Tivemos acesso a esta resposta de Filipa Vala a um texto de opinião de João Vieira Pereira (Expresso, aqui). Vale a pena transcrevê-lo:
Até um texto de opinião deve partir de um retrato da realidade que obedeça a critérios mínimos de rigor, antes de proceder ao comentário. Nos casos em que isto não acontece, o comentário é feito sobre uma ficção, o que pode induzir os leitores perigosamente em erro. O texto de opinião “Coisas da Esquerda” de João Vieira Pereira publicado no Expresso de 29 de julho falha, infelizmente, o teste da realidade. E como falha este teste, emite uma opinião sobre as medidas de combate à precariedade do governo e da maioria parlamentar que o sustenta completamente errada.
João Vieira Pereira (JVP) não nomeia por extenso e não se dá sequer ao trabalho de distinguir no comentário que tece as duas iniciativas governamentais a que se refere. Elas são o PREVPAP (Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública), para integração de precários do Estado e o DL nº 57/2016 para o Emprego Científico e respetivas alterações, publicadas recentemente. O DL nº 57/2016 diz respeito apenas a doutorados a trabalhar em instituições do Sistema Científico e Tecnológico Nacional, elas próprias na maioria das vezes inseridas em instituições do Ensino Superior. O PREVPAP destina-se a trabalhadores com vínculo precário, independentemente do grau académico que possuam.
A legislação que definirá a forma de recrutamento dos trabalhadores via PREVPAP não está aprovada. Na proposta em discussão pública, o recrutamento será por concurso. O que já está a decorrer é o recenseamento destes trabalhadores (quantos são, onde trabalham, que funções exercem). A decisão sobre as funções exercidas por cada trabalhador será tomada por Comissões de Avaliação Bipartida (as CABs), nomeadas conforme o sector de atuação. Serão as CABs a decidir se a função exercida por um determinado trabalhador corresponde a necessidades permanentes da instituição. Se assim for, aquela posição será alvo de um concurso para recrutamento. O programa foi inscrito no OE de 2017. No entanto, dificilmente o processo estará concluído antes do final deste ano. Não sabendo quantos são, onde estão, que funções exercem e quantos serão selecionados para a regularização de vínculos torna-se, como JVP certamente compreende, impossível dizer para já exatamente quanto custará a implementação do programa.
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A legislação para a contratação de doutorados (DL nº 57 de 2016 e respetivas alterações) já está toda em vigor. As normas de contratação definidas aproximam os custos de contratação de doutorados recorrendo a fundos públicos dos custos que já são suportados por empresas privadas quando contratam. As únicas contratações obrigatórias são as definidas ao abrigo da Norma Transitória (artigo 23º do decreto): trata-se de contratos a termo, financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), para doutorados a exercer funções há 3 ou mais anos. Estes doutorados já foram, no mínimo, avaliados 3 vezes: no concurso internacional em que ganharam a bolsa de doutoramento, no concurso internacional em que ganharam a bolsa de pós-doutoramento e na avaliação do triénio que lhes renovou a bolsa de pós-doutoramento. Tal como no projecto-lei para o PREVPAP, a passagem a contrato é feita mediante concurso. De salientar ainda que bolsa nenhuma é concedida pela FCT sem que a unidade orgânica que acolhe o bolseiro tenha aceitado, por escrito, tanto o bolseiro como o seu plano de trabalhos.
Pelo exposto, percebe-se que pretender, como pretende João Vieira Pereira, que as iniciativas de combate à precariedade não obedecem “a critérios sérios de necessidade efetiva dos recursos e de mérito das pessoas em causa” é falso. Percebe-se que pretender que “Entram todos. Mesmo os estagiários e os bolseiros” é falso. Percebe-se, ainda, que pretender que “vão passar a ser as faculdades a pagar-lhes, a situação coloca em causa a sustentabilidade financeira das universidades e a sua independência ao obrigá-las a contratar pessoas que nem precisam”, é falso. Percebe-se, também, que pretender que “Neste caso ninguém fez contas” é falso. E percebe-se, finalmente, que pretender que a esquerda anda a distribuir “empregos para a vida”, além de falso é uma piada que cai muito mal entre trabalhadores do Sistema Científico e Tecnológico e do Ensino Superior que vão em 20 anos de carreira (metade do que deveria ser uma carreira contributiva) sem um único contrato de trabalho, e entre precários do Estado com contratos a termo sucessivos ou há anos em regime de prestação de serviços para as mesmas funções, nas mesmas entidades.
