quarta-feira, 6 de outubro de 2021

A RIQUEZA DE JOÃO RENDEIRO

Novo texto de Eugénio Lisboa:

O ouro põe na fila da frente
o mais desprezível dos homens.
Eurípedes

O dinheiro, mesmo o mais mal cheiroso, fascina os homens até os levar à mais abjecta subserviência. Mesmo sabendo que determinada fortuna foi adquirida por meios, no mínimo, discutíveis, muito frequentemente, por meios ilícitos quando não francamente criminosos, o homem médio não deixa de admirar a “esperteza” do afortunado ricaço, atribuindo-lhe uma inteligência excepcional, que ele de facto não tem. 

Porque é um erro muito comum pensar-se que é preciso uma grande inteligência para se criar uma grande fortuna: do que realmente se precisa, quase sempre, com honrosas e poucas excepções, é de uma boa dose de falta de escrúpulos. O homem rico raramente é inteligente ou mostra grande visão, mas o que ele é é manhoso, espertalhão – não inteligente – e não hesita em cometer actos que uma mente mais sensível e escrupulosa nunca seria capaz de cometer. Mesmo assim, a grande maioria das pessoas inclina-se reverentemente diante do homem rico, imaginando-o possuidor de dotes especiais, à beira do génio.

Nunca esqueci um diálogo famoso entre dois grandes romancistas americanos: Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Vivendo à grande, na costa azul francesa e esbanjando, sem medida, o muito dinheiro que ganhava, o que o levou a encontrar-se frequentemente em apuros, Fitzgerald admirava e invejava os verdadeiramente ricos. Ao ponto de, um dia, ter desabafado com o autor de ADEUS ÀS ARMAS (Hemingway), nestes termos: “Os ricos são diferentes de nós.” Hemingway, escarninho e mais lúcido, respondeu claro e curto: “São: têm mais dinheiro.” É de facto isso. Também, é claro, existem homens, como Bill Gates e outros, que não são de inteligência vulgar e, além dela, são pessoas de enorme visão e capazes de um mecenato generoso e inteligente. Mas a maioria dos milionários e bilionários são pessoas medíocres e até boçais, mesquinhas e até francamente à beira do criminoso, como, por exemplo, Donald Trump, o qual, na minha modesta opinião, fez mais do que o suficiente para ser metido numa prisão. 

Um exemplo, que muito me chocou, de subserviência perante um homem rico, foi o do que se passou com Belmiro de Azevedo, o qual, convocado para comparecer no Parlamento, para prestar declarações, não me recordo a que respeito nem isso para aqui interessa, se atreveu a ditar àquele órgão de soberania as condições em que compareceria: oito ou nove da manhã, não me recordo, alegando ter muito que fazer e não podendo, portanto, desperdiçar tempo com o órgão legislativo da Nação. Que eu saiba, ninguém o meteu na ordem e foi recebido com toda a reverência… Que diabo, o homem sempre era rico e, visto isso, diferente de nós, como sugerira o autor de O Grande Gatsby.

Tudo isto, a propósito da escandalosa e incompreensível fuga do “banqueiro” João Rendeiro, nas barbas complacentes da justiça e de uma ministra que eufemisticamente classificou de “desconfortável” o acto infame de quem, além de ladrão, se julga acima da lei (depois de perder todos os recursos – e foram demais – entendeu que lhe tinha sido feita grossa injustiça e por isso se pisgava, “em legítima defesa”). 

Vi, repetidamente, dizerem de Rendeiro, que era um “homem rico”: cá está, perante o homem sem escrúpulos, mas com muito dinheiro, o uso de uma linguagem que, de algum modo, desvela reverência por tanta “esperteza”. Porque Rendeiro não pode ser apelidado de homem rico, visto que não o é: rico é aquele que, ou herdou uma fortuna ou a ganhou, por meios razoavelmente lícitos. Rendeiro não é um homem rico, porque o dinheiro que tem não é dele, é dos que lhe confiaram as suas poupanças com vista a uma futura reforma mais confortável, das quais poupanças ele se apropriou, com grande desenvoltura.

Repito: Rendeiro não é um homem rico: é, pura e simplesmente, um desenrascado ladrão. É preciso respeitinho com as palavras, para se não cair desastradamente no “newspeak” de que falava Orweell, o qual permitiria redigir assim o acto de Rendeiro: 

“O operoso banqueiro, que mostrou desde a infância um compreensível fascínio pelo dinheiro, encontrando-se à frente de um banco que geria fortunas, desviou, quiçá sem intenção enviesada, algum desse dinheiro para uma conta sua, não se tendo apercebido de que isso poderia eventualmente não ser bem recebido pelos depositantes. Depois, acossado por uma justiça implacável e quiçá pouco humana, e aconselhado devidamente por amigos e admiradores, resolveu mudar de residência, para melhor esquecer este episódio desagradável e ter um resto de vida sossegado junto a alguma praia benfazeja.”

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Mónica disse...

Gostei de saber que há alguém que também achou "piada" ao episódio da ida do Sr. Belmiro de Azevedo ao parlamento. Profissionalmente lido com algumas pessoas aparentemente ricas. Aparentemente. Fico triste por ver que o sistema económico (o que é isso?) assenta nessas aparências. Ao ler este artigo, senti-me menos sozinha.

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