Minha recensão no I de hoje:
O italiano Primo Levi
(1919-1987), nascido em Turim de uma família judaica e formado em Química em
1941, tornou-se escritor por causa de Auschwitz - o campo de concentração nazi no
sul da Polónia onde esteve internado de 21 de Fevereiro de 1944 até à
libertação pelo Exército Vermelho em 27 de Janeiro de 1945. Chegou numa camionete
de gado, vindo do campo de Fossoli, perto de Modena, em Itália, onde as
milícias fascistas italianas o tinham aprisionado com um grupo de resistentes.
Dos 650 judeus italianos que chegaram na leva de Levi só 20 sobreviveram. Valeram-lhe
na provação os seus conhecimentos de Química que lhe permitiram trabalhar, em
condições desumanas, na fábrica de borracha da empresa alemã IG Farben em
Auschwitz. E valeu-lhe sobretudo a ajuda secreta de Lorenzo Perrone, um
operário de construção civil no campo, não exactamente um prisioneiro, e tal
como ele piemontês, que lhe deu diariamente pão para além de um reforço de vestuário,
impedindo que morresse de fome ou de frio, como aconteceu a muitos outros. A
gratidão de Levi levou-o a dar aos seus dois filhos os nomes de Lorenza e Renzo,
para além de o ter apresentado como herói nos seus escritos. No primeiro dos
seus livros, saído no original em 1947, Se Isto É Um Homem (Teorema,
1988; hoje em 19.ª edição na Dom Quixote, 2020; saiu também na colecção «Livros
RTP» da Leya, 2018) escreve: «Lourenço era um homem (…) Graças ao Lourenço,
consegui não me esquecer que eu próprio era um homem». O êxito desse livro, um dos maiores testemunhos
da desumanidade do Holocausto, só chegou quando em 1958, foi editado pela Einaudi, a grande editora de Turim,
e começaram as sucessivas traduções em várias línguas, incluindo uma em alemão
que o próprio autor supervisionou.
O segundo livro de Levi, A
Trégua, tardou década e meia. Publicado em 1963 (entre nós só em
2004 pela Teorema; edição corrente: Dom Quixote, 2017), conta o seu regresso a
casa através de uma travessia de oito meses por uma Europa devastada, passando
pela Bielorrússia, Ucrânia, Roménia, Hungria, Áustria e Alemanha. Originou nos
anos 1990 um filme de Francesco Rosi. Quando saiu essa obra, Levi sofria de uma
depressão, reveladora da sua dificuldade em ultrapassar as suas terríveis memórias.
Mas continuou a escrever, noutros registos: Storie Naturali, Vizio di
Forma e Lilit e Altri Raconti , três colectâneas de contos, e L’Osteria
di Brema, um livro de poesia. Para mim, a sua obra-prima é O Sistema Periódico,
original de 1975 (Gradiva, 1988, com tradução de Maria do Rosário Pedreira,
hoje poeta consagrada; Dom Quixote, 2017). Trata-se de um conjunto de histórias
autobiográficas, cada uma delas associada a um elemento da Tabela Periódica. A Royal
Society de Londres elegeu, em 2006, este livro o «melhor livro de ciência
de sempre». Os dois únicos romances de Levi são A Chave de Luneta (Almedina,
no prelo) e Se Não Agora, Quando? (Dom Quixote, 1988). Os seus últimos escritos
em vida foram um segundo volume de poesia e três de ensaios, entre os quais Os
Que Sucumbem e Os Que Se Salvam (Teorema, 2008; Dom Quixote, 2018).
Primo Levi morreu após ter caído
no vão da escada de acesso ao seu apartamento num prédio de três andares. Ainda
hoje há controvérsia sobre se foi ou não suicídio. Alguns, incluindo a polícia e
certos biógrafos, dizem que foi, em consequência de depressão e desespero, por
não conseguir cuidar da sua mãe e sogra que viviam com ele. O escritor
norte-americano Elie Wiesel, Nobel da Paz, e, tal como Levi, judeu internado
num campo de concentração, disse que «Primo Levi já tinha morrido em Auschwitz
40 anos antes». Outros defendem que foi uma queda casual. A sua amiga Rita
Levi-Montalcini, judia de Turim, premiada com o Nobel de Medicina, afirmou que «como
químico podia ter escolhido uma maneira melhor de morrer do que saltar de uma
escadaria apertada, correndo o risco de ficar paralisado para a resto da vida.»
Acaba de sair na editora Dom Quixote,
que tem cuidado entre nós da publicação das obras de Levi, o livro Auschwitz,
Cidade Tranquila, uma antologia de dez contos, contidos entre dois poemas.
Todos eles estavam inéditos entre nós excepto «Cério» e «Vanádio», que são
parte de O Sistema Periódico, agora reproduzidos na tradução original.
Os restantes foram traduzidos por Diogo
Madre Deus. O livro inicia-se com uma apresentação de Fabio Levi e Domenico Scarpa,
membros do Centro Internacional de Estudos Primo Levi, sediado em Turim (o
primeiro, sem ligação familiar a Primo Levi, é historiador e director do Centro).
