Meu prefácio ao livro "O Mundo como ele é" do físico sueco Ulf Danielsson, que acaba de sair na Relógio d'Água:
Em
1976, o psicólogo, terapeuta familiar e filósofo norte-americano (nascido na
Áustria) Paul Watzlawick publicou o livro How Real is Real?, que foi
traduzido para português com o título A Realidade É Real? (Relógio
d’Água, 1991). Nele defende uma tese muito cara às teorias construtivistas ou,
mais em geral, pós-modernas: a tese de que construímos a nossa própria
realidade e que, portanto, não existe nenhuma realidade objectiva. De algum
modo, essas teorias estão subjacentes ao actual mundo da «pós-verdade».
Confesso
que, sendo físico, sempre achei aberrante essa tese dos «negacionistas» da
realidade. Aqueles que não acreditam na realidade de uma parede à sua frente
talvez possam experimentar bater com a cabeça nela, para ver se ganham algum
sentido do real. Pelo princípio da acção-reacção, a força que a cabeça exerce
na parede está associada a uma outra força contrária, exercida pela parede na
cabeça, que é capaz de danificar os tecidos biológicos, podendo provocar perda
de consciência. Seria um «choque da realidade». Claro que o mundo real,
incluindo a parede, continua a existir, mesmo quando não temos a percepção
dele. Se o mundo não existisse realmente, e se descrições bastante fiéis do
mundo não pudessem ser partilhadas pela comunidade humana, não só ficaria em
causa a existência da física, e de outras ciências, como, bem mais grave do que
isso, ficaria prejudicada a vida daquela comunidade.
O
físico sueco Ulf Danielsson não tem, como eu, qualquer dúvida sobre a
existência da realidade. Nós, os físicos, temos por profissão estudar o «mundo
como ele é», não como nós gostaríamos que fosse, mas pura e simplesmente como
ele é. Vivemos num mundo real que se se nos impõe de modo avassalador, por
muito aliciantes que sejam fantasias sobre mundos alternativos que possamos construir.
O mundo, a que também chamamos Universo, é muito grande, variado e complexo.
Talvez o extremo da complexidade se encontre na organização e funcionamento do
nosso cérebro, que é a parte do mundo que o tenta compreender (para isso,
convém evitar dar com a cabeça na parede). Conseguimos, através do método
científico, na física e nas outras ciências, obter representações do mundo que
nos parecem verdadeiras, no sentido em que se ajustam relativamente bem à
realidade, e que nos são muito úteis, pois nos permitem viver melhor. O mundo
é, em geral, um lugar inóspito e perigoso, e só o nosso conhecimento dele o
pode tornar um lugar habitável e confortável.
Um
ingrediente importante do método científico é a matemática: a física descreve o
mundo através de leis que têm uma expressão matemática. Já Galileu, o «pai» do
método, dizia, numa bela metáfora, que o «Livro da Natureza» está escrito em
caracteres matemáticos e que só o consegue ler quem conhecer esses caracteres.
Foi através da matemática que o físico italiano descreveu a queda dos corpos. Foi
através da matemática que, mais tarde, Newton se apercebeu de que a queda de
uma maçã na sua cabeça (um choque bem menor do que o da cabeça numa parede) era
regida por uma lei, a lei de gravitação universal, que também rege o movimento
da Lua à volta da Terra e da Terra e dos outros planetas à volta do Sol. Há não
só simplicidade como beleza nessa descrição. Segundo essa lei, a força de
atracção entre dois corpos é directamente proporcional às suas massas e
inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. As outras
ciências têm, umas mais e outras menos, seguido esse caminho de matematização
que a física foi a primeira a adoptar.
Danielsson
é um físico teórico, professor da Universidade de Uppsala (a universidade de
Lineu e de Celsius), especialista em teoria das cordas e cosmologia, que são
assuntos em que uma matemática sofisticada se revela absolutamente necessária.
