Acaba de sair na Imprensa da Universidade de Coimbra este meu texto que se refere a um colóquio de homenagem ao Padre Manuel Antunes:
O Padre Manuel Antunes e
a ciência
Carlos Fiolhais
Resumo: O jesuíta Manuel
Antunes acompanhou com atenção a evolução histórica do seu tempo, devida em boa
parte à aceleração da ciência e da tecnologia. A partir da sua Obra Completa,
analiso o olhar que ele lançou sobre essas áreas. No texto «Ciência e cultura
hoje», escreveu sobre a ciência: «o espírito que ela promove – espírito de
exatidão e de rigor, espírito de justiça e de verdade para com os elementos do
real, espírito de descoberta, de inovação e de libertação da rotina – esse
espírito é bom, em princípio» (Antunes, 2005: 292). Para ele, a ciência era
fonte de progresso: «A Humanidade, “como um só homem”, aprende e acumula.
Acumula instrumentos, ciência e experiência» (Antunes, 2007: 368). No entanto,
salientou a necessidade de conciliar o humanismo moderno, baseado na ciência,
com o humanismo clássico, contendo os valores cristãos. O homo mechanicus,
o homem da ciência, tinha de se conciliar com o homo misericors, o homem
misericordioso.
Palavras-chave: ciência;
cultura; progresso; humanidade
Title: Father Manuel Antunes and Science
Abstract: The Jesuit Manuel Antunes
followed attentively the historical evolution that happened in his lifetime, an
evolution due in large part to the acceleration of science and technology.
Drawing on his Obra Completa, I analyse his outlook on science and
technology. In the text «Ciência e cultura hoje», he wrote about science: «the
spirit which it promotes – a spirit of exactitude and rigor, a spirit of
justice and truth towards the elements of reality, a spirit of discovery, of
innovation and of liberation from routine – that spirit is good, in principle»
(Antunes, 2005: 292). He recognized in science a source of progress: «Humanity
learns and accumulates “as one man”. It accumulates instruments, science and
experience» (Antunes, 2007: 368). However, he stressed the need to reconcile
modern humanism, based on science, with classical humanism, containing Christian
values. The homo mechanicus, the man of science, has to be reconciled
with the homo misericors, the merciful man.
Keywords: science; culture; progress;
humanity; religion
O Padre Manuel Antunes
(1918-1985) foi um grande pensador do século xx português, um pensador da
complexidade do seu tempo. No século xx, a complexidade tornou-se
particularmente premente, com a globalização e a proliferação de saberes e suas
aplicações, com a multiplicação de disputas e oportunidades. A aproximação do
fim do século e do milénio fez surgir interrogações prospetivas. Mas, sendo um
pensador da complexidade – complexidade científica, sociológica, política,
filosófica, teológica do ser humano –, exibiu uma virtude rara: pensar o que
valia a pena pensar e fazê-lo sempre de um modo muito claro. Na seleção e na
forma de tratamento dos assuntos, revelou-se um maître à penser.
Escreveu muito, mas não escreveu sobre qualquer coisa. E, acima de tudo, não
escreveu qualquer coisa. É muito raro encontrar algum seu escrito desinteressante.
E é também muito raro encontrar algum seu escrito obscuro. A sua escrita ainda
hoje nos ilumina porque trata de problemas que não são apenas os do século xx –
os verdadeiros problemas não se restringem a um só século, e o pensamento,
quando é claro, nunca fica confinado ao século em que foi escrito.
Proponho-me analisar
brevemente a relação do Padre Manuel Antunes com a ciência. E devo dizer, logo
a abrir, que ele tem uma boa relação com a ciência. Não há uma relação de
distância ou inimizade com a ciência, que ele associa, como é normal, à
tecnologia – ele distingue a técnica, que precedeu a ciência em tempos idos, da
tecnologia de que hoje dispomos, que é inteiramente baseada na ciência moderna.
Acha que a ciência não é um mal contingente, é antes um bem necessário, indispensável
mesmo, à humanidade, tal como a tecnologia que lhe está associada. Sobre a
bondade da procura do saber e o benefício da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento
da humanidade, não tem quaisquer dúvidas. No seu pensamento não encontramos a
crítica da ciência que hoje conhecemos associada às filosofias pós-modernistas.
