quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A ciência em julgamento


Charlatães processarem aqueles que mostram publicamente que as suas práticas são charlatanices é uma tática bem conhecida. Quatro exemplos:

1. O charlatão Matthias Rath, que vendia vitaminas na África do Sul para supostamente tratar a infecção por VIH, em substituição dos tratamento convencionais anti-retrovirais, processou o médico Ben Goldacre por este denunciar no jornal “The Guardian” (que também processou) a sua aldrabice assassina. Rath teve respaldo político na África do Sul, num quadro de desconfiança das empresas farmacêuticos ocidentais. Estima-se que a recusa das autoridades sul-africanas dos tratamentos anti-retrovirais (mesmo quando estes eram oferecidos) tenha resultado em 343 000 mortes que poderiam ter sido evitadas, entre 1999 e 2007. O caso é contado por Goldacre no livro Ciência da Treta (Bizâncio, 2008). Agora que o mundo está a braços com a epidemia do novo coronavirus COVID-19, vale a pena recordar a publicidade que a fundação de Rath divulgou quando surgiu pela primeira vez um outro coronavírus, responsável pela Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS): “É um facto científico que todos os vírus que foram investigados cientificamente podem ser bloqueados por nutrientes essenciais naturais específicos”. Não podem. Mas há charlatães sem escrúpulos, que não recuam diante de nenhuma pilha de cadáveres. E que ainda assim processam quem os denuncia.

2. A Associação Britânica de Quiropraxia processou o divulgador de ciência Simon Singh por este expor a falta de fundamento da quiropraxia, uma terapia alternativa pseudocientífica que os seus praticantes alegam poder curar quase tudo (desde cólicas em crianças a infecções no ouvido), principalmente através da manipulação da coluna vertebral.

3. O charlatão Andrew Wakefield, grande instigador do movimento anti-vacinas moderno, processou o jornalista de ciência Brian Deer (e o Channel 4 da BBC) por este ter exposto a sua fraude científica: falsificou registos hospitalares para criar a mentira que os primeiros sintomas de autismo surgiam logo após a toma da vacina tríplice (contra o sarampo, papeira e rubéola), publicando um estudo manipulado em que descrevia 12 casos. Wakefield recebeu cerca de 400 000 libras, pagas por um um fundo de apoio jurídico constituído para processar os fabricantes das vacinas, tendo em vista indemnizações aos pais de crianças autistas.

4. Em Espanha, um grupo de 24 homeopatas processou o presidente da Sociedade Valenciana de Medicina Familiar e Comunitária e o porta-voz da Associação Para a Protecção dos Doentes Contra as Terapias Pseudocientíficas, por atentado contra a sua honra, por causa de textos que consideravam injuriosos.

Em todos os casos a charlatanice perdeu ou desistiu. O caso espanhol teve o seu desfecho no mês passado. O tribunal teve em conta a posição da Real Academia de Farmácia, segundo a qual “a homeopatia não só não funciona, como põe em risco a saúde”.

Na actualidade nacional, o médico João Júlio Cerqueira, autor do site SCIMED (que se dedica a divulgar análises muito bem fundamentadas acerca de intervenções na área da saúde) e Manuel Sant’Ana, Vice-Presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários, estão a ser acusados de difamação por praticantes de medicinas alternativas, da área da medicina tradicional chinesa e da acupuntura. Não vou aqui discutir a comprovada falta de eficácia e segurança das terapias alternativas, já escrevi extensamente sobre isso noutros lados. Refiro apenas um facto inquestionável: a nenhum tratamento de nenhuma terapia alternativa é exigido o mesmo nível de prova de eficácia e segurança que é exigido para introduzir um novo medicamento no mercado. Se os terapeutas alternativos (incluindo os acupunctores) acreditassem mesmo nas provas científicas dos seus tratamentos, seriam os primeiros a advogar iguais exigências para a aprovação dos tratamentos que ministram. Como sabem que isso seria o fim das suas práticas, preferem outras táticas, como intimidar os críticos com processos judiciais.

Portugal tem duas particularidades. A primeira, os tribunais portugueses têm um historial pouco recomendável de respeito pela liberdade de expressão, sendo o nosso país sistematicamente condenado por essa razão no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. A segunda, é que os políticos portugueses têm vindo a legislar sobre as terapias alternativas como se elas fossem uma coisa mesmo a sério, concedendo carteiras profissionais a praticantes de medicinas que não funcionam, definindo os conteúdos de licenciaturas em banha da cobra no Diário da República e — a cereja em cima do bolo — integrando as terapias alternativas na nova Lei de Bases da Saúde.

Nesta caldo, e se estes processos alguma vez chegarem a tribunal, será a ciência que estará em julgamento. Não é a primeira vez que acontece. Por exemplo, nos Estados Unidos, num julgamento em 1982, um tribunal do Arkansas teve de decidir se as "ciências da criação" eram ciência e deviam ser ensinadas nas aulas de ciência, a par com a teoria da evolução. Nesse caso a ciência ganhou (independentemente das nossas crenças religiosas não podemos com seriedade afirmar que o Dilúvio e  Arca de Noé são explicações científicas para a diversidade da vida).

Como disse o astrónomo e divulgar científica Carl Sagan numa entrevista em 1996: "Desenvolvemos uma sociedade baseada na tecnologia e na qual ninguém percebe nada de ciência e tecnologia. Esta mistura inflamável de ignorância e poder, mais cedo ou mais tarde, vai-nos explodir na cara."
Está-nos a explodir na cara.

3 comentários:

Pancinha disse...

Num Mundo em que:

- Os Médicos não são ensinados a gerarem Empatia e Confiança com os Doentes;
- Quando a têm, a ditadura de ver o máximo de doentes no mínimo de tempo, impede o estabelecimento desta relação;
- que, perante uma não-Ciência ou uma Prática aplicada para lá da sua validade (como é o caso da quiropraxia para tudo), respondem duma forma Doutrinal Ditatorial, e não do tipo "Ok, isso é tudo mui bonito mas existem estes estudos que demonstram que isso não funciona" (a tal Empatia ...);
- ou simplesmente não por não se gostar do que o Médico está a anunciar....

Não é de admirar o que é relatado.

Anónimo disse...

Sinais tristes de que estamos ainda um pouco retrógrados no que toca a este tipo de assunto, a tomar aldrabões como especialistas em vez dos médicos.

Anónimo disse...

Há metodologias que têm de ser alteradas na prática da medicina em Portugal. Os médicos têm de deixar de ser, apenas, administradores de medicamentos (e são-no cada vez mais) e verem o paciente na sua totalidade e não apenas uma soma de orgãos, sem irem à raiz de muitos problemas nem sempre muito visíveis. Eu sei, o tempo não dá para mais.
Depois, há auxiliares de terapia que nunca vejo serem indicados como é o caso do nutricionismo e mesmo da fisioterapia, por exemplo.
Descerem da sua aura de deuses inacessíveis também não lhes ficaria mal, pois deixam os pacientes desconfortáveis.
Estes são alguns dos motivos que levam muita gente a procurar outras vias e nem sempre com maus resultados.

P.S. a medicina convencional aceita a acupuntura em muitos casos.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...