segunda-feira, 11 de outubro de 2021

"Os estudantes não são frangos de aviário"

Num artigo publicado no jornal espanhol El País, no passado dia 18 de Setembro (aqui),  o professor e filósofo italiano Nuccio Ordine faz uma análise lúcida e esclarecedora da situação que se vive nos sistemas educativos europeus, subordinados à lógica do mercado.

"A Europa deve repensar a verdadeira missão das escolas e das universidades e devolver a dignidade a professores e alunos. Aceitar a lógica neoliberal na educação foi um gravíssimo erro."

Durante décadas temos assistido em silêncio à degradação do sistema educativo. Só uma minoria contestatária se empenhou em expressar o mal-estar de quem vive nas escolas e nas universidades que, desde há muito, perderam a sua função essencial: formar cidadãos cultos, solidários, dotados de sentido crítico e de consciência cívica. Deste modo, em todos os países europeus se reaviva o debate quando se fala de novas reformas.

A questão é, sem dúvida, mais complexa. Neste momento, os ministros dos diferentes Estados têm uma margem de manobra muito limitada, que não lhes permite fazer nenhuma mudança autêntica.

A distribuição de fundos para a educação, com efeito, foi diabolicamente confiada a um mecanismo infernal de recompensas, baseado em rígidos sistemas de avaliação. A Europa, de maneira acrítica, importou os instrumentos e parâmetros dominantes nos Estados Unidos e no Reino Unido. Em poucas palavras, passámos de um excesso a outro: das malhas largas do passado à estreita peneira actual. O termo mérito tornou-se o salvo-conduto para a obtenção de fundos, reconhecimentos, selos de excelência e promoções profissionais para a classe docente.

O problema não diz respeito à avaliação em si, positiva e correcta quando exercida com equilíbrio e baseada em valores compartilhados. Pelo contrário, diz respeito aos critérios que, de modo despótico, se estabeleceram para identificar os que têm mérito. Trata-se, infelizmente, de uma lógica que acabou por impor nas escolas e universidades inadequados modelos empresariais. Desde a primária ao doutoramento, toda a cadeia educativa foi colocada ao serviço do chamado crescimento económico, das exigências do mercado e das empresas. As teorias neoliberais impuseram, definitivamente, os seus princípios ao mundo da educação: interacção com a empresa privada, cooperação com os distintos sectores da economia, competitividade entre escolas e universidades, prioridade às “competências” e “habilidades”, que contribuíram para criar uma perigosa visão utilitarista do estudo, da investigação científica e do conhecimento.

Basta reler as proféticas observações de Charles Dickens para compreender as consequências de uma educação modelada segundo as regras do mercado. Em “Tempos Difíceis” (1854), a escola de Coketown (fruto de uma Inglaterra industrial) é governada por um banqueiro, Bounderby, e pelo pedagogo Gradgrind, obcecados em combater tudo o que se oponha à concretização dos factos e da produção (“A escola era toda ela factos. A escola de desenho era factos. As relações entre o patrão e o trabalhador eram factos e tudo eram factos, desde a maternidade ao cemitério; tudo o que não se podia expressar em números, nem demonstrar que era possível comprá-lo no mercado mais barato para vendê-lo mais caro não existia, não existiria nunca em Coketown até o fim dos séculos. Amén”).

Inimigo de um ensino aberto à imaginação e a todas as formas de curiosidade, Gradgrind vai sempre “com uma régua, uma balança e a tabuada de multiplicar no bolso”, pronto “para pesar e medir qualquer partícula da natureza humana e para dizer exactamente quanto isso vale”. Para ele, a educação e a vida reduzem-se a “uma mera questão de números”, ao mesmo tempo que considera os seus jovens alunos como “pequenos recipientes que deviam encher-se de factos”.

Aqui é possível encontrar, em essência, algumas das limitações dos sistemas de avaliação actuais.

Estamos certos de que os parâmetros quantitativos e a sufocante máquina burocrática desenhada para os determinar estão a construir uma educação melhor? 