Ele viveu num tempo anterior a essas correntes, o tempo das filosofias
fenomenológicas e existencialistas que associamos a nomes como, por exemplo,
Martin Heidegger, Emmanuel Levinas, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre. Em
contraste com alguns destes autores, o Padre Manuel Antunes achava que a ciência
é globalmente benéfica. Para comprovar essa sua posição, basear-me-ei e transcreverei
excertos da sua Obra Completa, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian,
designadamente dois volumes dessa obra: o tomo I, Theoria: Cultura e
Civilização, vol. IV, sobre História da Cultura (com coordenação científica
de Luís Filipe Barreto), e o tomo II, intitulado Paideia: Educação e
Sociedade (com coordenação científica de José Eduardo Franco). Realçando as
palavras do Padre Manuel Antunes, permitir-me-ei inserir alguns comentários
entre parêntesis retos.
O Padre Manuel Antunes
reconhece a grande influência que a nossa sociedade recebe da ciência. Escreveu
no texto intitulado «Ciência e cultura, hoje» (Antunes, 2005: 287-299), de
1968, sobre a ciência:
Hoje vivemos,
começamos a viver, larga e profundamente, na dimensão científica. De muitas
maneiras, que as múltiplas sondagens realizadas pelos sociólogos mostram, e
demonstram, a ciência é hoje o facto determinante da história e das sociedades.
Pelo menos, das sociedades evoluídas. Sintetizando, podemos dizer que a ciência
como fator determinante da história e das sociedades o é duplamente: como facto
e como mito. (Antunes, 2005: 287)
Um pouco mais adiante,
acrescenta: «A ciência é, hoje, um facto que ninguém nega ou pensa sequer em
negar» (Antunes, 2005: 287). E fornece razões:
Em primeiro lugar as
suas proporções: nunca, nem relativa nem absolutamente, a ciência teve tantos
cultores como hoje. […] E, em segundo lugar, as suas consequências na ordem da
praxeologia. Pela primeira vez na História da Humanidade, história que já conta
com cerca de um milhão de anos, a vida e a morte coletivas dependem da ciência.
Em terceiro lugar, a ciência como facto afirma-se e impõe-se, a um nível
global, porque é o elemento decisivo do processo da aceleração da história. (Antunes, 2005: 288-289)
De facto, a ciência é um
facto e cada vez mais é um facto. Tudo depende, de uma maneira ou de outra, da
ciência, e esse processo continuou, de modo progressivo e aparentemente
imparável, após a morte do nosso autor. Mas, ao mesmo tempo que o Padre Manuel
Antunes diz que a ciência é um facto, também diz que a ciência é um mito, não
no sentido pejorativo do termo que vem dos gregos, mas num sentido simbólico e
valorativo mais moderno. Se atentarmos bem nesse significado de «mito»,
verificaremos que muitos factos para o serem precisam também de ser mitos e que
por vezes não é fácil nem mesmo possível dissociar o facto de um mito: se uma
pessoa quiser factos, terá de arranjar também mitos; por exemplo, se se quer ir
à Índia, terá de haver um Preste João. O Padre Manuel Antunes explica por que razão
a ciência é um mito:
Para muitos dos nossos
contemporâneos, que não apenas para os cientistas profissionais, a Ciência
apresenta-se como o sistema absoluto de todas as referências, como o verdadeiro
englobante de todas as disciplinas do espírito, como o motor mais potente do
prodigioso dinamismo humano, como a síntese de tudo quanto é válido no mundo e
na história, como o vetor, por excelência, de todos os grandes ideais, como o
campo de forças em que se jogam o tempo e o destino da Humanidade, como o
espaço, acima da terra, em que se projetam desejos e aspirações, esperanças e temores,
angústias e certezas, discutem todas as descrições, esperanças, temores,
angústias e incertezas. É isto que entendemos pela expressão: «a ciência como
mito». (Antunes, 2005: 291-292)
Ele tem razão: esperamos
mais da ciência do que aquilo que a ciência oferece, apesar de ela oferecer
muito. Habituámo-nos a esperar demais da ciência. É evidente que nunca se pode
esperar que os mitos se concretizem plenamente, pela própria definição de mito.
Podemos e devemos esperar da ciência como facto, inclusivamente a continuação
da ciência como facto, mas parece uma quimera alcançar um «sistema absoluto de
todas as referências». Assim, o Padre Manuel Antunes diz que a ciência triunfou,
mas que se trata de um triunfo ambíguo, «como aliás todos os triunfos», acrescenta
ele, com uma ironia muito fina. E explicita de onde vem a ambiguidade:
Pode conduzir a uma
real promoção da humanidade nos vários planos em que a sua vida se desenvolve,
e é um bem. Pode conduzir à sua total destruição ou, se essa hipótese, menos
provável, não se der, pode conduzir a um estancamento das suas energias
criadoras, a uma atitude de extrapolação, tomando como ciência aquilo que não é
ciência, e então é um mal.