Na busca de responder às grandes questões – De que é feito o mundo? Como
começou o mundo? O que vai acontecer ao mundo? –, os físicos têm alcançado grande
sucesso: embora o nosso conhecimento seja incompleto, descobrimos que, por
detrás da enorme complexidade do mundo, existem regras simples, isto é, existe
uma «ordem escondida». Não contentes com o conhecimento parcial dessa ordem que
já obtiveram, os físicos procuram uma «teoria de tudo», uma teoria unificada
das partículas elementares e das interacções fundamentais (a teoria das cordas
é uma candidata, mas não passou ainda o crucial teste da experiência). Bom
conhecedor da ordem do mundo que a física já revelou, Danielsson deixa-nos, neste
seu livro, uma importantíssima mensagem: por favor, não confundam o mundo, que
é real, com as nossas descrições do mundo, que são apenas tentativas humanas de
o representar, as quais, conforme ensina toda a história da ciência, podem ser
melhoradas. A realidade é uma coisa e as representações que fazemos dela, em
particular as representações de base matemática chamadas «leis da Natureza», são
outras. O mundo é como é e as nossas imagens dele podem ser melhoradas. Têm-no
sido, como mostra, por exemplo, a descrição da gravitação obtida por Einstein,
a qual, embora contendo a descrição de Newton, vai bastante para além dela. O
físico sueco chama a atenção para o facto de, com Einstein, se ter prescindido
do conceito de força, uma vez que a maçã, ou a Lua, ou a Terra, executam os
seus movimentos seguindo apenas a geometria curva do espaço-tempo. Portanto, o
conceito de «força», embora útil, foi provisório…
Danielsson
é muito claro: o Universo é mais do que as leis que descobrimos, o Universo não
é matemática, não podemos confundir a realidade com modelos, e as simulações
dos nossos computadores acerca do mundo não passam de «caricaturas» do real. Vai
mesmo mais longe: ao contrário do que por vezes se lê e ouve, o Universo não é
um computador. Nós próprios, assim como todos os seres vivos, embora sejamos parte
do mundo físico, não somos máquinas. Ao contrário do que sustentam alguns
estudiosos da inteligência artificial, o nosso cérebro não é um computador.
O
autor sabe bem que o conceito de realidade é esquivo. Ele pertence ao domínio
da filosofia, pelo que não hesita em explicar o que a filosofia tem dito sobre a
realidade. Cita, entre outros, Aristóteles, Husserl e Heidegger. Explica que o
erro de atribuir realidade às nossas construções mentais remonta à Antiga
Grécia, dando pelos nomes de pitagorismo e de platonismo. Diz, tal como Damásio
já tinha dito, que Descartes estava equivocado quanto à sua teoria do dualismo
corpo-alma: Descartes separou o corpo da alma, quando nós sabemos hoje – basta olhar
para o contínuo de espécies biológicas – que a mente (novo nome da alma) é
inseparável do corpo e que os seus resultados, por muito imaginativos que
sejam, só podem ser explicados com a experiência sensória do corpo. Danielsson faz
notar que Descartes morreu na Suécia: este seu livro expõe argumentos a favor
de uma «segunda morte» do sábio francês. Na filosofia contemporânea, o autor alarga-se
sobre as teorias da consciência. Não trata as filosofias pós-modernas, cujas
nefastas consequências o leitor ganhará em conhecer se ler Teorias Cínicas,
de Pluckrose e Lindsay (Guerra e Paz, 2021).
Danielsson
aborda questões profundas que a filosofia trata há muito, em ligação com a ciência
(a ligação era dantes tão íntima que à ciência física se chamava filosofia
natural). É o caso do determinismo e do livre-arbítrio: estará tudo
determinado, como parecem indicar as leis naturais ou teremos livre-arbítrio? O
autor apresenta uma solução muito engenhosa: a noção de «livre-arbítrio» está
inquinada, pois ela é uma contraposição à noção de determinismo, que não passa
de uma característica de alguns dos nossos modelos da realidade. Não existe
realmente nenhum livre-arbítrio, tal como não existe realmente nenhum
determinismo.
A
conclusão só pode ser que a nossa física está incompleta, muito refém do
idealismo platónico, bem patente nas equações da teoria das cordas. Eu diria
que, ao tentar ir ao «fundo» das coisas, Danielsson verificou que talvez haja
outra maneira de olhar para elas. Talvez tenhamos que ver o conjunto, sem estar
obcecado pelo «fundo». Falta de realidade nas equações que escrevemos, ou, dito
de outro modo, há nelas «falta de corpo». Sem saber qual vai ser a física do
futuro, Danielsson afirma que a física terá muito a aprender com a biologia,
que unificou, sem grande matemática, a prodigiosa variedade do mundo vivo. Danielsson
não o diz, mas atrevo-me a dizer: talvez não haja uma «teoria de tudo». Ou, se persistirmos
em ceder à tentação de descrever a realidade com uma teoria unificada, talvez a
«teoria de tudo» seja de outro tipo.
Este
é o sexto livro de divulgação científica do autor, que tem, com 57 anos, larga
experiência de divulgação científica na imprensa, na rádio e na televisão suecas
(até já representou no Real Teatro Dramático, em Estocolmo). Depois da sua
licenciatura na Universidade de Uppsala, a mais antiga da Suécia, fez o
doutoramento na Universidade de Princeton, o sítio onde Einstein residiu, sob a
orientação de um Prémio Nobel da Física, o norte-americano David Gross.
Danielsson pertence, desde 2009, à Real Academia Sueca de Ciências, que atribui
os prémios Nobel. No anúncio do Nobel da Física de 2020, que distinguiu o britânico
Penrose, o alemão Genzel e a norte-americana Guez, pelos seus trabalhos sobre
buracos negros, foi Danielsson quem explicou, urbi et orbi, o que eles
são: terríveis abismos do Universo, onde o espaço e o tempo se encurvam de uma forma
brutal.
