Martha Nussbaum, filósofa norte-americana, professora de Direito e Ética da Universidade de Chicago tem sido, nos últimos anos, sobejamente citada em discursos e trabalhos sobre Educação, tanto na América, do Norte e do Sul, como na Europa. Um livro que publicou em 2015 - Sem fins lucrativos - conseguiu particular destaque nesses discursos e trabalhos, o que é de louvar pois trata-se de uma obra centrada na formação humana em democracia e para a democracia.
Contudo, ela não conseguiu sequer beliscar ao de leve a marcha imparável que os sistemas de ensino seguem, delineada, como sabemos, pelas grandes organizações globais, sobretudo pelas que são afectas aos mercados financeiros. Invocando sempre a democracia, esses sistemas rumam em sentido que lhe é contrário. E fazem-no de diversas formas: uma delas é retirar protagonismo às humanidades, sobretudo às de matriz clássica, e às artes, mas também à dimensão humanística das ciências. No currículo escolar - que insistem em declarar "humanista" - fica uma certa técnica e as indispensáveis soft skills.
O que acima disse tem tudo a ver com as comemorações de hoje em Portugal: a democracia como sistema de governo político e de vida social. A minha proposta a quem tem responsabilidades educativas é que aprofunde o sentido do "direito à educação", que corre o risco de se tornar um slogan vazio ou, pior, uma justificação para manter as crianças e os jovens escolarizados à revelia dos fins que devem conduzir a educação escolar. Na verdade, não é por este direito ser repetido em manifestações, como tem acontecido nas últimas semanas no nosso país, que ele encontra o significado que lhe é devido.
Deixo, então, o leitor com as claríssimas palavras de abertura da dita obra, no pressuposto de que elas alinham a Educação com a Democracia: sociedades democráticas proporcionam uma educação favorável à democracia. Essa educação tem de ser robusta em termos de conhecimento e orientada para a formação humana. Sem garantia dos resultados, não conhecemos melhor caminho...
"Estamos no meio de uma crise de enormes proporções e de grave significado global (…) refiro-me a uma crise que, como um cancro, passa em grande parte despercebida: (...) uma crise mundial da educação. Estão a ocorrer mudanças radicais no que as sociedades democráticas ensinam aos seus jovens, e essas mudanças não têm sido bem pensadas (...) estão a descartar, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia. Se essa tendência prosseguir, todos os países estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros. É disso que depende o futuro da democracia.
Que mudanças radicais são essas? Tanto no ensino básico e secundário como no ensino superior, as humanidades e as artes estão sendo eliminadas em quase todos os países do mundo. Consideradas pelos administradores públicos com enfeites inúteis para se manterem competitivas no mercado de global, estão perdendo rapidamente o lugar nos currículos e, além disso, nas mentes e nos corações dos pais e dos filhos.De facto, o que poderíamos chamar de aspectos humanistas das ciências e das ciências humanas – o aspecto construtivo e criativo, e a perspectiva de um raciocínio rigoroso – está também a perder terreno, já que os países preferem correr atrás do lucro de curto prazo por meio do aperfeiçoamento das competências lucrativas e extremamente práticas adequadas à geração do lucro.
Embora esta crise esteja diante de nós, ainda não a enfrentamos. Seguimos em frente como se nada tivesse mudado (...) ainda não fizemos uma verdadeira reflexão sobre essas mudanças – na verdade, nós não as escolhemos – e, no entanto, elas limitam cada vez mais o nosso futuro (…) parece que nos estamos esquecendo da alma, do que significa para a mente abrir a alma e ligar a pessoa com o mundo de um modo rico, subtil e complexo; do que significa aproximar-se de outra pessoa como uma alma, em vez de fazê-lo como um simples instrumento útil ou um obstáculo aos seus próprios projetos; do que significa conversar, como alguém que possui alma, com outra pessoa que consideramos igualmente profunda e complexa.
A palavra “alma” (…) significa a capacidade de pensar e de imaginar que nos torna humanos e torna as nossas relações humanas mais ricas, em vez de relações meramente utilitárias e manipuladoras (…) se não aprendermos a enxergar tanto o eu como o outro dessa forma, imaginando em ambos capacidades de pensar e de sentir, a democracia está fadada ao fracasso porque ela se baseia no respeito e na consideração, e estes, por sua vez, se baseiam na capacidade de perceber os outros como seres humanos, não como simples objectos (...).
Com a corrida pela lucratividade no mercado global, arriscamo-nos a perder valores preciosos para o futuro da democracia (…). Não devemos ser contra a ciência de qualidade e a educação técnica (...). A minha preocupação é que outras competências, igualmente decisivas correm o risco de se perder no alvoroço competitivo; competências decisivas para o interior de qualquer democracia e para a criação de uma cultura mundial generosa, capaz de tratar, de maneira construtiva, dos problemas mais prementes do mundo.