(Antunes, 2005: 292)
Extrai uma conclusão
clara:
Mas, vistas as coisas
globalmente, o «triunfo da ciência» ou, em sentido mais amplo, a «ciência como
mito» é mais um bem do que um mal. Na verdade, embora a ciência não seja ainda,
de facto, nem deva ser, de direito, a esperança única do homem, contudo o
espírito que ela promove – espírito de exatidão e de rigor, o espírito de
justiça e de verdade para com os elementos do real, espírito de descoberta, de
inovação e de libertação da rotina – esse espírito é bom, em princípio. (Antunes, 2005: 292)
E eu não podia estar mais
de acordo. O problema do mundo não é a exatidão, nem o rigor, a justiça, a
verdade, a descoberta, a inovação, a libertação da rotina, mas precisamente a
falta dessas virtudes.
Depois de ter apresentado
esta apologia da ciência do Padre Manuel Antunes – que é moderada, pois a
moderação é necessária em todos os conceitos associados a mitos, de modo a
evitar totalitarismos –, vou ser mais concreto quanto ao seu pensamento sobre a
ciência. Vou considerar três questões: a questão do progresso, que é um facto,
mas também é mito; a questão do humanismo, que é um facto, mas também pode ser
um mito; e, finalmente, a questão da irracionalidade, para a qual chamarei a
atenção: o Padre Manuel Antunes pode ser visto como um «profeta» porque, sendo
atual a crise da humanidade, patente por exemplo no avanço da irracionalidade e
na generalização da falta de valores, ele tomou consciência de sinais que, na
altura, embora apenas latentes, já estavam bem nítidos: a irracionalidade, a
desinformação estavam lá, só faltava a Internet. Havia a imprensa, a rádio e a
televisão, mas ainda não havia a Internet e as redes sociais.
O progresso
O progresso é um tema
muito debatido e que vai continuar a ser debatido porque é interminável. Há cem
anos, o alemão Oswald Spengler, no fim da Primeira Guerra Mundial, falou do
declínio do Ocidente, significando o fim da civilização que tinha dado origem à
guerra (Spengler, 1923). Hoje, após a continuação do progresso nesse
pós-guerra, assim como no período após a Segunda Guerra Mundial, continuamos
confrontados com a ideia de progresso. É um facto, mas também é um mito.
Interiorizámos a ideia de progresso com a nossa experiência histórica, mas é
uma ideia em relação à qual sentimos uma certa frustração, por vezes mesmo um
certo receio, por termos uma ideia mitificada de progresso. O Padre Manuel
Antunes era um pensador que tinha fontes muito ecléticas, gostando, por
exemplo, de citar o alemão Karl Marx. Não sendo marxista, concordava com Marx
quando este dizia que «as sociedades apenas pensam as questões para as quais
têm solução, ou julgam que têm solução». A questão do progresso era pensada na
segunda metade do século xx – e, de resto, ainda o é hoje – porque a sociedade
tinha uma solução, ou pensava que tinha, baseada na ciência e tecnologia. Um
livro publicado entre nós nessa época, O Progresso (Dunham et al.,
1965), compila textos de vários autores que tentavam explicitar o que é o
progresso. Um dos autores nesta antologia era muito querido do Padre Manuel
Antunes, ou não fosse ele também jesuíta e pensador: o padre francês Teilhard
de Chardin. Ele acredita no progresso humano que se insere num progresso
cósmico: «o homem é o eixo e a seta da evolução». O padre Teilhard de Chardin
escreve ainda, num texto intitulado «Reflexões sobre o progresso», lido na
Embaixada de França em Pequim, em 1941, portanto durante a Segunda Guerra
Mundial:
[…] por muito amargas
que tenham sido, de algum tempo a esta parte, as nossas deceções, há, não
obstante, noções científicas mais fortes que nunca para pensar que realmente
avançamos e que ainda nos é dado avançar muito, contanto que definamos
corretamente o sentido da progressão e nos resolvamos enveredar pelo bom
caminho. (Dunham et al., 1965:
72)
Muito longe da Europa e
durante uma guerra cruel, Chardin acreditava no progresso. Para ele,
paleontologista, o passado poderia significar, porém, milhões de anos, de modo
que um conflito mundial na atualidade nada significava, quando comparado com a
grande escala do tempo paleontológico e cósmico. O seu passado ia até bastante
longe e o seu futuro também estava projetado para muito longe.
