segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

José Régio à distância de 50 anos

Excelente artigo de Eugénio Lisboa, académico, escritor, crítico literário, enviado a meu pedido pelo seu autor, publicado recentemente no "JL", que transcrevo a exemplo de outros saídos, aqui, no De Rerum Natura

Quando José Régio fechou para sempre os olhos, em 22 de Dezembro de 1969, na sua casa de Vila do Conde, onde escolhera aguardar o desfecho e não em qualquer hospital do Porto, fê-lo, depois de um longo percurso de vida e de escrita, sempre, a um tempo, admirado, invejado, contestado e, frequentemente, mal lido. Régio, em que pese aos seus detractores, que foram, muitas vezes, apenas outros poetas de quem a memória e o ouvido dos leitores não guardaram um único verso – é uma das maiores figuras do nosso mundo literário e cultural.

Nascido em 1901, foi bafejado por três grandes favores: inteligência, sensibilidade e talento. Três dons que são também, quase sempre, três rebuçados veladamente envenenados. A inteligência assusta e afasta. A sensibilidade complica e dificulta o convívio fluente; e o talento promove, não raro, a inveja e a insídia. Prodigiosamente provido destas três perigosas componentes de um complexo e completo equipamento criativo, José Régio, nascido num acanhado meio pequeno-burguês do norte de Portugal, viveu os primeiros anos da sua vida numa vigilância inquieta e apertada pelo lado de uma mãe nervosa e altamente sensível, mas ricos de leituras e aventuras – e sondagens – interiores. Cedo e simultaneamente, descobriu as seduções da poesia, do teatro e da ficção de largo fôlego.

Sensibilidade de alta amperagem e inteligência de superior gabarito, associadas, compõem um aparelho de sondagem interior e exterior de poder excepcional mas de recepção duvidosa: ninguém gosta de ser avaliado por uma sonda tão aguçada e sofisticada. Alguns camaradas e amigos que o dissessem… Transferido, após concluídos os estudos liceais, para Coimbra, ali frequentou, como aluno livre, o curso de filologia românica, que concluiria com uma lúcida, perceptiva e atrevida tese de licenciatura sobre os mestres da moderna poesia portuguesa.

Reconhecido pelos seus camaradas universitários como o mais inteligente e o mais bem apetrechado de todos eles, em Coimbra promoverá, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, o aparecimento de uma revista de artes e letras, a presença, que traria, para além do estudo, divulgação e publicação dos argonautas do Orpheu, um exemplo de pedagogia solida e bem argumentada e, também, a promoção de toda uma arte oriunda de personalidades fortes e inovadoras, mas despreocupada de “escolas”, de “ismos” e de “modas”. Preconizando uma arte produzida por personalidades ricas e realmente originais – não de uma originalidade fabricada e rebuscada – Régio sorriu sempre, em itálico, para os entusiasmos juvenis dos que acreditavam que um novo “ismo” – o deles – vinha arrasar todos os “ismos” passados, para se estabelecer, finalmente, como o “ismo” definitivo.

Alérgico à superficialidade e pouca durabilidade das modas, afastando de si com vigor a literatura feita só de “literatura” e escassa ou mesmo desprovida de substância e de vida, recusando uma total rotura com o passado – como anunciavam que faziam os do Orpheu - , mas inovando a partir desse passado e não contra ele, divulgador intenso de nomes novos que a geração anterior ignorara (Proust, Gide, Claudel, Dostoiewsky…), munido de uma inconfundível coragem cívica e artística, arauto convicto daquilo em que acreditava mas cauteloso, qual avisado cientista, ao sugerir uma hipótese nova, que logo admitia poder substitui-se por uma hipótese melhor, fugindo como da peste aos dogmas mal digeridos dos iletrados das letras, dono de uma escrita de uma claridade sem batota e de uma musicalidade muito pessoal, Régio, dentro e fora da presença, recorta um dos mais singulares, poderosos, sedutores e perturbantes perfis de toda a nossa história literária.

