Minha recensão no I de hoje:
O ângulo morto é um conceito da
óptica, com aplicação aos espelhos retrovisores dos veículos automóveis. Alguns
espelhos não permitem ver para alguns ângulos de visão,
Mas, tomada agora a expressão como metáfora,
todos nós temos ângulos mortos na nossa vida. Há coisas que se passam mesmo ao
lado e cuja percepção nos escapa. A poesia costuma ter um olhar mais profundo
do que o olhar físico, pelo que é natural que veja os ângulos que são mortos de
acordo com as leis da óptica. O uso da metáfora é curioso, embora não seja
inteiramente original. Por exemplo, num número da revista Colóquio Letras, Pierre Schioentjes, professor de Literatura na
Universidade de Gent, Bélgica, falava da «mudança
climática na literatura francesa» como um «ângulo morto da resistência
ecológica». E muita outra gente tem usado metáforas vindas da física ou de
outras ciências. Recebi um dia uma chamada de uma professora de Literatura que
me queria perguntar sobre a legitimidade do uso da expressão «ângulo crítico»,
que surge na descrição da refracção, num seu ensaio de crítica literária.
Respondi-lhe que achava o uso perfeitamente legítimo uma vez que as palavras
não têm donos. O uso literário de termos usados originalmente na ciência ou na
tecnologia permite alargar o seu domínio semântico. Do mesmo modo, os físicos
e outros cientistas «roubam» termos da
literatura: basta dar o exemplo da palavra «quark», sem um significado óbvio, que foi tomado pelo físico
norte-americano Murray Gell-Mann, que se interessava por linguística, para
designar uma partícula, de um trecho do romance
Finnegans Wake de James Joyce:
«Three quarks
for Muster Mark!»
Ângulo
Morto é o 14.º
livro do poeta e antropólogo Luís Quintais. Quase toda a sua poesia está
reunida no livro Arrancar Penas a um
Canto de Cisne. Poesia, 2015-1995
(Assírio & Alvim, 2015), um
Luís Quintais nasceu em Luena (ex-Vila Luso nos tempos
coloniais), capital da província do Moxico, bem no interior de Angola. Viveu
até aos 27 anos em Lisboa, tendo-se formado em Antropologia no ISCTE. Hoje
trabalha na área da antropologia social na Universidade de Coimbra, sendo
professor no Departamento de Ciências da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia
e investigador do Centro de Estudos Sociais. Os seus temas de eleição são a
psiquiatria forense a as relações entre arte, ciência e técnica (escreveu sobre
a obra do escultor Rui Chafes e sobre a bioarte). Quintais é ainda autor de um
interessante livrinho sobre Cultura e
Cognição (Angelus Novus, 2009).
A suas produção poética faz um uso muito criativo da
linguagem. Na introdução a Arrancar Penas
a um Canto de Cisne. Poesia
Quintais escreveu: «O que me interessa está sempre a jusante, no delta do
rio, não na nascente. As palavras que se
reúnem sob o sortilégio desse jogo de linguagem que é a poesia servem uma ideia
de ordem,
O matemático britânico de origem
polaca Jacob Bronowski fez uma apologia da poesia, numa entrevista que deu ao
filósofo norte-americano George Defere, publicada na revista The American Scholar (1974) e
republicada, em tradução portuguesa, no volume A Responsabilidade do Cientista e Outros Escritos (Dom Quixote,
1992), que reúne textos de Bronowski
editados por António Nunes dos Santos et
al. Diz Bronowski: “A poesia é um tema maravilhoso que deveríamos
considerar sempre que falamos de ideias científicas, porque nos relembra que se
pode comunicar uma verdade de indubitável valor intelectual sem necessidade de
ser complementada por qualquer sistema de equações.”
Poder-se-á pensar que a ciência
estará, portanto, nos antípodas da poesia. Mas Bronowski, que de matemático
passou a crítico literário (o seu
primeiro livro foi sobre os românticos ingleses), chamou a atenção para a
profunda relação entre ciência e poesia noutro texto do mesmo livro (no
capítulo «Ciência e Valores Humanos»):
«Quando Coleridge tenta definir a
beleza, regressava sempre a um único pensamento profundo: a beleza, disse, é a
‘unidade na variedade’. A ciência não é nada mais do que a procura da
descoberta da unidade na desordenada variedade da natureza – ou, mais
exatamente, na variedade da nossa experiência. A poesia, a pintura, as artes,
são a mesma procura, na frase de Coleridge, da unidade na variedade. Cada um, à
sua própria maneira, procura as semelhanças sob a variedade da experiência
humana. O que vem a ser uma imagem poética senão a apreensão e a exploração de
uma semelhança escondida, o manter juntas duas partes de uma comparação que vão
dar mais profundidade uma à outra?»
Não me atrevo a fazer uma critica
literária de um livro de poesia tão denso como o último livro de Quintais. Além do mais, recordo-me uma
reacção violenta do a
«Gostaria ela de cristais,/ grafite,
elipses?/ Depois de reconhecemos/ a sombra que a arrastou/ para o esquecimento
incompleto,/ memorializado por má consciência,/ gostamos intensamente/ de
cristais, grafite, elipses.// A virtude que há no sacrifício em nome da
ciência/ nada nos diz. Afinal tudo/ é crença e revisitação./ Tudo é dura
contenda/ com o sem-sentido que nos espreita./ Rosalind perseguia/ cristais,
grafite, elipses// como quem persegue/ a elegância de um vaso etrusco/ uma luz
de fim de tarde/ esmagando a praia de há mil anos,/ um sonho que, sem
complacência,/ se desfaz após o acordar,// Sufocamos depressa as linhas de uma
biografia,/ a imagem inteira da natureza/ que o caderno de ocasião/ poderá
conter ainda./ Morremos jovens/ Antigo é o mundo na sua beleza/ indiferente e
amoral/que nos traz cristais, grafite e elipses.»
Há aqui uma metáfora que associa as
observações de cristais efectuadas por Rosalind com a «elegância de um vaso
etrusco». Parafraseando Fernando Pessoa, ou melhor Álvaro de Campos: «Os
cristais são tão belos como um vaso etrusco. O que há é pouca gente para dar
por isso.»
Uma palavra final de elogio à
Assírio & Alvim. A qualidade das suas edições de poesia é inquestionável:
depois de A Matéria Escura e Outros
Poemas, de Jorge Sousa Braga, já publicou na colecção “Poesia inédita
portuguesa” Inferno, de Pedro Eiras, Cães
de Chuva, de Daniel Jonas. Voltar,
de Luís Filipe Castro Mendes, Coração
Lento, de Frederico Pedreira, e Purgatório,
de Pedro Eiras.
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