O Padre Manuel Antunes
definiu o progresso num texto muito sintético (tinha de ser, porque era uma
entrada para a Enciclopédia Verbo) inserido no referido tomo i, vol. iv,
da Obra Completa (Antunes, 2007: 366-369), começando por esclarecer a
origem da ideia. Ele, que conhecia bem o pensamento grego, diz que entre os
antigos gregos o conceito de «progresso» não era muito visível por eles acreditarem
no mito da «idade de ouro», uma idade de esplendor que tinha ficado para trás.
A ideia, diz ele, é mais romana do que grega: o progresso consiste em ir de uma
cidade, Roma, a um império, o Império Romano. Cita um autor latino do século ii
d.C., Gélio, que traduz um autor grego não identificado, segundo o qual «a
verdade é filha do tempo: Veritas filia temporis». Aqui está uma ideia
de progresso muito cara à ciência de hoje, muito influenciada pela visão
popperiana: se porfiarmos, acabaremos não tanto por alcançar a verdade, mas sim
por nos afastarmos do erro, isto é, com o tempo, os erros vão diminuindo. Mas o
Padre Manuel Antunes informa que a ideia de progresso, não sendo muito
greco-romana, é principalmente judaico-cristã: «É, porém, com a revelação
judeo-cristã que a ideia de Progresso verdadeiramente desabrocha» (Antunes,
2007: 366). E explica as razões: primeiro, como há no texto bíblico do Génesis
uma criação a partir do nada (ex nihilo), existe portanto um vazio muito
atrás a partir do qual surge o ser, e a seta do tempo inscreve-se a priori
na história cósmica. Em segundo lugar: a História não é vista «como ciclo ou
repetição do idêntico, mas como projeto e caminho para o Messias libertador»
(Antunes, 2007: 366). De facto, na visão teológico-cósmica de Chardin, Deus
está no princípio e no final de tudo, é o alfa e o ómega, mas, de algum modo, o
mesmo se passa na teologia mais canónica: não é preciso aceitar a cosmologia um
pouco heterodoxa do jesuíta francês, uma vez que se encontra muito clara, no
projeto cristão, a ideia do Messias libertador: cada um após a morte vai
encontrar Cristo. E o Padre Manuel Antunes acrescenta algo que não tem sido
suficientemente enfatizado: fala das «coisas vistas, não como dominadoras do
homem mas como devendo ser por direito e progressivamente sujeitas ao mesmo
homem» (Antunes, 2007: 366). Quando se fala hoje da destruição da Terra e dos
problemas ecológicos associados ao progresso tecnológico, convém recordar que,
de acordo com a mensagem cristã, a Terra é do homem. Se o homem é de Deus, a
Terra é do homem, pois Deus deu a Terra ao homem de modo a que o homem pudesse
atuar na Terra a seu bel-prazer. Muitas das modificações na Terra associadas à
ideia de progresso têm por trás a mensagem de que a Terra pode ser dominada
pelo homem de acordo com um direito de origem divina. Para conhecer a posição
moderna da Igreja Católica, uma posição bem fundada na ciência, veja-se a
recente encíclica do papa Francisco sobre as alterações climáticas globais
(Francisco, 2015). Podemos, portanto, falar de uma origem religiosa do
progresso. Além do mais, foi na comunidade europeia e cristã que nasceu a ideia
moderna do progresso que nós ligamos inequivocamente à ciência. E, a este
respeito, o Padre Manuel Antunes acrescenta que:
A moderna teoria do
Progresso – gnoseológico, secular, tecnológico – começa com o Renascimento. As
descobertas geográficas dos Portugueses e Espanhóis [sei que está na moda
evitar falar em «Descobrimentos», mas por isso mesmo eu falo deles, ignorando
os «polícias do pensamento» que acham que certas palavras podem ser proibidas],
as «três grandes invenções» tecnológicas – a pólvora, a agulha de marear e a
imprensa – e o conhecimento mais amplo da Antiguidade Clássica deram a certos espíritos
mais lúcidos dos séculos xv, xvi e xvii a possibilidade de comparar. (Antunes, 2007: 367)
O Padre Manuel Antunes
refere a seguir os nomes de Giordano Bruno (sim, Bruno, vítima da Inquisição),
Francis Bacon, Galileu Galilei, René Descartes, Blaise Pascal e Gottfried
Leibniz, a galeria dos fundadores do projeto da Modernidade assente na ciência,
todos eles, de uma maneira ou de outra, crentes. Refira-se a este propósito que
Galileu continuou a acreditar em Deus mesmo depois de condenado pela
Inquisição. Em quase todos eles a filosofia estava combinada com a ciência, não
existindo a diferença atual entre ciência e filosofia (só Francis Bacon,
jurista, foi apenas filósofo e não cientista). Eles criaram a ideia moderna do
progresso, uma ideia «que, apesar de alguns hiatos, se haveria de tornar a
crença dominante nos últimos dois ou três séculos». O Padre Manuel Antunes cita
Pascal no seu Fragment d’Un Traité du Vide, de 1654, no original
francês: «Toute la suite des hommes, pendant le cours de tant des siècles,
doit être considérée comme un même homme qui subsiste toujours et qui apprend
continuellement». A humanidade é o homem que está sempre a aprender e, por
isso, progride. Mas existirá a lei de Progresso? Existirão leis no Progresso?