Essa introdução explica a origem dos contos, o seu tema e a sua relação com
outras obras literárias, não só do autor como da literatura universal, por
exemplo a Divina Comédia, de Dante. O livro fala, directa ou
indirectamente, de Auschwitz, onde o autor foi vítima e observador. O conto «Capaneu»
(nome de um personagem da Divina Comédia) descreve dois dos seus companheiros quando
a guerra se aproximava do fim e Auschwitz sofria violentos bombardeamentos. Começa
assim: «A mim, vocês conhecem-me. Pode ser que naquele tempo e lá em baixo, com
aqueles farrapos às riscas, a barba ainda mais malfeita do que é hábito e o
cabelo rapado, o meu aspecto fosse muito diferente do de hoje; mas isso não tem
importância, a essência não mudou. Do Vidal, ao invés, devo falar-vos
demoradamente.» A mensagem desta e de outras histórias é que a humanidade se
revela (ou não) em condições extremas. As três histórias seguintes, «Borboleta Angélica»,
«Versamina» (uma substância química imaginária) e «A Bela Adormecida no Frigorífico»
são contos de ficção científica, todos eles de Storie Naturali. Achei-os
estranhos, tão diferentes do típico registo autobiográfico do autor que
compreendi o uso de um pseudónimo recomendado pelo editor. O último, que se
passa em 2115, é premonitório dos actuais
casos de criopreservação.
Os contos «Cério» e «Vanádio» são
duas belas short-stories. O primeiro conta como Levi e outros
prisioneiros cortavam, de noite e às escondidas, pedaços de ferrocério, roubado
do laboratório da fábrica, para fazer pedras
de isqueiro que poderiam trocar por
comida. A punição para o roubo era o enforcamento imediato, mas comer era uma
necessidade imperiosa: «Comer, procurar o que comer, era o estímulo número um,
atrás do qual, a muita distância, seguiam todos os outros problemas de sobrevivência
e, ainda mais atrás, as saudades de casa e o próprio medo da morte (…). O
Lager dera-nos uma louca familiaridade com o perigo e com a morte; e
arriscar a corda no pescoço para comer parecia-nos apenas mais uma escolha
lógica, mesmo óbvia.» O segundo é sobre o reencontro epistolar do autor com um
dos químicos alemães que conheceu na fábrica. Descreve-o assim: «Não era infame
nem herói. Sem contar com a retórica e as mentiras de boa ou má-fé, permanecia
um exemplar humano tipicamente sombrio, um dos numerosos zarolhos no reino dos
cegos.» A pergunta que Levi coloca é a que colocamos todos: como foi possível que
pessoas aparentemente normais permitissem o Shoah? Na história seguinte,
«O Rei dos Judeus», há um pobre-diabo que se faz passar por monarca no gueto de
Lódz. «Força maior» é uma breve história de um duelo humano em que vence, como é
costume, o mais forte. No conto «Auschwitz, cidade tranquila», que dá o título
ao livro (os alemães de Auschwitz nada viram…), o autor, como em «Vanádio», confronta-se
com um químico alemão. Abre com uma frase-chave do livro, citada na contracapa:
«Poderá surpreender que no Lager um dos estados de espirito mais comuns fosse
a curiosidade. No entanto, além de assustados, humilhados e desesperados, sentíamo-nos
igualmente curiosos: famintos de pão e também de entender». O autor continua,
curioso: «O mundo ao nosso redor parecia invertido, portanto alguém o devia ter
invertido, e consequentemente esse alguém devia ele mesmo ser um invertido: um,
mil, um milhão de seres anti-humanos gerados para torcer o que era direito, para
sujar o limpo.». «Um “policial” do Lager», é a história de um kapo holandês
cuja família procurou Levi no pós-guerra. O livro encerra com o poema «Canto
dos mortos em vão», onde o autor se dirige a «velhas raposas prateadas»: «Mas
lá fora ao frio estaremos à vossa espera,/ O exército dos mortos em vão,/ Nós os
de Marne e de Monte Cassino,/ De Treblinka, de Dresden e de Hiroxima/ E connosco
estarão/ Os leprosos e os tracomatosos,/ Os desaparecidos de Buenos Aires,/ Os
mortos do Camboja e os morituros da Etiópia,/ Os capitulados de Praga,/ Os
exangues de Calcutá,/ Os inocentes massacrados em Bolonha.» E, umas linhas mais
abaixo, explica porque nada têm a temer: «Somos invencíveis porque somos os
vencidos.»
Falta completar o rol de livros
de Levi saídos em português europeu: O Dever da Memória (Civilização,
1997; Cotovia, 2011); Diálogos sobre a Ciência e os Homens, com o matemático Tulio Regge (Gradiva, 2012); O Último
Natal de Guerra (Cotovia, 2015); e Assim foi Auschwitz: Testemunhos
1945-1986, com Leonardo Benedetti (Objectiva, 2015).
Rita Marnoto, professora de
Estudos Italianos da Universidade de Coimbra salientou o facto de nenhum livro
dele ter sido traduzido em Portugal durante o seu tempo de vida, apesar da fama
mundial que conheceu. Terá sido apenas falta de atenção generalizada por parte
dos editores nacionais ou antes resultado da censura, ainda que silenciosa, do
regime de Salazar e Caetano? O que vale é que, postumamente, Levi tem sido entre
nós um autor de sucesso. O livro em apreço irá decerto acrescentar esse sucesso.
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