Nos diálogos, cheios de inquietantes subentendidos, travados nos Cafés de uma cidade de província (Coimbra?), nesse sibilino e profundo romance que é o Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934 e logo apreendido, Régio mostra, com abundância de exemplos, como é complicado, turbulento e crispado o convívio entre seres humanos, sobretudo em naturezas ricas e complicadas como os artistas e os intelectuais. Todo o convívio se faz, parece dizer o autor, em terreno minado, e se defronta, pois, com surpresas explosivas.

O convívio com os outros (amor, amizade, simples conhecimento) é eterna fonte de mal-entendidos e crispação. Não o é menos o convívio consigo próprio e com os seus fantasmas interiores. Também o convívio ambicioso com algum transcendente aparece cheio de escolhos, armadilhas e impossibilidades. Visar a perfeição é o mesmo que visar a morte – é ver o Príncipe Perfeito com Orelhas de Burro, que só perde a sua pequena imperfeição – as orelhas – no momento em que perde a vida. Ou a Benilde – da peça com o mesmo nome – que parece finalmente cumprir o seu difícil destino no preciso momento em que a morte a visita. Todo este fecundo tema de uma morte que promove uma “ressurreição” está patente em muitos momentos da obra de Régio: na poesia, na ficção, no teatro (no seu principal teatro – Jacob e o Anjo, na Benilde ou a Virgem-Mãe, no El-Rei Sebastião, em A Salvação do Mundo morre-se e “ressuscita-se” em sentido real ou metafórico e, frequentemente, nos dois).

Neste breve artigo celebrativo dos cinquenta anos da morte do poeta de As Encruzilhadas de Deus e desse grande romance de aprendizagem que é A Velha Casa, não tenho, como é óbvio, nem tempo nem espaço para glosar, mesmo superficialmente, todas as obsessões que alimentam, obstinadamente, o tecido vasto e complexo desta grande obra de poesia, ficção, teatro, ensaio, crítica, autobiografia e diarística. Mas não gostaria de terminar sem sublinhar uma característica deste grande escritor: a sua admirável capacidade de trabalho, isto é, de perceber que a inteligência, a sensibilidade e o talento não chegam para produzir uma obra notável, se não forem acompanhados por uma grande disciplina de trabalho.

Por outras palavras um tanto rudes, não se consegue produzir obra que valha, se à inspiração se não acrescentar a transpiração. A este respeito, gostaria de aqui transcrever uma passagem, admirável e reveladora, de uma carta que Régio dirigiu a Nemésio, nestes termos: “Quanto a criação, inspiração e trabalho, penso explicar-me numa das cartas que tenho vindo rabiscando para a Seara. A respeito de várias personalidades da minha geração, ou já da seguinte, o que penso é que lhes faltam exactamente aquelas qualidades de ruminação, de paciência, de persistência, de trabalho, sem as quais todo o poder de criação se limita, e toda a inspiração não produz senão clarões (quando não fogachos) intermitentes.

De aí a minha alegria quando vejo reunirem-se qualidades de inspiração e, digamos, de profissionalismo. Ah, se toda a gente soubesse como eu gosto de ver toda a gente dar tudo quanto pode! Cá por mim, sempre foi o meu maior sonho ser ao mesmo tempo um criador e um operário, para completar esta nota: um boémio e um homem de gabinete e de oficina.” De saúde frágil, com uma vida de professor, coleccionador de antiguidades, jornalista e epistológrafo ocupando-lhe muito tempo, Régio, recorrendo esforçadamente a muita paciência, disciplina, persistência e trabalho, tudo próprio de um bom profissional e de um exímio operário, pôs de pé uma obra monumental, sem se fiar apenas nos poderes da inspiração. E demolindo, de passagem, o tão acarinhado mito lusíada do preguiçoso de génio…

Por tudo isto e muito mais, não fica mal recordar agora o escritor que, há 50 anos, nos deixou. Porque nos deixou, deixando também, para nosso proveito, uma grande obra e um grande exemplo.

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...