Esta é a nota com que termina a entrada sobre Progresso na enciclopédia. A
resposta é clara: sim, existe a lei do Progresso (o Padre Manuel Antunes
escreve a palavra com maiúscula):
Quanto à primeira
pergunta, se se considera a perspetiva integrada da existência humana, é
difícil não responder pela afirmativa. A Humanidade, «como um só homem»,
aprende, acumula. Acumula instrumentos, ciência, experiência. Sobretudo desde
que, com a descoberta da escrita, há cerca de seis mil anos, os meios de
acumulação e de comunicação se têm multiplicado de forma tão extraordinária [a
Internet não passa de uma nova modalidade: a propagação da informação ou do
conhecimento é tão antiga como a História]. Decerto, essa acumulação não
obedece às leis do movimento linear e uniforme [é curioso que o Padre Manuel Antunes
esteja a falar de uma lei da física: usa uma metáfora proveniente da mecânica
galilaica]. Há perdas, esquecimentos, desaprendizados [aquilo que na física se
chama «o atrito»]. Porém, mais geralmente, aquilo que se perdeu volta a
encontrar-se, aquilo que se esqueceu volta lembrar-se – de outra maneira, não raro –,
aquilo que se desaprendeu volta a aprender-se. (Antunes, 2007: 368)
No fundo, diz que há
mesmo progresso, que ficamos sempre mais ricos do que estávamos.
O humanismo
Considerando agora a
questão do humanismo, sirvo-me de um texto inserto no tomo i, vol. iv, da Obra
Completa (Antunes, 2007: 306-323) que é elucidativo a seu respeito. Foi
publicado no livro Indicadores de Civilização (1972) (a primeira vez que
vi o nome do Padre Manuel Antunes foi na capa daquele livro, era eu estudante;
nunca o conheci pessoalmente) e antes, em 1965, já tinha sido publicado na Brotéria.
Repare-se desde logo no título: «Humanismo clássico e humanismo moderno: Sua
complementaridade». Para o Padre Manuel Antunes, existem as duas formas de
humanismo do título e as duas complementam-se. Não se anulam, complementam-se.
Que é então o humanismo clássico? O mestre jesuíta, professor da Faculdade de
Letras de Lisboa, transmitia o pensamento grego e ensinou esse humanismo a
gerações de estudantes, a começar pelas ideias gregas e a continuar com as
ideias cristãs e com a cristianização de algumas ideias gregas feitas na Idade Média.
Como disse, os autores da Revolução Científica foram cristãos e herdeiros do
humanismo antigo.
Sobre o humanismo
moderno, diz o Padre Manuel Antunes:
A Técnica,
historicamente anterior e posterior à Ciência – como tecnologia ou ciência
aplicada –, revela-se fator de cultura e humanismo, multifário e fecundo:
libertando o homem, pela criação de inúmeros escravos mecânicos, de tarefas
que, até aqui, o agrilhoavam ao instrumento; poupando o homem, graças à
eletrónica [e ele não tinha smartphone!], aos grandes esforços de atenção,
quase mecânica, exigidos pela necessidade de cálculos espantosamente longos e
complicados. (Antunes, 2007: 307)
Portanto, ele afirma que
o humanismo moderno, que assenta na ciência, é fator de cultura (lembre-se a
este respeito a questão das «duas culturas» do inglês C. P. Snow, que surgiu em
Cambridge em 1959 [cf. Snow, 1996], e que o Padre Manuel Antunes abordou noutros
escritos). E não tem dúvidas em afirmar que a ciência é um fator de humanismo.