O
livro lê-se muito bem, graças à clareza de pensamento do autor e à qualidade da
sua escrita. Foi traduzido de uma forma muito competente do original sueco. O leitor,
mesmo que esteja fora da Física ou da ciência em geral, sente-se seduzido, sem
ter de concordar com tudo. Um dos truques consiste no uso por Danielsson de
referências literárias: invoca Proust, Borges e Rushdie. E referências das
artes visuais e do cinema: refere Escher, Tarkovski e Kubrick.
Gostei,
em particular, do modo como ele insere no seu texto exemplos da vida quotidiana.
Por exemplo, um bom jogador de futebol não precisa, para marcar um golo, de
resolver quaisquer equações. Entremeia também histórias pessoais. Por exemplo, quando
uma educadora do infantário onde tinha o filho lhe perguntou o que era o
infinito, ele respondeu, recorrendo ao corpo, que, quando se vai daqui para
acolá, pode-se tentar ir mais longe e mais e mais… Claro que a certa altura nos
cansamos, quer dizer, o infinito é uma noção ideal, platónica, que nos é corporalmente
inacessível. Não sabemos se o universo é finito ou infinito, mas a parte que
nos é acessível, seja pelo nosso movimento físico ou dos nossos artefactos, seja
pela recepção de sinais luminosos, é finita. O conhecimento sobre o Universo é
que parece não ter fim à vista, como tão bem sugere este livro. A realidade é
real e nós estamos e estaremos confrontados com ela.
Coimbra, 16 de Agosto de 2021
1 comentário:
Não nos basta bater com a cabeça na parede para podermos responder às questões do que é a realidade, se a parede é real, se o que pensamos é real e se essa realidade é como é, se tem de ser como é, se sempre foi o que é e se alguém sabe se será e o que será, etc..
O título do livro, o mundo como ele é, independentemente daquilo que o autor defenda, é sintomático de que estamos perante um problema de magnitude filosófica e científica, mas não nos permite esperar que o mundo seja “como ele é”, a não ser no sentido em que “o ser” do mundo é “não ser como é”. E não apenas num plano estrito de processo ou de possibilidade de provar o que se diz, o que reduziria o problema a uma limitação teórico-científica. O ser do mundo é não ser como é, essa é a sua realidade. Nenhum fenómeno se repete. Nada ocorre duas vezes. Neste ponto, mesmo as experiências e verificações científicas reconhecem uma dificuldade.
A necessidade de explicar como é que o mundo é não parece ter tanto a ver com as aparências de ser (que são) mas sobretudo com o que parece mas não é (parece mais uma contradição).
Os filósofos sabem-no desde que reflectiram sobre a natureza, pelo menos desde os jónicos e os cientistas, nomeadamente os físicos, parece saberem-no melhor do que ninguém, não apenas ao tentarem saber como as coisas (realidade) funcionam, mas também ao tentarem explicar porque é que funcionam assim, se sempre funcionaram e se funcionarão.
Há pelo menos duas questões que podemos colocar para experimentar as dificuldades com que deparamos no tocante à realidade: saber/dizer/declarar o que é “isto” e provar/demonstrar o que se declara. À dificuldade de responder à questão, concreta, por exemplo, “isto é uma pedra?”, acresce a dificuldade de provar e demonstrar. Normalmente, as pessoas não questionam, nem discutem se a parede existe ou não, se é real ou não. O que tem suscitado discussão é “o que é a parede?” e a prova e demonstração do que se diz. Não é se a parede está lá. Os físicos também não discutem se existe o sol e a terra. Mas a questão não me parece disparatada.
Voltando à questão de saber “o que é isto?”, os cientistas têm dado um imenso contributo, é certo, mas ainda não chega, como se pode ver do facto de a física manter em aberto questões fundamentais sobre a realidade física. Mas também temos de considerar a existência de realidades que os físicos não estudam, como os pensamentos e os sentimentos e a biologia que, ao que parece, não deixam de ser realidades físicas, ainda que mais efémeras umas do que outras.
Não obstante, e isto toca com o problema de o mundo “ser como é”, se fossemos capazes de responder à questão “o que é isto?” e de o provar, essa resposta, provavelmente, teria de responder às outras questões “o que isto foi?”, “o que isto será?”, sabendo nós, por experiência, que, na realidade, mesmo para os físicos, se há um modo de ser das coisas esse modo de ser é que elas (mesmo se sabemos como foram), não são como são, nem sabemos como serão.
Haverá forma de saber se este problema se resolveria se um poder para isso suspendesse o movimento dos corpos (e das partículas, ou cordas, ou outra coisa desconhecida, cancelando a gravidade, a força electromagnética e as forças nucleares)? Os cérebros não seriam suspensos também?
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