Minha recensão no último As Artes entre as Letras:
A Editora da Universidade do
Porto, com a marca «U. Porto Press», acaba de publicar, na sua colecção «Transversal», o livro Química ao pé da letra, de um
colectivo de seis autores: João Carlos Paiva, Carla Morais, Martinho Soares,
José Araújo, Hugo Viera e Luciano Moreira. Os dois primeiros são professores no
Departamento de Química e Bioquímica e investigadores da Unidade de Ensino das
Ciências da Faculdade de Ciências daquela Universidade. O terceiro é investigador
em Estudos Clássicos e Humanísticos e docente na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra. O quarto e
quinto estão ligados, pela formação e pela prática, ao Ensino e Divulgação das
Ciências, em especial as Ciências Físico-Químicas. E o último, mestre em Psicologia,
é docente na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Fica, pela
variedade da formação dos autores, desde logo justificada a inclusão do livro
numa colecção que se reclama da transversalidade.
O título da obra sugere que se
trata de juntar a química e a linguagem. Cada ciência tem a sua linguagem própria,
não fugindo a química a essa regra geral, embora haja alguma linguagem comum na
ciência (a palavra «Laboratório», por exemplo). A epígrafe do livro remete para
o uso da palavra “palavras” em poemas de António Gedeão, que foi o pseudónimo literário
do professor de Física e Química Rómulo de Carvalho (“Por que, sem escolha, me entrego/
nas palavras escolhidas,/ sementes evoluídas/ cumprindo um destino cego»).
Na Introdução os autores
explicitam o objetivo da obra:
«As palavras da química são
descritas nesta obra de forma breve e de acordo com uma estrutura tripartida: a
contextualização da palavra, onde se procura enfatizar a sua relevância social
e, sempre que oportuno, as suas relações com outras áreas científicas, com a
tecnologia e com o ambiente. Segue-se depois a sua definição científica,
pautada pelo compromisso equilibrado entre o rigor e a simplicidade. Por
último, procede-se à exemplificação que se traduz na apresentação de aplicações
concretas do termo, em situações do nosso dia a dia. »
Os autores dão logo a seguir
exemplos elucidativos:
«Estas palavras da química,
categorizadas e apresentadas por ordem alfabética, são como que desmontadas,
nas suas raízes etimológicas. (…) Talvez ajude saber que ‘molécula’ pode ter a
ver com ‘muito pequeno’ e, daí, voltar a esse agregado com distância típica
entre átomos da centena de picómetros. Talvez ajude saber que ‘substância’, uma
palavra tão crucial em química, se pode ligar, no seu filão etimológico, a ‘estar
na base de’, ‘que subsiste’, ‘que está dentro’. »
O livro divide-se em quatro capítulos:
«Química: a História e o Lugar», que discute só três palavras («Alquimia»,
«Química» e «Laboratório»); «Conceitos e Entidades Químicas» (o maior, com 105 páginas,
um verdadeiro dicionário de química, que vai de «ácido» a «volátil»); «Técnicas
laboratoriais» (de novo vale a ordem alfabética, existindo entradas que vão de «Centrifugação»
a «Titulação»); e, por último, «Instrumentos e Material de Laboratório» (a
lógica é a mesma, com palavras que vão de «Almofariz» a «Vidro de relógio».
No posfácio subintitulado «Das raízes
das palavras às rotas da química», que começa com o poema de Eugénio de Andrade
«As palavras» (“São como um cristal,/ as palavras./ Algumas, um punhal/ um incêndio./ Outras,/
orvalho apenas.»), os autores sumariam a arte de usar as palavras na ciência
química.
Quem não souber poderá neste
livro aprender que «átomo» é a justaposição dos elementos gregos a, que
significa negação, e tomo, que significa corte. Portante «átomos» são entidades
que não admitem cortes, isto é, indivisíveis: de facto, para os antigos gregos,
os átomos eram as partículas que não se podiam dividir. A diferença entre os
químicos e os físicos é que, hoje em dia,
os primeiros tratam dos agrupamentos de átomos, que se pode fazer das formas
mais variadas, embora obedecendo a certas leis, ao passo que os segundo tratam
dos constituintes fundamentais dos átomos e das suas interacções. Hoje continuamos a usar a palavra «átomo», apesar de sabermos que
eles se dividem em núcleos atómicos e electrões, os núcleos atómicos em protões
e neutrões, e estes em quarks, uma palavra retirada à literatura (surge em Finnegan’s
Wake, de James Joyce).
Outra palavra da química: catálise.
Resulta do prefixo kata (para baixo, sobre, contra), e lya (desligar,
soltar, libertar), pelo que a ideia subjacente
é «dissolver, destruir». O Prémio Nobel da Química deste ano foi atribuído a investigadores
que desenvolveram uma nova forma de catálise (a «biocatálise assimétrica»): Benjamin
List, alemão, professor da Universidade de Colónia actuivo no Instituto Max Planck
para a Pesquisa com Carvão, em Mülheim an der Ruhr, e David MacMilan, norte-americano
de origem escocesa, professor da Universidade de Princeton, colocaram à disposição
dos químicos uma nova ferramenta que permite acelerar reações químicas.
Um outro exemplo do muito que se
pode aprender neste livro é a origem da palavra «colóide». Vem do grego kola
(cola) + eidos (forma, aparência, semelhança), pelo que colóide
significa «semelhante a cola». De facto, a cola é uma substância coloidal. Colóides
em geral são misturas de materiais cujos componentes têm dimensões minúsculas.
Os aerosóis, as espumas, as emulsões, os sóis e os géis são todos eles colóides.
Estamos, como se vê, em presença
de uma excelente obra onde podemos aprender química sabendo línguas ou aprender
línguas sabendo química. O conhecimento pode e deve ser transversal.
No final da Introdução, os
autores salientam a metáfora entre átomos e palavras:
«Regista-se uma cumplicidade
analógica entre a química e a palavra, que merece aqui ser sublinhada. Há
corpúsculos a que chamamos átomos (quais letras), que se podem agrupar em
moléculas e outros agregados (quais palavras), que no seu conjunto originam
estruturas mais complexas (quais frases e textos), que constituem a matéria
(quais livros), que se transforma e dá vida. E depois há o fascínio de como as
coisas são… como há na poesia!»
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