E, defendendo a união no progresso, cita mais à frente o padre Teilhard de
Chardin, que disse «Tout ce qui monte converge». Explica o Padre
Antunes:
Todos os cumes da cultura
e civilização que hoje se divisam no horizonte universal mostram tendência a
dialogar ou, pelo menos, a não se ignorar. Os instrumentos de comunicação que o
humanismo moderno, científico e técnico, preparou encontram-se disponíveis para
que, através deles, possa circular e recircular o humanismo clássico [Ainda
antes da Internet, a ciência já tinha proporcionado meios de expansão daquilo que
a humanidade já tinha aprendido; por outras palavras, o homem antigo e o homem
moderno são o mesmo homem]. (Antunes,
2007: 310)
Refere as ambiguidades do
«humanismo moderno»: «O humanismo moderno – moderno dos nossos dias –
científico e técnico, com ser tão eficaz e espetacular, tão universal e tão
objetivo, contém tais ambiguidades que não poucos, ainda hoje, hesitam em
reconhecer-lhe o estatuto de humanismo». O problema é como conciliar as duas
formas de humanismo. Nenhuma delas pode triunfar sobre a outra: «Não é
viável excluir qualquer das duas formas de humanismo. Resta, portanto [veja-se
a claridade matemática com que o afirma], conjugá-las de modo a obter
uma nova forma e um estilo novo».
O que é então preciso?
Uma síntese. O Padre Manuel Antunes vai buscar a Terêncio a famosa frase:
«Homem sou e nada do que é humano julgo me seja estranho». E cita Gaston
Berger, um futurista francês de avó senegalesa, que morreu de acidente
automóvel em 1960 (o Padre Manuel Antunes gostava muito dos futuristas, que
aliás estavam na moda: uma outra sua referência foi outro futurista francês,
Jean Fourastié), que disse: «Tout commence par la poésie, rien ne se faît
sans la technique». Será possível a complementaridade e quiçá convergência das
duas formas de humanismo? O Padre Manuel Antunes responde com extraordinário
estilo literário:
O Humanismo moderno,
científico e técnico, dá ao homem o sentido da imensidade espacial, da
profundidade, do número, da proporção (entre os fins e os meios), da racionalidade,
da objetividade, do movimento, da novidade incessante, da socialização humana,
da responsabilidade global dos grandes conjuntos. Porém, o humanismo moderno
não dá ao homem o sentido do existencial concreto, do espontâneo, do percetivo,
do criativo, do outro enquanto outro ou enquanto eu-outro (pessoa), o sentido
da mesura humana, da história, daquilo que o homem foi sempre, daquilo que ele
é sempre, daquilo que ele será sempre, fogo perenemente vivo, inquietude
infatigavelmente em ato, aspiração jamais saciada, dom jamais inteiro. (Antunes, 2007: 314)
Para conjugar as duas
formas de humanismo, a sua base cristã fá-lo falar do homo mechanicus, o
homem capacitado pela técnica, e do homo misericors, o homem que ajuda o
outro, que vale ao outro (no eu-outro, o eu é o outro e o outro é o eu; a solução
para a dicotomia consiste no reconhecimento de que os dois são o mesmo homem).
O homo mechanicus às vezes não parece ser o homo misericors, mas
o homo mechanicus tem de ser sempre o homo misericors. Escreve o
nosso autor num texto inserto no tomo ii da Obra Completa (Antunes,
2005: 72-82) e antes publicado em Indicadores da Civilização:
Hoje, o homo
mechanicus reina, o homo mechanicus governa, o homo mechanicus comanda. Um
largo terço da Humanidade – aquele que se proclama a sua vanguarda – dele
depende e a ele vive referido. Os outros dois terços quase outra coisa não
fazem senão sonhar com ele tomando-o como seu senhor, o seu guia e o seu
mestre. […] O homo mechanicus é um conquistador da Natureza. Nenhum Alexandre,
nenhum César, nenhum Tamerlão possuiu semelhante império. Nem de longe. Na
terra, no ar e no mar, esse império vastíssimo tende a alargar-se a tudo. O
homo mechanicus subiu à Lua, está a sondar o espaço. Lançou-se à exploração das
profundezas oceânicas, trazendo, orgulhoso, troféus de mil vitórias, sinais de
mil mundos desconhecidos, indicadores para a resolução de mil enigmas que os
seus antepassados não levantaram nem sequer sonharam. (Antunes, 2005: 73, 75)
E denuncia os perigos que
esse avanço causou sobre a natureza:
O homo mechanicus é o
homem da rotura. Da rotura do equilíbrio entre ele e o seu meio (natural);
entre ele e o outro (ou os outros); entre ele e ele; angústia, ansiedade,
insatisfação, inquietude contínua, morbidez subjetiva, difícil, por vezes, de
ser verificada clinicamente, mentalismo excessivo – irrompente mesmo nas
próprias disciplinas científicas –, sentimento de solidão até aos ossos. (Antunes, 2005: 78)
Será possível, pergunta o
Padre Manuel Antunes, reconciliar técnica e misericórdia?