Para lá das boas intenções, parece-me evidente que as escolas e universidades se vêem obrigadas a trabalhar exclusivamente para obter uma boa classificação. Sem “resultados” não se obtém financiamento. Por outras palavras: quem não aceita os critérios estabelecidos está destinado a sucumbir. O sistema de medição não se limita a medir. Orienta, sem hipótese de apelação, o futuro de todo o “rendimento”. Desse modo, a avaliação serve para a reprodução em espiral de um modelo único e, sobretudo, para impor uma lógica que impede imaginar alternativas possíveis.

Por que razão se mede a internacionalização das universidades em função dos cursos em inglês? Porque é que entre os critérios  figuram os salários que os estudantes ganharão quando se formarem? Porque é que a quantidade de licenciados é mais importante que a sua qualidade? Temos, por acaso, a certeza que a competência estimula o crescimento mais do que a colaboração? Estamos certos de que só devem fomentar-se as disciplinas capazes de garantir um futuro económico em detrimento das humanidades? Vale a pena dar atenção a rankings internacionais quando vemos que  só Harvard gasta com os seus 20 000 estudantes quase metade dos fundos que recebem as universidades estatais italianas, em conjunto, para um total de 1 6000 000 alunos? A bicicleta eléctrica europeia (que se esforça, com os seus escassos recursos, por manter uma prestigiosa educação de massas) não pode competir com uma caríssima motorizada de corrida construída para uma elite endinheirada. Ascender a esses rankings significa renunciar à educação de muitos para concentrar os recursos nuns poucos eleitos.

Os professores não são directores de empresas: o seu tempo deve ser dedicado aos estudantes e a uma investigação livre das absurdas medidas das agências nacionais. E, por outro lado, há que explicar aos jovens que não se estuda para aprender um ofício e que cultivar as próprias paixões vale mais que qualquer “êxito” económico. Não é um simples pedaço de papel, que é um diploma,  que os faz ricos. Não é Ítaca, como nos lembra Constantino Cavafis, o objectivo da viagem, são antes as experiências que vamos tendo para chegar ao destino (“ Ítaca brindou-te com tão formosa viagem. / Sem ela não terias empreendido o caminho/ Mas não tem já nada para te dar”). A nossa verdadeira meta, como diz o poeta Antonio Machado, coincide com o nosso caminho: “Caminhante não há caminho / o caminho faz-se caminhando”.

