Fez no dia 21 de Março precisamente cem anos que terminou, com o regresso
de comboio de Zurique para Berlim, a mais longa das viagens de Albert Einstein.
Ele tinha partido de Zurique a 6 de Outubro de 1922 para embarcar em Marselha
no navio japonês S.S. Kitano Maru. Percorreu o Mediterrâneo, até Porto Said, no Egipto, à entrada do Canal
de Suez, que atravessou. Navegou depois pelo
Índico parando em Colombo (Sri Lanka), Singapura e Hong Kong, para depois aportar
a Xangai, na China, e, finalmente, a Kobe, no Japão. Foi na escala em Xangai
que soube, por telegrama, da atribuição do Prémio Nobel da Física de 1921 pela
sua explicação do efeito fotoeléctrico, que contribuiu para o desabrochar da
teoria quântica, e não pela teoria da relatividade, à qual o filósofo francês
Henry Bergson se opunha. Passou mês e
meio no País do Sol Nascente a dar palestras científicas e a fazer turismo. No regresso
visitou a Palestina durante doze dias (foi a Jerusalém e a Telavive) e Espanhadurante
três semanas (foi a Barcelona, Madrid e Saragoça). Einstein estava então no auge
da sua carreira: a teoria da
relatividade geral de 1915 tinha sido confirmada com as observações de equipas
inglesas de um eclipse solar na ilha do Príncipe e no Ceará (Brasil) em 1919. No
Japão, o público encheu anfiteatros para ouvir as suas prelecções, feitas em alemão,
sem que a maioria percebesse o mínimo que fosse. Na estação de comboio de Tóquio
uma multidão reuniu-se para o saudar, tal e qual faria a uma estrela pop
nos dias de hoje. Por vezes admira-se mais o que não se compreende, haveria de notar
Charlie Chaplin quando se encontrou com Einstein aos Estados Unidos em 1931 («o
mundo admira-o sem entender uma palavra do que diz»).
Acabam de sair do prelo da Gradiva os Diários de Viagem de Albert
Einstein. Extremo Oriente, Palestina e Espanha 1922-1923, com edição
de Ze’ev Rosenkranz, judeu tal como Einstein. O sábio, nascido em 1879 em Ulm, na Alemanha,
era um judeu laico, pois nunca entrou numa sinagoga para rezar (de facto, nunca
se sentiu alemão, tendo adquirido a nacionalidade suíça). A obra contém a reprodução
em fac-símile do manuscrito escrito pelo físico e a tradução portuguesa, feita por
mim, a partir da versão inglesa, cotejando com o original alemão. Aos Diários,
que Einstein nunca pensou publicar, acresce uma extensa introdução do editor, alguns
documentos da época complementares, uma cronologia e um pormenorizado corpo de
notas. No seu conjunto, é um livro notável,
pois revela um cientista muito humano, sempre atento ao mundo à sua volta, quer
este fosse natural quer humano. Einstein sentiu-se muito bem no Japão, tendo
gostado da paisagem e dos seus habitantes: diz palavras muito amáveis sobre os japoneses,
em contraste com o que diz dos chineses. Foi recebido como um cientista alemão,
pois ele era afinal professor da Universidade de Berlim. Os seus colegas japoneses
estavam ávidos de aprender a nova física, então em franco desenvolvimento no
Ocidente, e o convite chegou através de uma editora japonesa. Já nessa altura o
Japão era uma espécie de Alemanha do Oriente, pois tinha uma grande cultura organizacional,
que decerto ajuda a explicar o «milagre japonês» após a guerra. Em
contrapartida, Einstein revela-se muito interessado pela cultura japonesa:
aprecia as artes, embora experimente alguma dificuldade com a música.
O físico, que viajou com a sua segunda esposa, Elsa (à primeira, Mileva, ele
tinha prometido, como compensação do divórcio, o dinheiro do na altura
hipotético Nobel). A bordo do navio trabalha numa teoria de unificação da
gravidade do electromagnetismo, que nunca concluiu. Numa carta escrita em Singapura
a 19 de Janeiro de 1923 dirige-se assim ao dinamarquês Niels Bohr, com quem haveria
de ter uma discussão amigável sobre a natureza da teoria quântica em 1927: «Querido,
ou melhor, amado Bohr! (…) o meu amor pela sua mente cresceu ainda mais. (…) A
viagem é esplêndida. Estou encantado com o Japão e com os japoneses e tenho a
certeza de que também ficaria. Além do mais, uma viagem marítima como esta é
uma magnífica experiência como um pensador - tal como um mosteiro. Acresce o
calor acariciante perto do equador»
Na Palestina, Einstein visitou várias colónias judaicas, que estavam a
transformar o deserto em solo arável. Einstein queria ajudar no esforço sionista, em
particular na criação da Universidade Hebraica de Jerusalém, à qual haveria de
deixar o seu espólio.
Em Espanha, foi recebido com pompa e circunstância pela Real Academia das Ciências
e pelo rei. Achou os discursos
gongóricos. Foi três vezes visitar o Museu do Prado. Num passeio a Toledo ficou
deslumbrado pela pintura «Enterro do Conde de Orgaz», de El Greco: «está entre
as imagens mais profundas que já vi em toda a minha vida.»
Nestes Diários Einstein revela o seu carácter humanista quando vê os miseráveis puxadores de riquexós nas ruas de Colombo e os pobres chineses que trabalhavam duramente em Hong Kong, mas diz cobras e lagartos dos mercadores árabes que o assediam à chegada a Porto Said e, pior que tudo, afirma não descortinar a razão da atracção dos chineses pelas chinesas. Alguns trechos são polémicos, designadamente certas afirmações de Einstein, que, nos dias de hoje, podem ser consideradas racistas.
Dá a
entender que há povos com menos aptidões do que outros em certos domínios (professores
portugueses que encontra em Colombo disseram-lhe que os chineses são incapazes
de raciocínios lógicos). Fora da Europa, Einstein descobriu a sua identidade
europeia, tal como Natália Correia, que, quando foi pela primeira vez à América,
descobriu que era europeia. Com a fascinante escrita de Einstein viajamos com
ele ao mundo dos anos de 1920, mas convém fazer um esforço para ver o autor com
os olhos da época.
A viagens seguinte de Einstein seria, em 1925, desde a Alemanha até ao Uruguai, à Argentina e ao Brasil, passando incógnito por Lisboa. Foi na capital portuguesa que ele ficou impressionado pelas varinas que fotografou: «Vendedora de peixe fotografada com um cesto de peixe na cabeça, gesto orgulhoso, maroto.» Os diários de viagem de Einstein à América do Sul já foram publicados em inglês. Oxalá um dia os possamos ler em português.
Sem comentários:
Enviar um comentário