Responde optimisticamente
num texto intitulado «Homo misericors», inserto ainda no referido tomo
ii da Obra Completa (Antunes, 2005: 83-92) e já antes publicado na Brotéria:
Deve ser possível.
Todo o processo histórico, atingindo certa saturação no desenvolvimento das
ideias, forças e estruturas que o conduziram, tende a inverter-se ou, pelo
menos, a organizar-se de outra maneira. Foi assim no final do Mundo Antigo e
foi assim no final da Idade Média Europeia, vários indicadores parecem mostrar
que será assim neste final, que estamos a viver, dos Tempos Modernos. (Antunes, 2005: 88)
Estaríamos a assistir ao
limite do homo mechanicus, para dar lugar ao que denomina «um processo
de inversão de recuperação e humanização». Continua o Padre Manuel Antunes mais
adiante:
De resto, aquilo que o
possibilita começou já: contestação do império universal da técnica; a
experiência, muito funda e muito dolorosa, das enormes carências, provações e
traumas do homo mechanicus; a consciência emergente, embora ainda às
apalpadelas, da necessidade de andar por outros caminhos que não só pela via
única, retilínea e escandidamente acelerada do progresso material; as múltiplas
experimentações, ensaiadoras de outras dimensões do humano que, mau grado o
desvio de umas e o aborto de outras, tiveram pelo menos o mérito de realizar
ações simbólicas realmente significativas. (Antunes, 2005: 90)
Pegando na misericórdia
como uma das heranças do humanismo antigo, o nosso autor considera que tinha
chegado um tempo de mudança. Se calhar estamos nesse tempo, num tempo em que se
multiplicam os sinais de dúvida e de inquietação, num tempo em que algo está a
mudar, mas não sabendo bem nós ao certo o quê.
Conclui o Padre Manuel
Antunes com cristalina clareza:
Assim se a conciliação
da misericórdia e da técnica é uma possibilidade muito concreta, a sua
reconciliação é um dever. Um dever não apenas individual, mas alta e largamente
histórico. […] Sem ciência e sem técnica a Humanidade não pode subsistir; sem
misericórdia ela não pode subsistir humana. […] A técnica faz a história, mas
só a misericórdia lhe confere sentido. (Antunes, 2005: 92)
A invasão da
irracionalidade
Termino com uma
«profecia», muito curiosa, que o Padre Manuel Antunes fez sobre a questão da
irracionalidade. Nos anos 70, falou da invasão da irracionalidade no texto
«Maré de irracionalidade», de 22 de fevereiro de 1970 (a data poderia ser a de
hoje, pois um grande pensador consegue escrever textos que resistem ao tempo).
O texto, que começa com um tom algo violento, é provocador e literário (se há
necessidade de provocação, que ao menos tenha estilo, e este texto, tal como os
outros, tem-no). Escreve o Padre Manuel Antunes, em dois textos publicados na Brotéria
(Antunes, 1970 e 1973a):
Sentimo-la vir,
impetuosa e avassaladora, temível e perniciosa. Trazida nas ondas da
contestação global e indiscriminada, da utopia sem base, da violência, do
erotismo ou do arbitrário passional, essa maré ameaça ir submergindo os espaços
de racionalidade que, ao longo dos milénios, o esforço do homem custosamente
foi separando das águas do irracional, sobre eles construindo edifícios que
pareciam desafiar os séculos e as tempestades. (Antunes, 2005: 192)
O que ele diz é que a
fortaleza da racionalidade está a ser varrida por um tsunami, que leva todas as
coisas que pareciam seguras. Lembro que esse era um tempo muito marcado pela
revolta do Maio de 1968 em França e, em Portugal, pela Crise Académica, em
Coimbra, do ano seguinte. O nosso autor é claro:
«Todas as formas de
racionalidade são atacadas. Não apenas a eclesial, a estatal, ou, mais
genericamente ainda, a social, mas a racionalidade filosófica, as científicas e
tecnológicas se encontram hoje sob o impacto da negação». Que não se pense que a ciência e a
tecnologia estão do lado do invasor: não, elas estão do lado dos invadidos,
porque o humanismo moderno é, para o Padre Manuel Antunes, a ciência e a
tecnologia.