Cabe à Europa imaginar um novo caminho para repensar a verdadeira missão das escolas e universidades, e para devolver a dignidade ao papel dos professores e dos próprios estudantes, considerados frangos de aviário. Só um acordo entre os países europeus poderia pôr fim a esta chantagem económica, baseada em parâmetros impostos pela banca e pelas finanças. Aceitar a lógica neoliberal foi um gravíssimo erro: a educação não representa uma despesa, mas um investimento indispensável. E se o PIB não mede as coisas mais importantes da vida, uma educação baseada no mercado acabará por oferecer às gerações futuras uma imagem distorcida do conhecimento e da humanidade. A educação devia preparar para o questionamento dos modelos únicos impostos pela economia e pela tecnologia. Deveria ensinar que o saber gratuito e o estudo do passado são fundamentais para fazermos melhor e construir um mundo mais solidário. Porque, como lembrava Carlo Levo, “o futuro tem um coração antigo”.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Fico a pensar se alguma vez, em algum tempo, houve outra lógica que não fosse a do mercado. E interrogo-me se faz sentido pretender que se devolva a professores e alunos a dignidade que, supostamente, tiveram e perderam, ou já não têm.
Fico com a impressão de que querem dizer-nos que temos andado de cavalo para burro e que a lógica do mercado é a culpada do menos bom, ou mau, que a educação tem, ou em que se tornou.
Não concordo com a análise (vaga e confusa, aliás) assente no pressuposto de que o desenvolvimento dos pontos fracos dos sistemas educativos sejam uma consequência directa e necessária dos mecanismos de mercado. Por outro lado, não poderíamos, com propriedade, falar em mecanismos de mercado, se os efeitos perversos pudessem ser atribuídos a uma acção concertada e deliberada do poder dominante.
Para encurtar, e exemplificando, se continua a haver ensino de línguas, história, filosofia, antropologia, literatura, cidadania, artes, não me parece que seja devido à boa vontade, condescendência, complacência, ou generosidade humanística de uns tantos endinheirados que fazem o favor de financiar esses domínios. Aqui funciona o mesmo princípio, ou as mesmas leis, económicas, físicas, morais, que funcionam no resto. As leis sob a égide das quais tudo acontece, não podem ser descartadas, elas vigoram e determinam, tanto o bom como o mau. Se fossemos nós a fazer as leis, o problema seria invertido, colocar-se-ia ao contrário. Não existe nenhum motivo para pensar que a lógica do empresário é diferente da lógica do pintor ou do poeta, ou do cientista, ou do papa.
A razão que faz andar o químico, ou o astrónomo, ou o romancista, ou o músico, é a mesma que faz o banqueiro fugir da justiça e que faz a justiça deixar fugir o banqueiro.
Ou alguém gastaria um chavo a ler, ensinar, ou estudar filosofia, por exemplo, se isso não fosse imperativo? Algum governo gastaria dinheiro nisso se não fosse obrigado? A filosofia não deve favores a ninguém, nem a literatura, nem as artes, nem a história, nem a música. Antes pelo contrário, são cronicamente credoras de tal ordem que nenhum governo e nenhuma sociedade estarão em condições de cumprir.
É profundamente lamentável que não haja a mobilização necessária para exigir o financiamento devido nessas áreas largamente maltratadas e escravizadas. Não consigo aceitar, por exemplo, que o vastíssimo património artístico e cultural, desde a literatura à poesia e música, que tem gerado tantos biliões, tanto ou mais do que toda a indústria pesada (pense-se, por ex., nos rendimentos gerados por um Fernando Pessoa, um Mozart, um E. Kant, para não falar já no valor pelo qual Einstein poderia vender, no mercado, as suas fórmulas), seja tão avara e injustamente apropriado por exploradores particulares, senão pelo próprio Estado, que pouco ou nada fizeram para a criação desse património.
Por essas e por outras, é imperioso que se deixe de olhar os artistas e os criadores como uns coitadinhos que vivem de esmolas, porque, na verdade, qualquer financiamento que lhes seja dispensado é inexcedível património cujo proveito e vantagens, nomeadamente financeiras, está longe de ser creditado em nome daqueles que criaram as obras que o geraram.
Devia ser criado um fundo mundial de rendimentos provenientes da “exploração” das obras intelectuais, artísticas, científicas, literárias, musicais, cénicas, desportivas, etc., que salvaguardasse minimamente os direitos de uso e fruição das mesmas, em nome dos respectivos autores, que tantas vezes foram maltratados e ignorados, afectando esse património ao ensino, aprendizagem e produção, abstendo-se os governos de os usar para fins não compatíveis, sem procederem à devida compensação.
E tudo isto poderá ser feito e gerido segundo a lógica do mercado.
Pena é que o mercado só tenha funcionado para umas coisas e não funcione para outras.

Anónimo disse...

As teorias e sistemas educativos neo-liberais, quando transportados para países pobres, como Portugal, redundam naquilo que, já hoje, só não vê quem não quer ver nas nossas escolas:
A anarquia instalada, com muitos adolescentes e jovens delinquentes a tomarem conta das salas de aula, ainda que por vezes sujeitos à mais rigorosa sanção disciplinatória atualmente prevista nos regulamentos internos, qual seja a obrigatoriedade de frequentarem as mesmas salas de aula até completarem dezoito anos de idade!
No fim de cada ano letivo, lá estarão os especialistas em engenharia de provas de exame, do ministério da educação, para fabricarem critérios de avaliação, em que se inclui a possibilidade dos examinandos poderem responder a mais perguntas do que as necessárias para obterem a nota máxima, para depois se excluirem da classificação algumas respostas eventualmente erradas, assim garantindo a todos o fim último do sistema:
O Diploma, que abre as portas da Empresa, do Politécnico e da Universidade.

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