João Vieira Pereira criou uma ficção para fazer oposição política. Resta a questão do número de doutorados em Portugal: “Somos um dos países com o maior número de jovens doutorados por mil habitantes”, afirma João Vieira Pereira. É uma pena JVP não referir que fonte estatística está a utilizar para percebermos melhor a que é que se está a referir de forma tão ambígua (ou será populista?).
Segundo o Eurostat, o número total de doutorados em Portugal por mil habitantes praticamente duplica entre 2005 e 2015, aproximando-se em 2015 da média europeia dos 28. Segundo os dados da FCT, o número de bolsas de doutoramento atribuídas tem um pico entre 2007 e 2009 e reduz-se drasticamente a partir de 2012. Se o maior número de bolsas de doutoramento foi dado entre 2007 e 2009 é natural que quatro anos depois haja picos no número de jovens doutorados – que é exatamente o que mostram os dados da PORDATA. É natural, também, que seja nesta altura que Portugal se aproxima da média europeia dos 28 para o número total de doutorados do país – a intenção do reforço do número de bolsas foi justamente esse.
Se é, portanto, aos dados da PORDATA para 2013 e 2014 que João Vieira Pereira se refere, deveria ter referido os anos para os quais a afirmação remete. Deveria também esclarecer se entende que basta um pico de jovens doutorados em dois anos para resolver o défice de altos quadros do país. Será que os doutorados não morrem? É que se JVP admite a mortalidade como parte da realidade, e se defende que a política nacional em ciência e tecnologia deveria ser orientada no sentido de manter Portugal entre a média europeia, nesse caso teria que criticar a redução drástica do número de bolsas a partir de 2011, em particular entre 2013 e 2015, com o Governo de Pedro Passos Coelho. Suspeito que JVP prefere ignorar essa parte da realidade.
Face àquilo que são de facto as iniciativas em causa, a mais bondosa interpretação do texto de João Vieira Pereira leva-nos a crer que ele defende que contratos de trabalho com direitos não devem ser dados a todos os trabalhadores, mas apenas aos quem têm “mérito”. Aos outros resta-lhes continuar a trabalhar nas instituições – que pelos vistos não abdicam deles – em regime precário. Não sei qual é a definição de mérito de JVP no que respeita a jornalismo. Mas se incluir a leitura e compreensão de legislação e documentos relevantes antes de se pronunciar sobre eles, se incluir a capacidade de ser rigoroso na descrição que faz de factos, se incluir a capacidade de referir fontes reduzindo a ambiguidade do que diz, então JVP não tem mérito nenhum. E, nesse caso, talvez devesse recomendar à Impresa a possibilidade de o passar a bolseiro – as bolsas para Mestres saem muito em conta.
Filipa Vala
Bolseira de pós-doutoramento
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4 comentários:
Exactamente.
Parabéns pela excelente resposta. Vai de acordo com a opinião que tenho relativamente ao "jornalista" em causa sempre que o ouço ou leio: fraca solidez da sua argumentação e preconceito de raiz neoliberal.
Excelente e bem fundamentada denúncia da desonestidade intelectual e demagogia de um 'jornalista credenciado' de um 'jornal de referência'. Infelizmente a falta de integridade está instalada dentro das próprias universidade e ao mais alto nível como relatado num recente artigo de opinião de Nuno Peixinho no jornal Público:
https://www.publico.pt/ciencia/noticia/crepusculo-dos-reitores-ou-como-se-investiga-as-marteladas-1781546
Saudações,
Álvaro Fonseca (Lisboa)
Uma opinião de um jornalista que pelo seu teor revela ataque deliberado aos bolseiros em Ciência. Não conheço o jornalista em causa mas a atitude demonstrada é de lamentar. Quero congratular a colega pela resposta esclarecida.
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