Logo a seguir (Antunes,
2005: 194-195), encontra-se um texto curto, datado de 19 de outubro de 1970,
intitulado «Informação – Deformação», que tem o mesmo histórico de publicação
que o anterior, no qual o Padre Manuel Antunes diz algo que nos ressoa hoje,
neste tempo de fake news, de mentiras, fraudes e manipulações:
Através de cadeias de
jornais e estações de Rádio e Televisão, todo um vasto mundo realiza um desejo
secreto: ser enganado! Mundus vult decipi, diziam os antigos. Através de
cadeias de jornais, de estações de Rádio e Televisão se cria hoje, em grande
parte, o sistema de «corromper e ser corrompido» que o pessimismo do velho
Tácito designava como sendo o «século»: corrumpere et corrumpi saeculum
appelatur (cf. Germania, 9). Amor dos interesses estabelecidos e sua ampliação,
amor do sensacionalismo e do escândalo, amor da mentira e do fantástico, não
são essas as três paixões que hoje conduzem ao binómio de que fala o nosso
título? (Antunes, 2005: 194)
Pergunta ele mais abaixo:
E a preocupação da
Verdade? Essa subsiste, apesar de tudo, em certos círculos insubordináveis que,
por isso mesmo, lutam com a falta de recursos, em meios adversos, contra os
tentáculos da absorção, da intimidação, da concorrência desleal, das ideias
feitas, das paixões que, por estarem ao serviço das «boas causas», se creem
logo santificadas pela assistência de infalibilidade. (Antunes, 2005: 194)
E termina o texto
afirmando que, apesar de muitos sinais alarmantes, havia lugar para alguma
esperança. Ele é um otimista tal como os cientistas são: o mundo parece perdido
e, por isso, haja alguém que o salve. Diz ele:
Apesar de muitos
sinais em contrário, queremos crer que não. A preocupação da Verdade, em si e
por si, é sem dúvida avis rara. Não tão rara, porém, que por vezes não sulque o
nosso céu convidando-nos a não desesperar. É obedecendo ao seu convite que a
espécie humana se resgata, se vai resgatando das mil e uma teias de falsidades
e enredos que teimam em a reter cativa. (Antunes, 2005: 195)
Em conclusão
A propósito de «ave
rara», termino com uma pequena história chinesa, talvez oportuna numa altura em
que o desenvolvimento do mundo está a passar do Ocidente para o Oriente, da
Europa para a China, onde viveu o padre Teilhard de Chardin. Havia um grande
fogo numa grande floresta e umas pequenas aves iam a um lago, traziam água no
seu bico — esta história traz, portanto, literalmente água no bico — e
depositavam aquelas gotas de água no fogo. Surgiu-lhes um génio da floresta
que, vendo-as, perguntou às avezinhas: «Então não veem que essas poucas gotas
de nada servem?». Respondeu então uma ave, ainda mais sábia do que o génio:
«Sim, vemos, mas é a única coisa que podemos fazer».
Bibliografia
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de irracionalidade. Brotéria, 90, 394.
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e Sociedade. Lisboa: Sampedro.
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Antunes, M. (2005). Obra
Completa do Padre Manuel Antunes, SJ (Coord. geral J. E. Franco)
(t. ii). Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
Antunes, M. (2007). Obra
Completa do Padre Manuel Antunes, SJ (Coord. geral J. E. Franco)
(t. i, vol. iv). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
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O Progresso. Org. M. S. Cardia. Lisboa: Presença.
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Marçal, D. (2017). A Ciência e os Seus Inimigos. Lisboa: Gradiva.
Francisco, P. (2015).
Laudato Si’. Sobre o Cuidado da Casa Comum. Lisboa: Paulinas.
Snow, C. (1996). As
Duas Culturas. Lisboa: Presença.
Spengler, O. (1923). Der Untergang des Abendlandes. Umrisse einer Morphologie der
Weltgeschichte. München: Beck.
Notas
1.O autor agradece a Ana
Bela Nobre e José Lopes a cuidadosa revisão deste texto
2. Apesar de o autor não
seguir o novo acordo ortográfico, aceitou que o mesmo fosse aplicado ao seu
texto, dado que é a norma seguida pela Imprensa da Universidade de Coimbra.