores como abordar da melhor maneira esse delicado tema em contexto de sala de aula!
Numa dada sessão, dedicada ao debate das matérias aprendidas pelo professores, uma jovem professora de "físico-química", como atualmente são designadas as ciências físico-químicas, levanta-se, e, perante o auditório, proclama o seu profundo agradecimento aos senhores jornalistas que lhe explicaram que o aquecimento global está relacionado com fenómenos físico-químicos que ocorrem na atmosfera! Evidentemente que, perante tal ausência de livre arbítrio da jovem professora, chamei-a imediatamente à razão, mas ela não me entendeu. Ela vinha de uma formação académica ligeira demais, incapaz de exercer o seu livre arbítrio no âmbito das matérias que estudou para poder ser professora de "físico-química".
O que o Leitor diz é, infelizmente, uma prática que se torna normal: outros profissionais, outros stakeholders entram na escola para substituírem professores, para os ensinarem a ensinar... Estão também na formação contínua para os formar e supervisionar. São jornalistas, empresários, médicos e enfermeiros, actores, etc. Em certos casos justifica-se a sua colaboração, mas não em casos como o que refere, nem de modo sistemático. Sendo frágil a formação inicial de professores (e a contínua não o é menos), presumo que tal prática se amplie e robusteça. Cumprimentos, MHD
Respondendo ao Leitor Anónimo 26 de abril de 2023 às 01:13: Na verdade não sabemos sem sombra de dúvida o que é o bem, o bom, o verdadeiro, o certo, o justo, mas temos ideias, ideias que vêm de longe e de diversos quadrantes. Elas podem e devem ser tidas em conta, e escolhidas as que têm potencial educativo. Ainda que a verdade esteja longe de ser linear e que o seu sentido seja diverso, sabemos que, no espaço público, ela é preferível à mentira. O mesmo para a justiça, ou para outro valor ético.
Nenhuma escola ensina isso, diz o leitor. Permita-me duvidar, presumo que muitas escolas, muitos professores o façam. E se não o fazem, deviam fazê-lo. Não se trata de ensinar o que é bom, junto, belo, verdade... para cada um, mas pensar nas ideias de bom, junto, belo, verdade... como diz, "nas suas gradações de luz e sombra", ou pelo menos nalgumas delas. E pensar também na sua relevância para a convivencialidade. Isso parece-me ser característica de um adulto educado. Cumprimentos, MHDamião
Estimado Leitor. Não podia estar mais de acordo consigo quando diz: as questões do bem, do bom, do verdadeiro, do certo, do belo, do justo, transferem o problema da esfera do privado para a esfera do público, do individual para o colectivo, do pessoal para o social, do moral para o ético. Se a liberdade consiste em podermos fazer o que nos é permitido, diria que o livre arbítrio consiste em poder fazer o que não nos é permitido". Se me permitir vou registar as suas palavras para uso futuro, com a devida identificação, claro. Cumprimentos, MHDamião
Helena Damião, é com agrado e alguma vaidade que leio o seu comentário. Até pela elevada consideração em que tenho a sua pessoa. Digo-o sem falsa modéstia. Esteja à vontade para usar este e qualquer dos comentários que escrevi neste blogue. Cumprimentos, CRSoares
Concordaria consigo num mundo ideal onde os humanos fossem também ideais, mas neste Portugal onde os professores são tão mal formados, onde não existe um mínimo ambiente ou estímulo à reflexão e ao pensamento ético, eu (pela minha própria experiência, também) não tenho a mínima confiança nos valores que DE FACTO são adquiridos pelos alunos. O que vejo à saída das escolas é estarrecedor: violência física e verbal - insultos, humilhações - , quer entre eles quer contra os professores que acabaram de ter pela frente, grupos a fumar pelos cantos, pontapés nas papeleiras, embalagens atiradas pelo ar para qualquer sítio... devo dizer também que eu próprio sinto que tive de construir os meus valores com a minha vida, pois a escola deu-me NADA a não ser maus exemplos: estímulo ao copianço, à fraude, à rivalidade e à competição; ódio aos ricos e aos alunos aplicados; achar graça e repetir comportamentos de porcalhão e palavreado grosseiro, em particular via anedotas; fazer malfeitorias nas aulas às escondidas, aprender a ser trapaceiro e mentiroso; etc etc. . E rejeitar estas atitudes significa muitas vezes ser segregado pelo grupo, por amigos, ter alcunhas humilhantes. Já nem quero continuar, eu fui também professor, cara Helena, tentei todos os caminhos de bondade e gentileza, e se é verdade que dois ou três alunos por turma o reconheciam e até me comoviam no seu retribuimento, uma boa parte da turma, às vezes metade, eram indiferentes ou mal agradecidos. Tal com os pais quando vinham falar comigo. E os professores? As conversas na sala dos professores eram também de uma vulgaridade desoladora. Quantas vezes me interroguei, como pode este tipo / tipa formar jovens saudáveis? Se ele próprio é um grunho? Não, cara Helena, a escola pode ensinar matemática (mal) e português (ainda pior), mas quanto a valores estamos conversados. Não tenho eserança no ser humano, como aliás ele bem demonstra nos tempos que correm.
A escola é como qualquer outra prisão.
Quanto a éticas, estamos conversados.
Caro Leitor, o seu texto retrata a "realidade real", mas, entendo eu, precisamos de pensar além dela: o que ela pode e deve ser. Como educadores, precisamos de esperança, da equívoca esperança. Veja o que o próprio Gedeão (Rómulo) diz sobre esta nossa dissensão, que, afinal, vai no mesmo sentido:
“Os seres humanos continuam como eram há séculos e séculos (…). Permanecemos exactamente os mesmos. [Nem uma maior preparação académica propiciou melhorias?] Não creio. O homem de hoje faz tantas barbaridades como o das cavernas” [Terá as mesmas motivações?] Podem ser outras. A maneira de planear também mais cínica, possivelmente (...). Verifica-se um grande progresso na ciência e na técnica, mas apenas aí. [Não existe esperança?] Quem puder que a tenha. Eu não tenho esperança numa melhoria social (…). A minha estrela polar é esse desejo inatingível de a humanidade melhorar nos sentimentos e na forma de actuar.” Entrevista de M.A. Silva a “António Gedeão”, 1995, sp. (http://www.casaldasletras.com/Textos/antonio gedeao.pdf)
Cumprimentos, MHDamião
Concordo plenamente com o Gedeão.
O "social" é um conjunto de "eus", não de "nós". É apenas um amontoado de gente, geralmente virado para um palco onde outros "eus" assumem particular relevância. Cada um por si, com fracas conexões sentimentais, demasiados e viperinos juízos de valor e egos enormes como terrenos baldios onde ninguém consegue entrar ou permanecer. Tudo se move na superficial superfície e até é desejável que assim seja porque quando se visita o fundo, é só trampa.
Enviar um comentário