Estas competências estão ligadas às humanidades e às artes: a capacidade de pensar criticamente, a capacidade de transcender os compromissos locais e abordar as questões mundiais, como um 'cidadão do mundo'; é, por fim, a capacidade de imaginar, com simpatia, a situação difícil em que o outro se encontra (...).
A educação não acontece somente na escola (…) no entanto, justifica-se o foco nas escolas (...) porque é nestas instituições que as transformações mais perniciosas têm ocorrido, à medida que a pressão pelo crescimento económico leva a mudanças no currículo, no ensino e no financiamento (…).
A educação não é útil apenas para a cidadania. Ela prepara as pessoas para o trabalho e, o que é fundamental, para uma vida que tenha sentido (…). Toda s democracia moderna é também uma sociedade na qual as pessoas diferenciam bastante em função de um grande número de parâmetros, entre eles religião, etnia, riqueza e classe, incapacidade física, género e sexualidade (...). Um modo de avaliar qualquer sistema educativo é perguntar quão bem ele prepara os jovens para viver uma forma de organização social e política [em função d]essas características.
Sem o apoio de cidadãos adequadamente educados, nenhuma democracia consegue permanecer estável (...) a capacidade refinada de raciocinar e reflectir criticamente é crucial para manter as democracias vivas e bem vigilantes (…). E a capacidade de imaginar a experiência do outro – uma capacidade que quase todos os seres humanos possuem de alguma forma – precisa de ser bastante aumentada e aperfeiçoada, se quisermos ter alguma esperança de sustentar instituições decentes que fiquem acima das inúmeras divisões que qualquer sociedade moderna contém.
O interesse nacional de qualquer democracia moderna exige uma economia sólida e uma cultura empresarial próspera (…) esse interesse económico também exige que recorramos às humanidades e às artes a fim de promover um ambiente administrativo responsável e cauteloso e uma cultura de inovação.
Portanto não somos obrigados a escolher entre um modelo de educação que promova o lucro e outro que promova a cidadania. Como uma economia próspera exige as mesmas competências que servem de suporte à cidadania, os defensores do que chamei de «educação para o lucro» ou «educação para o crescimento económico» adoptaram uma concepção pobre do que é necessário para alcançar os seus próprios objectivos.
No entanto, uma vez que a economia sólida é um instrumento para alcançar objectivos humanos, e não um objectivo em si, esse argumento deve estar subordinado ao argumento que diz respeito à estabilidade das instituições democráticas. A maioria de nós não gostaria de viver numa nação próspera que tivesse deixado de ser democrática.
(...) Os educadores que defendem o crescimento económico não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento económico que ignoram a desigualdade (…)
Todos os indivíduos possuem uma dignidade humana inalienável que precisa ser respeitada pelas leis e instituições, capacidade de reconhecer os seus concidadãos como pessoas com direitos iguais não obstante as suas diferenças.
Nussbaum, M. (2015). Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes.1. A crise silenciosa
2 comentários:
Obrigado à Prof. MH Damião, por trazer até nós este admirável excerto, de uma invulgar eloquência, na defesa das Humanidades, como parte integrante e necessária de uma educação que não visa criar apenas agentes e fautores de lucro. Desde Ortega y Gasset, desde o C. P. Snow de AS DUAS CULTURAS, não têm faltado os argumentos fortes a favor de uma cultura integral, que não transforme os cidadãos em zombies, manipulados pelos BIG BROTHERS do lucro pelo lucro. Alguns lúcidos empresários até chegaram a descobrir, por si próprios, que aquilo que faltava a alguns dos seus engenheiros, para poderem eficazmente ascender ao topo do organograma, era precisamente a componente das Humanidades.
Eugénio Lisboa
Estimado Professor Eugénio Lisboa, Martha Nussbaum procurou fazer chegar a sua mensagem ao Presidente Obama, por isso o seu livro tem carácter de manifesto. Como sabemos, não teve sucesso algum, e não por falta de atenção desse Presidente, mas porque há uma engrenagem a funcionar que... funciona assim! De resto, as linhas traçadas pelas grandes organizações globais para a educação depois de 2015 acentuam a subserviência da educação às necessidades sociais, entre as quais estão as económico-financeiras. Talvez sejam os empresários a reverter a situação, solicitando a escola para abrir horizontes que já teve. Em Portugal há exemplos disto mesmo. Oportunamente falarei deles neste blogue. Cumprimentos, MHDamião
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